manga com leite

 

n. 15 - "peixe solúvel"

"Não é o medo da loucura que nos vai obrigar a
hastear a meio-pau a bandeira da imaginação"
André Breton

O surrealismo, uma das mais radicais e fecundas vanguardas européias do século XX, desenvolve-se como parte do dadaísmo, ao qual veio a se opor na medida em que o pensamento do grupo substituiu a negação pela idéia de libertação. O projeto dadaísta, destrutivo por excelência e avesso a qualquer programa ou proposta, acaba por evidenciar certa esterelidade a qual se oporá o manifesto surrealista, que visava encontrar a positividade do homem e da vida.

O pensamento surrealista buscava um lirismo novo, moderno e subversivo, ao qual fez eco o culto poético do mal como rebelião dialeticamente necessária a luta pela liberdade, anteriormente praticado pelos autores românticos. O grupo surrealista pretende perceber nos signos do cotidiano as revelações do fantástico, o que equivale a demonstrar que o mundo do acaso e da imaginação pode suplantar o que se considera real. Assim, os mundos dominados pelo fantástico revelam-se projeções do eu interior. Inspirado em Freud, o líder e autor do manifesto surrealista, André Breton, diz: "o que há de admirável no fantástico é que já não há fantástico: não há senão o real".

No centro deste novo pensar sobre a arte estava um severo julgamento da literatura e uma forte disposição no sentido de explorar a linguagem de um outro modo. A literatura, disse Breton numa frase que se tornaria famosa, "é um dos mais tristes caminhos que levam a toda parte". Libertar as palavras das suas lamentáveis rotas habituais, que haviam reduzido a escrita a uma coleção de "alíbis literários", foi uma tarefa a qual os surrealistas se entregaram com obstinação. Porém, desde os primórdios de sua história, mais e mais eles pareciam trabalhar a seu favor.

Em "les champs magnétiques", que seria publicado no primeiro número da Littérature, revista inicial do movimento e de título bastante irônico, Breton e Soupault deixavam claro seu "louvável desprezo por qualquer efeito que fosse considerado literário". Porém, mais que mera negação de espírito dada, o texto já se apresentava como resultado de uma nova experiência em termos de escrita: elaborada em condições especiais, essa composição a quatro mãos foi criada em apenas quinze dias num café em Paris, onde os autores passavam de oito a dez horas diárias escrevendo até a exaustão, sem observar qualquer preocupação de ordem lógica.

Aos olhos do grupo, a escrita automática surgia, portanto, como a grande alternativa a literatura. Uma vez descoberta, ela se tornou a palavra de ordem surrealista, abrindo a possibilidade do exercício da escrita fora dos parâmetros indesejáveis de qualquer linguagem que fosse considerada "literária".

Daniel Gomes
Editor de Bizarrona