literatura ou morte, de Daniel Gomes
Sub convervatione formae specificae salva anima. Raimundo Lulio Estou em uma rua, não a reconheço. Espere, o que o personagem está fazendo em uma rua desconhecida, esta é outra história. Vamos começar de novo. Estou em um quarto, não, estou de frente a uma folha de papel, não; já sei. Estou em frente ao computador, a tela está vazia, não sei por onde começar. Digito palavras sem nexo e letras a revelia, me viro e pego um volume de contos; sim, vou começar com uma citação em latim tirada de um conto de Poe, vamos escolher uma... Tudo bem, vamos continuar, ou melhor, começar. Estou de frente a tela em branco de meu computador em busca de uma idéia para o conto que tenho que entregar amanhã e de repente ouço aquele peculiar ruído inventado por um nerd milionário que significa que recebi um e-mail. Abro minha caixa postal e encontro uma mensagem anônima na qual está escrito: OLHE PELA JANELA. Não compreendo bem, mas me levanto, pego um cigarro e vou em direção a janela de meu quarto. Olho para fora e vejo apenas minha velha e conhecida rua, totalmente deserta, pois são três horas da manhã. Volto ao computador e tento retomar meu trabalho. Procuro organizar as idéias; o personagem é um escritor em crise de criação, atormentado pelos demônios de sua vida particular, em busca de uma idéia razoavelmente boa para seu novo conto. Ele recomeça a escrever... Estou de frente a tela do computador, que aguarda meus comandos para materializar mais uma história de minha autoria. Dou mais um trago no cigarro e tento me convencer de que algo está por vir. Então, recebo outro e-mail, anônimo novamente e com outra única frase: OLHE PARA A JANELA. Subitamente me viro na cadeira e olho fulminante para a janela de meu quarto; nada. Apago o cigarro e tento resistir a tentação de ascender outro, tenho que escrever. Certo, algo está por vir, a semente de uma idéia começa a crescer em sua mente, tudo termina em um crime hediondo, mas descrito brevemente ou talvez apenas sugerido. Falta um motivo, uma situação que o torne significativo, falta o suspense do desfecho final, uma mulher no enredo... De repente, ouço, mais uma vez, aquele som irritante, outra mensagem, igual as anteriores: OLHE PARA TRÁS. Cansado da brincadeira e disposto a terminar minha história, fecho minha caixa postal e desconecto o computador, mas cedo a tentação de ascender outro cigarro. Revejo mentalmente minhas idéias: um escritor indeciso, um assassinato hediondo e sem motivo aparente, uma situação cotidiana, um acontecimento obscuro, com elementos cômicos e de suspense e um final seco; moral da história no fim. Tudo bem, ele de frente a tela do computador, o quarto enfumaçado, a rua deserta, na tela algumas palavras em outra língua tentam servir de inspiração; o mundo lá fora está em desarranjo e algo precisa ser feito... Mas, quando decido adicionar uma temática política ao meu trabalho, recebo mais um e-mail, o incômodo ruído se faz ouvir mesmo com a caixa postal fechada e o computador desconectado, o que é muito estranho, mas nada comparado ao que está escrito nesta última mensagem e ao que acontece quando ela é lida: VOCÊ ESTÁ MORTO. Moral da história A morte, como tudo na vida, tem dois lados (ou mais): o bom é que escrevi meu conto e o ruim é que foi o último. |