obra inacabada, de Daniel Gomes

  Caro leitor, creio saber, ou pelo menos imaginar, as agruras pelas quais você passou para adquirir este volume. Certamente foi uma escolha difícil, afinal existem outros diversos livros que você gostaria de ler ou ter. Provavelmente você abriu mão de exemplares que seriam muito mais agradáveis ou lhe despertaram maior interesse. Mas foi impelido, por assim dizer, a investir nesta autobiografia. Por motivos óbvios, já que você está inserido em círculos de alto nível cultural, participa de discussões importantes sobre arte e sociedade ou até mesmo é um estudioso das letras. E como uma pessoa como você poderia admitir não possuir a autobiografia de um escritor como eu, considerado um dos mais destacados nomes da literatura em sua língua?

Sim, você não poderia fazer isto, seria uma vergonha, um grande e indelével arranhão em sua reputação de intelectual, na qual você tanto investiu, pela qual você fez tantos sacrifícios, como ler grande parte de meus livros. Compreendo perfeitamente sua posição, eu mesmo já tive esta necessidade de auto-afirmação, de reconhecimento social, e devo confessar que ela foi uma forte propulsora de minha carreira, o que você poderá confirmar nas páginas que se seguem. Isto também mostra que esta necessidade não é tão ruim assim. Mas, não seria melhor para você ler romances repletos de elementos cômicos ou de suspense e que seriam muito mais agradáveis e prazerosos?

Tendo concordado comigo até este ponto, gostaria de oferecer-lhe, como um bom amigo (pois estou prestes a lhe contar quase toda a minha vida), um pequeno guia sobre como ler esta autobiografia, de modo que esta tarefa se torne fácil, rápida e proveitosa. Afinal, não é isto o que você espera de um bom livro?

Em primeiro lugar, determinemos a função de uma obra biográfica. Este tipo de texto deve ser capaz, se bem escrito, de auxiliar na compreensão das obras do autor retratado. A partir disto podemos chegar a conclusão de que é sempre aconselhável, ou até mesmo imprescindível, que o leitor tenha um vasto conhecimento dos trabalhos da pessoa, ou seja e preferencialmente, que ele tenha lido suas obras completas e alguns artigos sobre sua carreira e livros. Provavelmente é este o seu caso, estou certo?

Espero que sim, pois caso eu esteja enganado, sua situação então, é mais grave do que eu imaginava. Afinal, quem leria a autobiografia de um escritor antes de ter lido seus livros?

Bem, tendo você lido meus livros ou não, o segundo ponto pode mostrar-se interessante, vamos a ele. Uma outra questão se refere ao fato de ser necessário ter consciência de que uma autobiografia, por mais estilizada que esta seja, não é um trabalho estritamente literário; e sim um ensaio, uma matéria, uma história real, sobre uma pessoa real, que tem como propósito elucidar fatos sobre a sua vida que sejam imprescindíveis para a compreensão de seus trabalhos; e não ao contrário. O que quero dizer com isto é que não é a personalidade que deve ser analisada, ao menos que você seja um psiquiatra (nesta caso não seria necessário você ter lido minhas obras completas, nem mesmo ler esta autobiografia); mas sim sua obra, pois é esta que tem importância, é esta que será imortalizada. Isto pode parecer óbvio para um leitor como você, mas não é o que tenho visto. Você acreditaria se eu lhe disse que muitas pessoas têm mostrado interesse pela biografia do seu José da Silva?

Creio que você já está meio desnorteado, pois além de se interessar ou fingir – para ser politicamente correto – pela história dos miseráveis e desconhecidos, você já não sabe mais do que se trata esta introdução. Mas ainda resta uma última observação necessária, que diz respeito a natureza deste trabalho em particular. O que pretendo aqui e nas páginas que se seguem é demonstrar como meus amores, por mulheres, pais, filhos, gatos, cadeiras acolchoadas, músicas ou pinturas, ideologias ou religiões, futebol ou cerveja, ou por qualquer outra coisa que eu tenha amado na vida – e você verá que não foram poucas nem as mais comuns – foram determinantes em meus escritos. A questão que se coloca aqui é: se o dinheiro pode ser considerado a mola que move o mundo, certamente é o amor, ou os amores, que movem o homem. Deste modo, meu objetivo com esta autobiografia é revelar a você, estudioso ou curioso, como minhas paixões me inspiraram, me conduziram e até mesmo me forçaram a ser um escritor e a tratar dos temas que tratei. Ou você ainda é um ingênuo sonhador que crê numa espécie de escritor imparcial com uma criatividade mágica?

Caso você ainda acredite em coelhinho da páscoa, então pare de ler agora, ou não, talvez você queira ver onde vai dar isto tudo, pois já está quase no final deste prefácio e não há motivos para desistir agora, então vamos lá. Para finalizar esta introdução e para que você possa se deleitar com minha vida, ou mesmo se irritar com ela – se é que isto já não está ocorrendo –, reservo o direito de fazer uma autodefesa, sempre presente em autobiografias, e que gostaria de deixar clara logo de início. A questão é bastante evidente, quero dizer, um texto autobiográfico não pode ser uma obra completa, afinal, ninguém escreve depois de morto. Deste modo, não fui eu quem escreveu este livro, apesar e contrariamente ao nome dado, e nem mesmo fui eu quem escrevi esta introdução. Pois você acreditaria que eu, amante renomado de obras completas e grande escritor, faria uma obra incompleta ou mesmo começaria um livro por seu início? Você realmente acha que eu deixaria uma obra inacabada?