a tragédia antes da capitulação, de marcos nunes
Perto do fim do século XIX, o
encantamento pelas coisas já desceu ladeira abaixo; não
há nenhum sentimento humano puro ou digno de nota, tudo
que é feito sob o álibi sentimental só oculta o
interesse próprio, o egoísmo coberto sob leves camadas
de piedade e compaixão predeterminadas por uma fé
religiosa que se mantém por mera convenção, tudo que
denota desenvolvimento material e científico só vem
para comprovar o abismo em que habitamos com nossas
pretensões idealistas. Nenhuma paixão pelo novo, nenhum
gosto pela vida que é deixada para trás; vive-se em
perpétua desilusão, em um estado de melancólica
perplexidade. Quer mais quer menos cientes da condição humana essencial e predeterminada, qual seja, a impossibilidade de vencer a morte ou de vencer em vida, todos acabam subjugados, na estreiteza que desaba sobre suas individualidades toscas, personagens como Brás Cubas, Bentinho, Aires ou Rubião são como internos da Casa Verde, loucos que nunca foram loucos, loucos porque, como loucos, não se reconhecem como loucos mas como sãos que de fato são, e como tais levam vidas miseráveis, frágeis, frustradas, no poço profundo da mediocridade a que estão condenados tanto os que anseiam pela glória (e todos a ansiaram) quanto aqueles que reconhecem que o único caminho para a glória em vida é fazer-se crer como a própria e reluzente mediocridade em ação (como nos ensina A Teoria do Medalhão). Machado de Assis é contemporâneo da desilusão que toma conta de uma sociedade que se transforma; desiludidos são os nobres com a perda dos privilégios garantidos pelo regime monárquico, desiludidos os novos-ricos que não conseguem vestir a capa do burguês por excelência, desiludidos os cientistas com suas pesquisas que não atingem o conhecimento e os enchem com novas incertezas, desiludidos os burgueses com a instabilidade de todos os regimes e as limitações de suas ações mercantis; desiludidos todos esses e muitos mais, submetidos a regras que são incompreensíveis mas que devem ser obedecidas, e que vão tomando ciência que, por mais que representem seus papéis, e por melhor que o façam, não verão a virada de seus destinos, não obterão a eternidade quer superando as leis biológicas, quer obtendo alguma notoriedade pública por feitos de inquestionáveis alcances, e muito menos morrendo e certos de que serão despertos no dia do Juízo Final, quando então, inocentes, serão conduzidos ao Paraíso. Quer em O Alienista quer em Quincas Borba o conhecimento científico não é tido em alta conta; em algumas de suas crônicas há a mesma desconfiança (algo conformista, algo conservadora) de que o conhecimento humano não é evolutivo, mas uma fraude; tudo o que afirmamos e construímos não passa de arbítrio para fins de controle, um controle artificioso, que ronda a matéria mas que nunca chega a seu âmago, talvez porque nele haja apenas o mistério da vida e da morte, inacessível e brutal. Em Dom Casmurro, Quincas Borba e Memórias Póstumas de Brás Cubas somos envolvidos nas vidas algo patéticas e assumidamente inúteis de personagens que não conseguem lidar sequer com suas próprias obsessões; Bentinho é tomado de ciúmes, talvez menos de Capitu (ou de seu terno amigo Escobar...) do que pela própria vida que pensou em viver e não viveu; é um traído pela vida como Brás Cubas, incapaz de realizar qualquer coisa que seja, um morto que ironicamente passeia pela sua própria história inútil; Rubião sonha com Sofia como sonha com a respeitabilidade burguesa, sem perceber que nada há de respeitável na vida burguesa, que Sofia bem representa como moeda de troca de seu ambicioso marido. Se Rubião é tomado pela voragem da derrocada financeira e frustração amorosa até a loucura, Brás Cubas dela se ri como ria de seu amigo Quincas Borba, cuja sandice maior era crer que tinha razão, coisa que Brás nunca logrou obter, como quase nada em sua vida longa composta de curtos capítulos, quase como dizer que a um tal personagem não faz justiça um romance, mas um anedotário. Mas a irrelevância atinge cimos altíssimos, como nos ensina A Teoria do Medalhão, onde um amoroso pai ensina ao filho inestimáveis lições de como tornar-se alguém no mundo sendo exatamente o que se é, ou seja, um sujeito medíocre que, como o Conselheiro Aires, gagueja lugares comuns em sonolentos saraus e reuniões políticas, sem ofender ninguém, sem tomar posição, mas mantendo-se sempre visível, com uma postura séria, respeitável, fisionomia de sábio que de fato nada sabe mas que como sábio é reconhecido, justamente por espelhar no outro sua própria ignorância não reconhecida. Não muito pode almejar a humanidade em sua breve vida, e mesmo a esperança parece viver seus últimos dias, nesse meio de caminho que é o realismo que ensina aos modernistas os primeiros passos, depois de ter enterrado sob bocejos os últimos românticos. Contudo, enquanto Machado carrega na ironia, incréu face os pretensos avanços políticos, sociais e científicos que se anunciam, o que virá depois será mais apologético, superando o pessimismo e investindo na crença do progresso; face à condição humana, Brás Cubas respondia com o emplasto contra o maior de todos os males humanos, a melancolia, emplasto pelo qual veio a contrair o mal que o vitimou, e que nunca seria fabricado; o malogro é o destino de todas as ambições humanas, como Sartre viria a repetir algumas décadas depois; face à condição humana, a tragédia clássica cedeu lugar à tragédia moderna, a do homem que capitula, a do homem cujos projetos ruem enquanto esse homem responde, algumas vezes, com indiferença, em outras, com a loucura, e na maioria, simplesmente colocando mais um fardo às costas, em um esforço previamente condenado à inutilidade mas, como Sísifo, que deve ser feito. No que Machado difere em muito de Camus: para ele, é impossível imaginar Sísifo feliz. |