visões da américa:
três línguas, dois escritores e a influência imperial,
de marcos nunes
1. Plano Geral sobre um Continente
Partido Da Terra do Fogo ao extremo norte da Groenlândia, a América é um continente ocupado, marcado pela invasão, extermínio de seus povos e ocupação colonial, a serviço dos interesses das metrópoles européias. De todas as variantes lingüísticas dos povos originais, sobraram alguns rudimentos incorporados às três línguas mais faladas no continente: o espanhol, na América Latina e América Central, o inglês, em quase toda a América do Norte e parte do Caribe, e o português, exclusivamente no Brasil. O legado cultural dos povos assimilados ou extintos, em literatura, é praticamente nulo. Tradições orais foram registradas por antropólogos, preservando-se mitologias e algumas histórias mas, fora os depoimentos das vítimas do grande genocídio contra os arbitrariamente chamados de "indígenas", por infeliz associação às sonhadas Índias, por sinal um território oriental completamente diversificado em termos políticos e culturais, e que não poderiam receber uma denominação genérica, demasiado abrangente e redutora face as variantes de povos, esfacelamentos tribais e lingüisticos da Ásia. Toda influência dos povos americanos na cultura do continente que nascia pela força da ocupação violenta é encontrada na literatura, se pudermos também generalizar, na forma de um espectro de liberdade, liberto de um ídolo que ruiu sob os canhonaços das monarquias ocidentais. São narrativas que procuram alinhavar os primeiros testemunhos sobre um povo pré-adâmico, habitantes de um Éden cujo deus deveria ser um só e o mesmo com relação ao deus europeu, mas que se revelava sob as controversas formas tidas por pagãs, gerando um debate sob a natureza humana ou não desses povos, discussão que perdia o sentido na medida em que populações inteiras iam sendo dizimadas, sendo uma pequena parcela assimilada pela conversão religiosa ou contato sexual que gerava filhos e sucessivas gerações de mestiços, para sempre tido por "inferiores" por um discurso racial cujos fundamentos, hoje superados, eram fartamente expostos em tratados de frenologia ou exegeses bíblicas que inventivavam o necessário para justificar, de um lado, o extermínio, de outro, a exploração. Esse "Fantasma da Liberdade", como um título de Buñuel, mantém-se como assombro ético constitutivo de todo sobrevivente americano, a reivindicar a justiça essencial a todos os povos, suplantando séculos de dominação. Por muito tempo sonhou-se com a unidade continental dos povos também chamados de colombianos, unindo os remanescentes dos "indígenas" com seus frutos bastardos e egressos das metrópoles, mas o que temos é um continente partido, subdividido em diversos países, e que dificilmente se comunicam, apesar da maioria partilhar de uma mesma língua e interesses comuns (ou que deveriam ser comuns). Não nos cabe aqui analisar em profundidade as fraturas do grande continente, mas vale ainda estabelecer como situação básica a transferência da dominação colonial à dominação econômica, exercida por um país do próprio continente, denominado Estados Unidos da América, que trai, em seu próprio nome, ambições que vão além de seu próprio território. Através de um política externa agressiva, que se desenvolveu a partir do século XIX, em meio à lenta derrocada imperial e sua política econômica baseada no extrativismo das riquezas minerais e matérias-primas agro-pastoris, que só se concluiu quando já adiantado estava o século XX, em fins da década de setenta, os auto-denominados americanos ocuparam, econômica e politicamente, os países vizinhos, ou nem tanto, colocando à frente um discurso diferente do imperial, que prezava a democracia e a liberdade, mero álibi para a constituição de Estados despóticos que serviam a seus interesses. A atuação do EUA, como não poderia deixar de ser, pautou-se na ocupação, não apenas das áreas economicamente atraentes, mas também das imaginações. Além da "interação" econômica, os estadunidenses projetaram uma "integração" cultural que inseriu os símbolos de sua cultura sobre os países integrados à fórceps, logrando com isso a mescla de diferentes abordagens sobre a liberdade, o desejo, a razão, o direito e outros signos de processos civilizatórios cujas disparidades vão perdendo as nuances, quanto mais sobrevive e se hegemoniza o projeto democrata e liberal do ocidente, capitaneado pelos norte-americanos. De forma que a América hoje partilha mais os sonhos de seus dominadores que daqueles que, dominados e quase extintos, legaram um espectro de um ídolo que condenaram à morte, uma liberdade avessa aos critérios de uma civilização branca, anglo-saxã e protestante. Resquícios de legítima subversão recebem tinturas claramente "americanizadas", pautando a abominação aos critérios estadunidenses nos próprios símbolos desenvolvidos pela visão da América como "american dream" e "american way of life". Mesmo utilizando línguas diferentes, muitos dos escritores americanos trilham caminhos semelhantes daqueles que, no interior da construção do sonho (norte) americano, tratam das facetas mais amargas, resultantes de uma massificação cultural cujos valores colocam-se à reboque dos interesses financeiros, deixando à margem os refugos dessa civilização que não assimila seus "derrotados", e muito menos seus humilhados e ofendidos. Nosso pequeno objetivo, aqui, então, é tratar das literaturas produzidas por dois escritores específicos, um brasileiro, Rubem Fonseca, e outro cubano, Pedro Juan Gutiérrez, que, escrevendo em duas línguas diferentes, o português e o espanhol, estão substancialmente conectados às formas e temas de autores estadunidenses. De um lado, o romance noir, a literatura policial de autores como Dashiell Hammet e Raymond Chandler, nítidas influências no trabalho de Rubem Fonseca. De outro lado, a literatura surrealista, a prosa automática e delirante do beatnik Charles Bukowski e outros, traços bastante visíveis em Pedro Juan Gutierrez. São visões da América que se interpõe, interagem, se excluem e sobrevivem, sobre os escombros de uma liberdade cujo desejo parece estar cada vez mais submetida à ótica nos novos colonizadores, aos quais hoje nos opomos utilizando parte de suas próprias armas. 2. A Zona das Sombras Esquecidas Não é preciso estar muito atento para receber à exaustão as expressões da cultura que se quer dominante. O mundo perfeito é o mundo onde todos estão voltados ao trabalho em função do consumo, ao consumo em razão da assimilação, à assimilação face a satisfação dos desejos, e à satisfação dos desejos condicionada à representação de um papel social destacado. Todos querem ser vencedores porque deles são os meios para a fruição e realização de uma vida perfeita. No entanto, e por outro lado, necessitamos de muita atenção para enxergar aquilo que nos é ocultado de forma programática, ou seja, que um mundo competitivo gera derrotados, excluídos, aqueles que não se adaptam, por livre-arbítrio (poucos) ou por incapacidade de corresponder a exigências cada vez maiores, em um universo de competição cada vez mais brutal, onde a vitória deve ser buscada a cada dia, superando-se todos os obstáculos, principalmente aqueles que se referem às leis vigentes, claro empecilho para a realização do self-made man, esse herói e totem da cultura estadunidense, que faz da liberdade um álibi para a perpetração de qualquer abominação, desde que essa abominação atinja apenas os outros, e não a si mesmo, branco e impoluto empreendedor, expressão máxima das virtudes do capitalismo. Rubem Fonseca e Pedro Juan Gutiérrez nos colocam nesse território de aflitos, de poucos vencedores e inúmeros perdedores. Território muito vasto em seus países, um eternamente condenado à pecha de país em desenvolvimento, país do futuro, que nunca corresponde às idealizações. Outro, por um regime condenado por um embargo econômico insuperável até a submissão a um modelo-padrão de democracia, sem esquecer da própria hediondez característica de políticas que restringem, censuram e condenam, às vezes até a morte, seres humanos, seja por "delito de opinião", seja às condições sub-humanas de uma carência material que encontra paralelo nas grandes massas alijadas do processo produtivo na maior parte do continente, mas que só em Cuba tem sua expressão em uma resistência política cujo caráter Pedro Juan pretende revelar como mera vontade de manutenção de poder por uma classe dirigente privilegiada. Cuba e Brasil são países diferentes, territórios incomparáveis em possibilidades e riquezas materiais, falam línguas diferentes e partilham algumas poucas semelhanças, entre elas a cultura africana levada pelos negros escravizados e a presença política e econômica dos EUA, sendo em Cuba a ausência a maior prova dessa presença que também incapacita o Brasil de autogerir e gestar seu próprio destino. Não por essas razões, mas por outras indiscerníveis, Rubem e Pedro Juan optaram por formas diversas para tratar de questões bastantes semelhantes, atinentes à miserabilidade e condições sociais nas quais trafegam personagens que ora pertencem ao lúpem, ora apenas se imiscuem nesse meio e sobre ele tecem comentários. Técnica e formalmente devem muito àqueles que, mesmo escrevendo a partir de observações de realidades muito diferentes, no que se refere às camadas sociais mais empobrecidas de uma população constituída, nos EUA, de imigrantes de todas as partes do mundo, que vão de encontro a uma "América" de sonho, de realização individual, encontrando as duras condições de uma sociedade fechada e que utiliza da mão-de-obra imigrante quase que tão brutalmente quanto são utilizados negros, mestiços e remanescentes índios nos países de colonização espanhola ou portuguesa. Da mesma forma, apesar de inúmeras diferenças formais, as literaturas de autores como Hammet, Chandler ou Bukowski se comunicam, tanto por tratar da zona de sombras esquecidas daqueles que não partilham dos mesmos e obrigatórios sonhos, quanto pela opção de desacreditar o sonho na substância de uma sociedade de consumo competitiva. Se das histórias policiais emergem os duros, cínicos e niilistas personagens que encaram o destino comum da obscuridade com um traço de tragicidade mergulhada em soturno estilo, das andanças beatniks são os loucos, bêbados e delirantes que dão o tom. Todos os deserdados encontram expressão, quer na expectativa do lucro fácil oriundo de golpes ou roubos, quer nos verborrágicos embates de múltiplos delírios, embebidos em álcool e outras drogas, de prostitutas decrépitas e vagabundos de rua com dons poéticos. Para os beatniks, há o sublime, mesmo que embotado nas circunstâncias de um cotidiano miserável, para os autores de policiais, há apenas a miséria da natureza humana, em luta com desejos incompreensíveis que podem até mesmo remetê-los à moralidade. Não são outros os elementos que encontraremos nos dois autores destacados, Rubem Fonseca e Pedro Juan Gutiérrez, e disso trataremos em seguida, destacando ainda aqui o tema que une todos os autores aqui reunidos, qual seja, a busca de uma liberdade que seja outra que não àquelas prometidas pela cultura nativa das Américas antes das invasões, e pela cultura da sociedade de massas, fundada nas leis do mercado. 3. Latinos, pero no mucho Embora unidos pela latinidade de seus próprios idiomas, pelas contigüidades culturais dos povos ibéricos, Rubem Fonseca e Pedro Juan Gutiérrez tem suas maiores influências estéticas não no legado de seus povos e de seus países, mas na literatura do país política, econômica e culturalmente dominante, os Estados Unidos da América. Em Rubem, vemos suas tramas político-sociais centradas em investigações policiais, que vão puxando o fio de uma grande teia de compromissos que mantém intactos privilégios, impunidades e "direitos" de exploração incontestados. No mais das vezes, há um personagem central, claramente calcado nos investigadores policiais estadunidenses dos romances de Hammet e Chandler, dotado de um grau de inteligência que é compatibilizado com seu cinismo e potencialidade erótica, características que fazem com que lhe gravitem mulheres bonitas e misteriosas, homens ambiciosos e comprometidos com poderes públicos, todos chafurdando nas podres paragens de uma sociedade corrupta até a medula, incapaz de ver na miserabilização sintomas de sua própria capacidade degenerativa, esta dimensionada pela quantidade de capital envolvido nos esquemas criminosos, que são objeto das investigações. À exemplo dos autores estadunidenses, inclusive, apesar de deslindadas as tramas criminosas, não necessariamente é cumprida a lei e os culpas cumprem as penas que lhe são imputadas. Geralmente, o que ocorre é a acomodação dos fatos para proteção de respeitabilidades públicas, sendo as culpas atribuídas a bodes expiatórios, sem esquecer que aqueles que ocuparam-se no desvendamento dos crimes podem ser mortos ou rebaixados em suas funções, finalizando-se o conto ou romance com uma pequena lição do pouco que se pode fazer contra a sombria natureza dos homens. Apesar de autor moral, Rubem é pessimista, e conduz suas narrativas entremeadas de citações filosóficas, literárias e cinematográficas, sempre ilustrando as impossibilidades das ambições humanistas, da constituição de sociedades justas, de um malogro que parte da essência mesma desses ideais, que estariam em claro confronto com outro tipo de essência, a humana, incapaz de alimentar-se de outra coisa senão de sua própria ambição desmedida, e de caráter sempre individualista. À atomização dos seres corresponde a concentração de poderes na mão de poucos que, controlando o fluxo dos capitais e administrando as instituições sociais, são aqueles que podem fruir o gozo da liberdade. Porém, apesar de colocarem-se sobre as massas desprovidas de rosto e caráter, a liberdade é conspurcada pelo poder, e por ele atado a compromissos que impossibilitam o gozo dessa liberdade. O que advém é um conflito que se multiplica na expressão dessa liberdade cerceada na forma de perversão, e é no abismo moral que se revela em sua integridade aquele que exige satisfação a seus desejos; a superação da moral pela força desejante é o ponto que, se atingido, propicia o gozo da liberdade. Mas esse ponto é apenas pressentido, é apenas e tão somente desejado, e a prática da perversão, enquanto interior do próprio projeto de exploração do real enquanto capaz de gerar expectativas para o desejo, não logra atingir esse ponto, vindo a transformar-se em mais uma regra, mas uma regra que se torna essencial para uma possível compreensão posterior da natureza do desejo (e do que se deseja). Contudo, ao se transformar, ato contínuo, em regra, a perversão adquire uma lógica própria que a insere na versão, ou no máximo na reversão, do real, frustrando as expectativas e levando às conclusões de praxe, com todo o desencanto, tédio e ceticismo que acompanham os investigadores, delegados e detetives de Rubem. Apesar de utilizar fórmulas já conhecidas do romance noir, Rubem tempera-as com as especificidades de seu país, ou melhor ainda, de sua própria cidade, o Rio de Janeiro. São mencionados costumes cariocas, ruas, bares, boates, delegacias em seus bairros, personagens basilares do cotidiano brasileiro (o malandro, a prostituta, o menor abandonado). Suas citações são mais variadas e tendentes ao erudito, e seus textos empreendem de maneira mais minuciosa o mapeamento dos males que condenam o país à subserviência aos padrões político-econômico-culturais globais, em detrimento daqueles que, oriundos dos extratos sociais mais baixos, são vítimas da pena perpétua da submissão, da alienação, da reificação. Rubem procura demonstrar que a profunda descrença demonstrada por seus personagens não é apenas objeto de estilo, como se tornou usual em muitos daqueles que deram prosseguimento aos escritores hoje tidos por clássicos do romance noir, mas sim decorrente de análises diárias de relações humanas e sociais, que redundam objetivamente em destruição, de vidas, de amores, de amizades, etc., conforme se acumulam os desgostos e evidencia-se a perpetuidade dos engodos, face as contínuas demonstrações de impunidade, decorrentes de poderes públicos corrompidos, constituídos de forma aparentemente legítima por instituições dotadas de leis mecanismos explicitados em leis de caráter democrático. A falibilidade decorre também de leis injustas, mas leis justas parecem não operar a excelência. O erro então residiria no sistema, no modo de produção, nas razões sociais que constituem privilégios de classe. Mas a superação dessas nódoas é impossibilitada por intrincados laços de preconceitos que se revelam insuperáveis (castas, raças, identidades sexuais). Não é outra coisa que procura demonstrar Pedro Juan Gutiérrez. Mas, ao contrário de Rubem, sua técnica e sua linguagem não é a dos policiais estadunidenses, mas de outra vertente da mesma origem, a dos escritores beatniks, herdeiros imediatos dos surrealistas. Sua escrita é automática, seus temas e personagens se repetem, mas o que se aguarda de cada nova aventura erótica é o descortinar de uma verdade essencial que, contudo, não se revela. O tratamento é, como em Charles Bukowski, dado a partir do fluxo de consciência, mas um fluxo alterado por substâncias estupefacientes. São entre goles de rum e uns poucos cigarros de maconha que Pedro Juan desenvolve seus textos que procuram expressar sentimentos contraditórios, que ora decidem pela invulnerabilidade da essência do ser, ora compreendem a profunda corruptibilidade da natureza humana. Mas Pedro Juan não se detém em minúcias, ele é caudaloso e palavroso na medida do excesso, inclusive o excesso de repetições. Em todos seus personagens encontramos traços comuns, talvez não porque a natureza humana os nivele, mas porque o estado em que se encontra a consciência do narrador não se permita o detalhe, mas apenas largos traços que vão caudalosamente se envolvendo em peripécias sexuais para se concluir em negações a respeito de qualquer coisa que não seja o borbulhar de sua própria satisfação/insatisfação decorrente de atos que não são questionados, principalmente porque a grande questão a ser resolvida, cotidianamente, seja a da própria sobrevivência. Como disse em entrevista o autor de As afinidades: "Cuba só possui três problemas: café-da-manhã, almoço e jantar". O descrédito dos personagens de Pedro Juan às relações com os poderes públicos, intermediadas pela Política, difere daquele que contemplam os personagens de Rubem. Os últimos elaboram teorias entre citações de autores clássicos, Pedro Juan toma apenas os dados imediatos para comprovar que a Política é apenas um jogo que privilegia os que ocupam posições de poder, posições essas que redundam não em responsabilidades de serviço público, mas direitos de exploração da sociedade para satisfação de intentos individuais. Suas conclusões não são muito diferentes, mas entre as sombras das noites cariocas e as luzes escassas de uma país pauperizado passeiam letras substancialmente diferentes; de um lado, o método que procura revelar o desencanto e o tédio através de uma trama que reúne personagens de matizes diversos, de outro, a sucessão delirante de estratagemas para obter comida, bebida e sexo em troca de pequenos expedientes ou breve troca de palavras sedutoras, mas duras, incisivas, sem os circunlóquios de erotismo pseudo-refinado. A liberdade em Pedro Juan é aquela que move seu corpo para a próxima refeição e para o coito mais prazeroso; não há liberdade que não aquela que se manifesta em suores e fluidos corporais, a humanidade só é o que é em si uma pessoa, cuja palavra não deve lhe sonegar sua inteireza. Em Rubem, a liberdade é um tipo de falácia moral, uma utopia irrealizável, uma arquitetura racional que só tange seu objetivo por um breve instante de paixão, ou mesmo de embriaguez (num breve ponto de contato com Pedro Juan), para logo perder-se em abismos borgianos ou bibliotecas kafkianas. Em nenhum dos dois revela-se a afinidade telúrica da liberdade dos povos americanos pré-colombianos, em ambos presenciamos os esgares da liberdade como fruto do poder comprar e poder vender, mas essa não atinge os desejos que vão além do consumo imediato. Em termos locais, ambos se imbuem da materialidade que os cercam. Não da latinidade, um estereótipo, algo que conceitualmente é impossível de definir. Mas, ao mesmo tempo, essa idéia de latinidade, alimentada principalmente pelos estadunidenses (que, por sinal, por décadas viajaram a Cuba para frui-la na forma de aventuras sexuais "calientes"), ainda persevera no âmago desses escritores, embora com mais ênfase em Gutiérrez. O modelo latino sexualmente bem dotado é absorvido por ambos, mas em Gutiérrez ganha vulto em seus personagens hedonistas e individualistas, voltados a satisfação de seus apetites imediatos. Ainda porque, sob influência dos beatniks, a liberdade é um tema recorrente, uma liberdade que pode-se deslumbrar superando-se o alcance de uma imaginação ferida de morte pela (in)comunicabilidade do dia-a-dia e, nos estereótipos da latinidade, a liberdade é uma característica primordial nesse ser latino, que se exprime pelo sexo, pela luxúria da paisagem, tempero dos pratos, colorido das roupas, etc., macumba para turista que tanto Rubem quanto Pedro Juan se negam a referendar. Sentidas as influências estadunidenses, estabelecidas as semelhanças, conhecidas as diferenças, verificamos nas literaturas dos dois autores escolhidos um exemplo de como se opera a transformação de uma herança, quase que compulsória, de uma cultura hegemônica, em literaturas que revelam suas origens, mas que também procuram sobrepor discursos àqueles dados como modelares, retrabalhando-os em outras línguas até a obtenção de resultados peculiares, relativos ao próprio meio que se transforma sob a pressão da universalização, forçada pelos processos decorrentes da globalização dos mercados, tornando-os patentes na própria literatura para impor, em seguida, os dados de suas próprias singularidades, suplantando o genérico e devolvendo a América sua dimensão multifacetada, condição que lhe procuram roubar desde que o impetuoso navegador denominou "indígenas" pessoas a quem simplesmente não conhecia. |