sem título, de carlos frankiw
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Grito até garganta secar, lembrança estranha do ontem. A sensação ainda me permanece, mas a memória de ontem me ganha uma tonalidade acizentada de indiferença natural de distância. A garganta, afinal, hoje seca, mas de tabaco árido, é indizível o primeiro gole de água gelada sobre tecido tão quente e seco. Sinceramente, essas cicatrizes não me incomodam tanto, é ceticismo demais para pensar que determinadas sensações, de qualquer ordem, não deixem, cedo ou tarde, de serem isso, secas. Poeirentas, tenho calças cobertas de terra seca, e lábios rachados de ressecados, e caminhar é pegar com olhos nem sempre fotogênicos fragmentos, mesmo que estes se amarelem. O que incomoda, particularmente, talvez, diria apressado, inicialmente, é o único da situação, o singular, esse um que não se repete, ainda que esteja guardado em arquivos enferrujados neuroniais. Se soubesse descrever cenas, coisa que sou pouco familiar, diria que foi destes "momentum" em que as coisas param. É simples demais para caber em palavra, como torcer que a tinta da máquina de escrever se resseque ante ausência de umidade no deserto, rápido demais. Ademais, se sou de tentar descrever cenas, elas sempre tem a mesma tonalidade, ora outonal, ora nublada. E a melhor imagem de outono sempre me foi folhas quebradiças, amareladas ou amarronzadas, ressecadas, enfim, sempre ora caíndo, sendo ao chão, ora pisoteadas, ora pegas. E o que mais tenho apego em dias de chuva, apenas para ter algumas considerações acerca de nubladez, já que as palavras aqui se dedicam, em início, em aridez, é justamente da ventania e dos raios. Não pelo som, mas por saber que a eletricidade existe independente da chuva, e que é particularmente intensa em situações secas. E a cena foi simples, foi um grito dado até ressecar toda a boca, passar pela garganta, até perceber que talvez até os pulmões estivessem cobertos por poeira. E foi a sensação mais estranha, mais liberta, não vazia, mas apenas sem adjetivos, seca, enfim. Gritos, geralmente aparentam alegrias, dores, desesperos, e, no entanto, o grito dado foi apenas porque queria sentir alguma coisa de limite, alguma coisa de único. E esta unicidade, mesmo que a pudesse generalizar a tudo que senti com intensidade, esse um, apenas esse, foi o que incomodou. E, ainda incomoda. É como remexer num porão ou num baú escuro e esquecido. De preferência, sabendo o que lá foi guardado, considerando que, imprevistamente, se é o único a ter acesso a este baú. E remexer, sentir e roçar no fundo a poeira, e retirar, espirrando um catarro meio endurecido demais. E, na certeza, retirar o que foi colocado, e perceber que a unicidade que existia da última vista se transformou numa nova unicidade. Não que o objeto mude demais, afinal, ele estaria estático, talvez, mais empoeirado, mas, algo mudou, mesmo que seja pequeno, de veludo para cactus. E é inexplicável, transitório seria um termo melhor, por isso incomoda. Em matéria, considerando aqui matéria enquanto tangibilidade sensorial, a mudança não se produz, mas parece que as palavras que invocam se diferem, tornam o único anterior não perdido, mas seco, imobilizado de ser alguma coisa no momento do presente. Deve ser por isso que feridas que sangram se tornam em casca avermelhada escurecida, dura e ressecada, até serem cicatriz, quando se tem percepção suficiente de saber o "momentum" do arranco da casca. E é dessa sensação de desconforto incômodo que penso em liberdade e limite. No mínimo exótico, algum desavisado diria de imediato, afinal prontidão é mais reflexo que reflexão, que a melhor imagem que associo à liberdade é a desses velhos prédios, abandonados, de teias de aranhas e poeiras que sempre persistem a qualquer tentativa, com algumas janelas quebradas donde adentram raios amarelados de tarde, com papéis esvoaçando dizendo ininteligibilidades ao olhar presente, onde se grita até se secar e na secura ser parte do ambiente. É uma sensação de limite, afinal, só se seca até onde o ar se permite, mas é um limite com uma sensação particularmente interessante em se sentir. E é estranho que, neste "momentum" imaginário, a maior liquidez fornecida talvez seja a de olhos que não se ressecam demais, ou, da acidez do estômago fazendo úlceras, pois afinal, a fumaça que trago, considerando que esta é uma concepção de liberdade individualizada demais, é assecada também, o suficiente para despertarem ácidos contra tecidos vivos. Os lábios, afinal, se racham, até sangrarem e serem coagulados em casca, mas persistem sua sinfonia, no caso de se pensar que haja alguma liquidez nisso. Minto, há algo nestes lugares que lembre ensalivação, na verdade são bocas espumadas, pois fazem aparentar ao grito um tom mais de fúria, mesmo que este tenha outra tonalidade no que constitui seu sentimento a ser berrado. E é uma terra avermelhada que cobre o chão, afinal, é bom dizer, a poeira se concentra nos ferros enferrujados e em peças de madeira de funcionalidade hoje perdida ao menos para meus olhos. E é um lugar em que se vestem camisas-de-força abertas em braços livres, do contrário, não faria sentido se dizer que se fumam nestes lugares que imagino, afinal, já me defini enquanto cético demais, ao menos ao ponto de não ser sobrenatural ou inatural demais no que sinto e penso. O sons que se ouvem, neste lugar, são longíncuos e sempre ecoantes, e não são clássicos, ardentes, firulentos demais. São gritos misturados a um vento insosso, nem quente nem frio, mas seco, desses que deixam seu som ecoarem, como uma guitarra enferrujada ressoando ou uma música do Velvet Underground. Talvez, o maior contraste sonoro, sejam as máquinas mecânicas de escrever de tintas que se ressecam sempre antes do fim, às vezes mesmo antes do começo, que sempre dão esse tom fragmentário às folhas envelhecidas de papel que, à primeira vista, ininteligíveis, cohabitam esvoaçando pelo espaço de sombras cinzas e amarelidão solar de tarde, sempre num ressoar de captar e tentar segurança num lugar em que as coisas ouvidas não se prendem, mesmo no papel. E, toda vez que se começa com ardor a escrita, tecla a tecla, a tinta se renova, para se acabar antes que haja algo de circular, de completo demais, no que se joga em palavra nestes papiros que esfarelam lentamente. O mesmo, à título do que se escreve sobre esta imagem, se dá aos carvões que também subsistem por ali e que também são demandados à palavras, mas têm a vantagem de possuírem uma criatividade pela ausência de barreiras e teclas que agrilhoam, portanto, estes dão incompletude mais a imagens que palavras, sendo instrumento de excelência para descrições de percepções oculares, reservada à máquina, dando um limite ao carvão, ao menos amplitude para que se dêm palavras mais inteligíveis a outras sensações. O comum, em ambos os casos, é o desgarramento do sem fim aparente a que se destinam descrições, gravações e sensações, de qualquer ordem que seja. Talvez, mais bizarro, diria ou acharia o desavisado, que penso esta imagem, que parece tão individual, tão única, tão um, enquanto a melhor ponte para me significar enquanto ser social. Não, o galpão, apesar de ter janelas, altas demais para se vislumbrar algo além do sol parado amarelado de tarde e outono, porque é imagem de outono, não, meu caro, não, este galpão não tem porta nem portões, os cadeados, apesar de rabiscados com carvão na parede, são as próprias paredes de tinta rachada. E, quando penso em sociabilidade, penso que não somente eu, mas todos têm estes galpões imaginários onde vivem. São galpões ressecados, onde guardamos nossas coisas, sensações, memórias, amontoadas caóticamente demais para serem desordenadas por nossa própria vontade. É preciso também dizer isso, completar alguma coisa para que aparente ter mais conforto, afinal, a completude, mesmo impossível, tem sempre aquele relaxamento, mesmo que em segundo, ou em pedrinha de ampulheta única que cai e não volta, mas ao menos nos fica a imprensa tingidamente tenra. E são galpões que brotam, ora muito perto, ora longíncuos uns dos outros, galpões que se aproximam e se afastam, se isolam e se ajuntam, dependente da vontade de seus hóspedes que são. Afinal, seu movimento, mesmo que não aparente movimento o fato de se imaginar viver em estruturas tão aparentemente estabelecidas pelo solo, é o maior controle que se pode ter em consciência deste lugar onde concebo vivermos internamente. O resto, é percepção, e irracionalidade, mesmo as coisas que adentram e se amontoam nos cantos, afinal este galpão que nos serve de baú, não adentram nossa esfera de controle, afinal, qualquer imagem, qualquer coloração desta, sempre tem detalhes que nos escapam como areia de duna que foi captada por uma ampulheta amarronzada de madeira e vidro. Deve ser por isso que penso ser todo ato comunicativo, mesmo que se faça pelo silêncio das mãos por fora e em gritos por dentro, se constitui únicamente através de grito. Porque os galpões uns dos outros que se comunicam, mesmo distantes, são grandes demais, todavia acústicos o bastante, para que se possa gritar, e ouvir nos ecos, e, tendo um pouco de paciência na capacidade de distinguir ou apenas ter vontade de querer ouvir, algum tipo de grito que não seja seu, e aí, se estabelece, na confusão sonora, um ato de comunicação. É interessante se perceber que estes gritos, nossos ou de outros, também interagem em nossas próprias estruturas internas de galpão abrasivo, ora ressoando e quebrando vidraças e vigas que nos ferem, ora nos intimalizando com uma sensação de conforto que, por percebermos não habitarmos sozinhos nesses galpões, nos dá algum conforto por pensarmos não sermos únicos, únicas que sejam as formas dessa estrutura, que pensam existir internamente a elas. E, também de interesse é perceber que o contato feito na internalização por gritos, o conceber a conversa, da forma que for, no berro, sempre mexe com as estruturas de galpão corroído que nos enfurnamos, e, como o baú escuro e esquecido que colocamos nossas coisas, nunca nos é o mesmo, apenas inconstantetemente remexido e transitório. E, importante ressaltar, mesmo que haja movimento nesse galpão, a sociabilidade, a comunicação, independende de distâncias, apenas existe, mesmo que não se queira espernear resposta alguma, então sempre há algo de transfigurado na estrutura. Nada há de sórdido nisso, é bom logo se dizer, afinal, não se procura aqui dar algum juizo de valor a algo que, por sua aparência empoeirada, lembre fedor de pântano. Não, não gosto de pântanos, é estático, é calmo e umedecido demais para eu poder extrair alguma coisa dele de liberdade e limite, ao contrário, diria que pântanos são águas com correntes que puxam apenas para baixo, mas que nunca saem de lugar algum, e, estático é morto, então pântanos não me são lugares de vida, mas de morte, em minha imaginação de habitações internas. Ademais, dada a preferência em lugares de ventanias, elétricas estáticas, e secura, pântanos me lembram coisas deprimentes e opressivas, coisa que aqui não me interessa pensar, afinal são ares parados que subsistem em pântanos. É, apenas reiterando, é seco, tem aparência abrasiva, laranja enferrujada nas vigas de metal, sombreada acizentada e amarelada por sol de tarde, e, claro, ressecada, e aberto o suficiente para que caminhemos, e enevoado de menos para que nos ceguemos de branco de neblina; tal descrevo o lugar que penso. E, para terminar, toda lágrima, mesmo que instantaneamente seca pela aridez do lugar, detém minimalísticamente, um pouco de umidez. Mais adentro, olhos que vêem, mesmo que sempre olhos que entrem ciscos, precisam de algo líquido, assim como, mais abaixo e avermelhado, para espumar e dar tom fúria ao grito na boca, é preciso um mínimo de liquidez. Então, para terminar, penso que existam, junto às calças beges que se vestem junto às camisas de força brancas, libertas nos braços e avermelhadas pela terra que os ventos trazem sem cessar, em seu bolso, em qualquer parte, se encontre um cantil, além dos naturais fósforos e cigarros intermináveis. Sim, um cantil, cheio de algum líquido sem sabor, mas gélido o suficiente para refrescar e termos de novo uma sensação única de contraste e de elétrico, de choque, mesmo que de elétrico estático e de choque sensitivo. Para que, dessa sensação de contraste de "momentum", para que desse refresco de rapidez, sempre que se continue, se tenha força para se gritar até atingir o limite, e depois ter mais um gole de contraste. Para que se tenha como berrar até ressecar pulmão e garganta, para que se possa ouvir outros berros, para que se possa silenciar e ser silenciado por outros berros, ou pelos próprios berros que constituem o ato comunicativo, para que haja continuidade, enfim, um mínimo de líquido que mantenha alguma coerência e consciência ao esperneio, bem como à outras sensações, como ouvir e tatear. E, é claro, inconstantes são os momentos de intensidade do refrescar, pois nada há de mecânico, mais seco que estejamos, resguardando ao "momentum" da liquidez um metrônomo de precisão e regulação de bel-prazer individual. E, é claro, enfim, este cantil nunca se esvazia, nunca muda de tessitura ou mesmo de massa, apenas permanece o mesmo enquanto ainda se deseja ou se pode continuar a habitar em galpões de onde se berra e de onde somos berrados. |
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