o ateneu, de raul pompéia
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Arte, estética, estesia é a educação do instinto sexual. A manutenção da existência indivídua tem a razão de ser no instinto de vitalidade da espécie. O momento presente das gerações nada mais é que a ligação prolífica do passado com a posteridade. E a razão de ser das espécies? A indagação não perscruta. Para que o indivíduo perdure, momento genésico da existência especifica no tempo, é indispensável adaptar se as imposições do meio universal. O rio a correr não despreza o detalhe do mais insignificante remanso, nem pode sofismar o obstáculo do menor rochedo no alvéu. O critério inconsciente do instinto é o guia da adaptação. O esforço da vida humana, desde o vagido do berço até o movimento do enfermo, no leito de agonia, buscando uma posição mais cômoda para morrer, é a seleção do agradável. Os sentidos são como as antenas salvadoras do inseto titubeante; vão ao encontro das impressões, avisadores oportunos e cautelosos. A cada mundo de sensações notáveis corresponde um sentido. Os sentidos, teoricamente delimitados, são cinco, múltipla transformação de processo de um único -- o tato, exatamente o sentido rudimentar das antenas. Faz se, tateando instintivamente à procura dos agradáveis: agradável visual, agradável gustativo, agradável tangível, em suma. O agradável é essencialmente vital; se é às vezes funesto, é porque o instinto pode ser atraiçoado pelas ilusões. A perfectibilidade evolutiva dos organismos em função, manifestando. se prodigiosamente complexa, no tipo humano, corresponde à revelação, na ordem animal, do misterioso fenômeno personalidade, capaz de fazer a critica do instinto, como o instinto faz a critica da sensação. A informação de reportagem de cada sentido não desperta, portanto, no homem a atividade cerebral dos impulsos de preferência, de repugnância, simplesmente, como nos outros animais; mas amplia, pela psicologia inteira dos fenômenos espirituais, a variedade infinita das comparações, permutadas de mil modos na unidade do espírito como as peças de um jogo maravilhoso sobre o mesmo pano. Duas são as representações elementares do agradável realizado: nutrição e amor. Os animais inferiores, não favorecidos por um razoável coeficiente de progresso, produzem secularmente a condição da inferioridade; olham, tocam, farejam, ouvem, não provam com demasiado escrúpulo e devoram grosseiramente para depois amar, como sempre fizeram. O homem, por desejo de nutrição e de amor, produziu a evolução histórica da humanidade. A nutrição reclamou a caçada fácil -- inventaram se as armas; o amor pediu um abrigo, ergueram se as cabanas. A digestão tranqüila e a perfilhação sem sobressaltos precisaram de proteção contra os elementos, contra os monstros, contra os malfeitores, -- os homens tacitamente se contrataram para o seguro mútuo, pela força maior da união: nasceu a sociedade, nasceu a linguagem, nasceu a primeira paz e a primeira contemplação. E os pastores viram pela vez primeira que havia no céu a estrela Vésper, expandida e pálida como o suspiro. Mas era preciso que fossem leitos de amor as crinas de ouro e fogo dos leões, e que houvesse marfim, metais luzentes, pedraria, sobre a alvura láctea da carne amada, que não bastavam beijos para vestir; era preciso deliciar a gustação, como requinte das estranhezas. E os homens levaram a conquista aos reis da floresta, ao ventre do solo; foram colher aos ares os íncolas mais raros, emplumados de luz como criações canoras do sol; e foram buscar às ondas os mais esquivos viajores do abismo, singrando céleres, fantásticos, na sombra azul, em cauda um reflexo vago de escamas, -- para morder lhes a vida. Urgiu ainda a fome, urgiu mais o amor e veio a guerra, a violência, a invasão. Curvaram se os cativos ao látego vencedor e foram abatidas as escravas sob a garra da lascívia sanguinária, faminta de membros avulsos, olhos sem alma, lábios sem palavra, formas sem vontade, pretexto miserável de espasmos. Formaram se os ódios de raça, as opressões de classe, as corrupções vingadoras e demolidoras. Mas a cisma evoluiu também, aquela cisma poética da pastoral primeva que buscara os astros no céu para adereço dos idílios. O fundo tranqüilo e obscuro das almas, aonde não chega o tumultuar de vagas da superfície inflamou se de fosforescências; geraram se as auréolas dos deuses, coalharam se os discos das glórias olímpicas: as religiões nasceram. Mas era preciso que fosse palpável o espectro da divindade; as rochas descascaram se em estátuas, os metais se fizeram carne e houve cultos, houve leis, vieram profetas e pontífices ambiciosos. E esta evolução da cisma que fora amante, feita instrumento da tirania, deu lagar às práticas do terror, aos apostolados do morticínio. Mas uma lira ficara da geração primeira de cismadores, e as cordas cantavam ainda e os sons falaram no ar as epopéias do Oriente e da Grécia. Roubou se aos sacerdotes tiranos o monopólio dos deuses para jungi-los à atrelagem do metro; que levassem através dos séculos, o carro triunfal da estrofe, onda sonora de vibrações imortais. E os esculpidores dos ídolos legaram o segredo da fábrica revelando que vinham de um molde de barro aquelas arrogâncias de bronze, que se fazem deuses como as ânforas. E os artistas modernos recomeçaram, chamando a religião ao atelier, como um modelo de hora paga; e gravaram em tinta, pelos muros, as visões místicas da crença. A nitidez artística das formas fizera crer aos homens que morava realmente um espírito sagrado na porosidade do mármore, e que realmente havia em proporções infinitas uma tela de olimpos e paraísos, onde as cores do antropomorfismo artístico viviam soberanas, olhando o mundo lá embaixo, vazando a urna providencial das penas e das alegrias. Decaídas as fantasias sentimentais, reformou se o aspecto do mundo. Os deuses foram banidos como efeitos importunos do sonho. Depois da ordem em nome do Alto proclamou se a ordem positivamente em nome do Ventre. A fatalidade nutrição foi erigida em principio: chamou se indústria, chamou se economia política, chamou se militarismo. Morte aos fracos! Alcançando a bandeira negra do darwinismo espartano, a civilização marcha para o futuro, impávida, temerária, calcando aos pés o preconceito artístico da religião e da moralidade. Sobrevive, porém, o poema consolador e supremo, a eterna lira... Reinou primeiro o mármore e a forma; reinaram as cores e o contorno, reinam agora os sons, -- a música e a palavra. Humanizou se o ideal. O hino dos poetas do mármore, do colorido, que remontava ao firmamento, fala agora aos homens, advogado enérgico do sentimento. Sonho, sentimento artístico ou contemplação, é o prazer atento da harmonia, da simetria, do ritmo, do acordo das impressões, com a vibração da sensibilidade nervosa. É a sensação transformada. A história do desenvolvimento humano nada mais é do que uma disciplina longa de sensações. A obra de arte é a manifestação do sentimento. Dividindo se as sensações em cinco espécies de sentidos, devem os sentimentos corresponder a cinco espécies e igualmente as obras de arte. Da sensação acústica vem a estesia acústica: sentimento nos sons, nas palavras -- eloqüência e música; da sensação da vista, a estesia visual, o sentimento na forma, no traço e no colorido, -- escultura, arquitetura, pintura; da sensação palatal e olfativa nasce o sentimento do gosto e do perfume, -- artes menos consideradas pela relativa inferioridade dos seus efeitos. A sensação do tato, secundada por todas as outras, dá lugar ao sentimento complexo do amor, arte das artes, arte matriz, razão de ser de todas as espécies de estesia. O primeiro momento contemplativo de um amoroso foi o advento da estética, no gozo visual das linhas da formosura, na delicie auditiva de uma expressão inarticulada, que fosse emitida com expressão, na comoção de um contato, na aspiração inebriante do aroma indefinido da carne. A obra d'arte do amor é a prole; o instrumento é o desejo. Depois da arte primitiva e fundamental do tato, a arte do ouvido. A obra de arte é a frase sentida, hábil para produzir emoção; o instrumento é a linguagem. Esta arte devia mais tarde ramificar se em eloqüência propriamente e poesia popular, graças à aproximação híbrida de terceira arte, do ouvido, a música. Com o progresso humano, o sentimento artístico da simetria e da harmonia destacou se analiticamente da arte de amar. E, depois da arte primordial, descendente imediata do instinto erótico, da qual se desprendera, sob a forma selvagem das interjeições primitivas, a arte da eloqüência; e em seguida, sob a forma de expressões homométricas, a poesia popular e a primeira música; nasceram as artes intencionais, de imitação, da escultura, da arquitetura, do desenho. Depois da poesia popular, amorosa ou heróica, veio a rapsódia. Ainda mais, segundo um traçado naturalíssimo de filiação, o sentimento da simetria, trasladado para a esfera das relações sociais, serviu de plano à organização das religiões, filhas do pavor, e das moralidades, invenção das maiorias de fracos. Com o predomínio insensato das religiões, o amor deixou de ser um fenômeno, passou a ser um ridículo ou uma coisa obscena. Por um raciocínio de retrocesso, se ponderarmos que a moralidade é a organização simétrica da fraqueza comum, que a religião é a organização simétrica do terror, que a simetria, isto é, harmonia e proporção, é a norma artística das imitações plásticas da ingênua admiração da criatura primitiva, e que esta admiração prazenteira, testemunhada por uma tentativa de desenho ou de estátua, por um canto popular ou por uma interjeição veemente, nada mais é do que um modo acentuado de um esforço de atenção, e que a primeira atenção dos homens do principio, -- a lenda de Adão que o diga, -- devia ser do indivíduo de um sexo para o indivíduo de outro sexo, teremos averiguado o aforismo paradoxal de que a arte subjetivamente, o sentimento artístico nas suas mais elevadas, mais etéreas manifestações, é simplesmente -- a evolução secular do instinto da espécie. Esta é a sua grandeza, e por isso vai zombando, através das idades, das vicissitudes tempestuosas do combate pela nutrição, dos próprios exasperos homicidas do amor. A arte é primeiro espontânea, depois intencional. Manifesta se primeiro grosseiramente, por erupções de sentimento, e faz o amor concreto, a interjeição, a eloqüência rudimentar, a poesia primitiva, o primitivo canto. Manifesta se mais tarde, progressivamente, por efeitos de cálculo e meditação e dá o epos, a eloqüência culta, a música desenvolvida, o desenho, a escultura, a arquitetura, a pintura, os sistemas religiosos, os sistemas morais, as ambições de síntese, as metafísicas, até as formas literárias modernas, o romance, feição atual do poema no mundo. As manifestações espontâneas são coevas de todas as sociedades; a poesia popular, por exemplo, não desaparece, nem a eloqüência, ainda menos o amor. As manifestações intencionais, ampliações, aperfeiçoamentos do modo primitivo de expressão sentimental, sujeitam se aos movimentos e vacilações de tudo que progride. O coração é o pêndulo universal dos ritmos. O movimento isócrono do músculo é como o aferidor natural das vibrações harmônicas, nervosas, luminosas, sonoras. Graduam se pela mesma escala os sentimentos e as impressões do mundo. Há estados d'alma que correspondem à cor azul, ou às notas graves da música; há sons brilhantes como a luz vermelha, que se harmonizam no sentimento com a mais vivida animação. A representação dos sentimentos efetua se de acordo com estas repercussões. O estudo da linguagem demonstra. A vogal, símbolo gráfico da interjeição primitiva, nascida espontaneamente e instintivamente do sentimento, sujeita se à variedade cromática do timbre como os sons dos instrumentos de música. Gradua se, em escala ascendente u, o, a, e, i, possuindo uma variedade infinita de sons intermediários, que o sentimento da eloqüência sugere aos lábios, que se não registram, mas que vivem vida real nas palavras e fazem viver a expressão, sensivelmente enérgica, emancipada do preceito pedagógico, de improviso, quase inventada pelo momento. Há ainda na linguagem o ritmo de cada expressão. Quando o sentimento fala, a linguagem não se fragmenta por vocábulos, como nos dicionários. É a emissão de um som prolongado, a crepitar de consoantes, alteando se ou baixando, conforme o timbre vogal. O que move o ouvinte é uma impressão de conjunto. O sentimento de uma frase penetra nos, mesmo enunciado em desconhecido idioma. O timbre da vogal, o ritmo da frase dão alma à elocução. O timbre é o colorido, o ritmo é a linha e o contorno. A lei da eloqüência domina na música, colorido e linha, seriação de notas e andamentos; domina na escultura, na arquitetura, na pintura: ainda a linha e o colorido. Na sua qualidade de representação primária do sentimento, depois do fato do amor, a eloqüência é a mais elevada das artes. Daí a supremacia das artes literárias, -- eloqüência escrita. A eloqüência foi a principio livre, fiel ao ritmo do sentimento; influenciada pela música monótona dos mais antigos tempos, cadenciou se em metro regular e monótono como a música. Aproveitada como recurso mnemônico, libertou se da música, guardando, porém, a forma do metro igual e da quantidade equivalente, que havia de ser um dia a metrificação da sílaba, que havia de dar em resultado a monstruosidade da rima, o calembur feito milagre de perfeição. A música seguiu à parte a sua evolução. Na arte da eloqüência da atualidade acentua se uma reação poderosa contra o metro clássico; a critica espera que dentro de alguns anos o metro convencional e postiço terá desaparecido das oficinas da literatura. O sentimento encarna se na eloqüência, livre como a nudez dos gladiadores e poderoso. O estilo derribou o verso. As estrofes medem se pelos fôlegos do espírito, não com o polegar da gramática. Hoje, que não há deuses nem estátuas, que não há templos nem arquitetura, que não há dies iroe nem Miguel Ângelo; hoje que a mnemônica é inútil, o estilo triunfa, e triunfa pela forma primitiva, pela sinceridade veemente, como nos bons tempos em que o coração para bem amar e o dizer não precisava crucificar a ternura as quatro dificuldades de um soneto. Qual a missão da arte? Originaria da propensão erótica fora do amor, a arte é inútil, -- inútil como o esplendor corado das pétalas sobre a fecundidade do ovário. Qual a missão das pétalas coradas? De que nos serve a primavera ser verde? As aves cantam. Que se aproveita do cantar das aves? A arte é uma conseqüência e não um preparativo. Nasce do entusiasmo da vida, do vigor do sentimento, e o atesta. Agrada sempre, porque o entusiasmo é contagioso como o incêndio. A alma do poeta invade nos. A poesia é a interpretação de sentimentos nossos. Não tem por fim agradar. E, depois, reclamar títulos de utilidade às divagações graciosas de uma energia da alma, que significa em primeira manifestação a própria perpetuidade da espécie?! Além de inútil, a arte é imoral. A moral é o sistema artístico da harmonia transplantado para as relações de coletividade. Arte sui generis. Se é possível eficazmente o regime social das simetrias da justiça e da fraternidade, o futuro há de provar. Em todo caso é arte diferente e as artes não se combinam senão em produtos falsos, de convenção. Poema intencionalmente moral é o mesmo que estátua polícroma ou pintura em relevo. Apenas uma coisa possível, nada mais; há também quem faça flores, com asas de barata e pernas. A verdadeira arte, a arte natural, não conhece moralidade. Existe para o indivíduo sem atender à existência de outro indivíduo. Pode ser obscena na opinião da moralidade: Leda; pode ser cruel: Roma em chamas, que espetáculo! Basta que seja artística. Cruel, obscena, egoísta, imoral, indômita, eternamente selvagem, a arte é a superioridade humana -- acima dos preceitos que se combatem, acima das religiões que passam, acima da ciência que se corrige; embriaga como a orgia e como o êxtase. E desdenha dos séculos efêmeros. |
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