lembranças de morrer, de Karl Von Hollermann

  Novembro de 1987, Lisboa, Portugal.

Dentro de um escuro píer eles ouvem o barulho do mar. Marcos ajeita o seu monóculo e observa as horas, 11:30; Pascoal fica ansioso. Algum tempo depois, Mário Campos chega junto com os três mercenários, para o alívio dos outros.

_ Sente-se camaradas. Diz Marcos, um senhor baixo e esguio, com seus poucos cabelos brancos e seu monóculo estilo "pince ez".
_ Quando veremos a grana. Reclama um mercenário.
_ Logo, logo. Diz Pascoal, acalmando-o.

A frente de um quadro negro iluminado, Mário Campos traça os planos:

_ Camaradas mercenários, aqui está o Banco Internacional de Lisboa, onde guardam-se fundos dos Estados Unidos; redistribuir esta renda é nosso primeiro passo, pois não teremos fundos para o plano principal.
_ Qual será o plano principal?
_ Quanto ganharemos?
_ Acalmem-se camaradas, um passo de cada vez, primeiro o banco, depois o plano principal, e depois o seu dinheiro, que será realmente satisfatório. Certo?
_ Certo!
_ Então, encontre-nos neste endereço, é nosso esconderijo, lhes passaremos o material e mais informações. Diz camarada Marcos, entregando-lhes um papel.

No dia seguinte, Marcos, Pascoal e Mário Campos tomam seu café com charutos no seu modesto esconderijo, enquanto aguardam os mercenários.

_ Será que eles conseguem?
_ Este é apenas o primeiro passo, o grande resgate vem depois. Diz Mário.
_ O resgate vai ser bom para esses portugueses aprenderem a roubar nossa cultura. Fala camarada Marcos.
_ Eles chegaram.

Após alguns minutos revendo o plano, os mercenários pegam armas, um furgão e saem em busca do Banco Internacional de Lisboa.

Enquanto isso, os três ex-comunistas tentam simultaneamente disfarçar sua ansiedade. Pascoal diz:

_ Como vamos explicar para estes mercenários cariocas alienados quem é Alvares de Azevedo.
_ Nós contratamos brasileiros para isso, eles vão ter que lutar pela causa, camaradas. Explica Marcos.
_ Olha aqui Marcos, a época da ditadura já acabou, o comunismo é passado entende, passado! Diz Mário Campos.
_ Eu não vou discutir isso, camarada Mário; ninguém está falando de comunismo, o importante é que temos que resgatar algo, essa é nossa causa!
_ Voltando ao assunto, senhores, temos que dar uma aula sobre Alvares de Azevedo para eles, assim eles podem entender nossa causa; eu recrutei os mercenários mais inteligentes que encontrei!

Todos concordam. Enquanto aguardavam os mercenários, eles começavam a discutir como seriam os ensinamentos sobre o poeta. Após muita discussão, eles decidiram que Marcos, o reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, formado em letras, explicaria quem foi Alvares de Azevedo. Pascoal, sociólogo experiente, explicaria a função sócio-cultural do poeta. Mário Campos, um dos líderes do PT, faria os planos para o próximo passo.

Na manhã seguinte todos tomam café, o assalto foi um sucesso, mas com um porém, um dos mercenários foi capturado enquanto procurava algo em meio à alguns disquetes no banco.

_ Ele não fará falta. Diz um mercenário.
_ É bom que sobra mais grana para nós; diz o outro.
_ Nunca é bom ter perdas deste tipo, esclarece Marcos, mas agora não podemos fazer mais nada.
_ Prontos para a aula, camaradas? Pergunta Pascoal.

Os mercenários, mostrando algum interesse, acenam positivamente. Marcos, o reitor, se levanta e inicia o seu discurso sobre o poeta romântico:

_ Manuel Antônio Alvares de Azevedo foi o maior poeta romântico do Brasil, ele cursou direito em São Paulo em 1847, e lá em sua faculdade começou a escrever sua obra (poesias, contos, ensaios, traduções, etc.). Sua primeira publicação foi em 1853, ele reuniu seus melhores poemas no seu melhor livro: "Lira dos vinte anos". Após isso, ele publicou livros não menos importantes até chegar em 1942, quando publicaram suas obras completas. O poeta tinha influências visíveis de Lord Byron e Musset. Suas poesias falavam de amor, já que era romântico, e de morte; Alvares de Azevedo tinha tuberculose, esta doença o levou a morte em 1852, quando tinha apenas 21 anos, com somente 5 de produção literária. Ele nasceu em São Paulo, este poeta foi um exemplo brasileiro.

Os mercenários, por incrível que pareça, prestaram atenção e até gostaram do que ouviram, devido ao grande poder de oratória do reitor. Foi a primeira aula de suas vidas, eles não sabiam nem ler; como crianças inocentes, começaram a fazer mil perguntas... esclarecidas e respondidas estas perguntas, Pascoal, o sociólogo, tomou o lugar de professor e começou seu discurso sobre a importância sócio-cultural do poeta brasileiro:

_ Bem, camaradas, o romantismo, movimento literário ao qual Alvares de Azevedo fazia parte, não foi um movimento brasileiro e nem teve tanta importância em nosso país. O romantismo foi criado no século XVIII na Europa, é claro que como todo movimento literário, o romantismo tinha padrões que deviam ser seguidos; e como Portugal era o país europeu mais ligado ao Brasil, os portugueses ditavam as regras românticas para os brasileiros. Aí é que entra Alvares de Azevedo, sua maior contribuição para o Brasil foi libertar-se da influência portuguesa e criar um caminho próprio para a literatura brasileira. Este poeta libertou o Brasil de mais um tipo de opressão, e um dos piores tipos, a imposição cultural.

Depois desta aula dada por Pascoal, com um tom não menos eloqüente que Marcos, os mercenários estavam tomados por essa insanidade fanática, eles pareciam ter sido contagiados pela causa, a qual eles nem sabiam qual era. Estavam loucos para ouvir poesias, estavam até querendo aprende a ler. Após outras milhares de perguntas, os mercenários deixaram, enfim, Mário Campos contar-lhes qual é o tão importante plano principal:

_ Bom, estou muito satisfeito por vocês gostarem dos ensinamentos, vou explicar-lhes agora, o nosso plano principal. Vejam bem, Alvares de Azevedo era um poeta brasileiro, ele pertencia ao Brasil, certo? Então, ele escrevia seus livros manuscritamente, esses seus manuscritos ainda existem e por algum motivo que nós não entendemos, eles – os manuscritos – pertencem a Portugal e não ao Brasil. E o mais interessante é que ninguém faz nada em relação a isto, nenhuma autoridade, nenhum brasileiro, ninguém, entendem? Então, estes manuscritos, muitos poemas importantes e conhecidos, estão em exposição no Museu de arte Manuel Basílio, no centro de Lisboa. O nosso plano é resgatar estes manuscritos e devolver ao Brasil, seu país de origem. O que acham?

Enquanto isso...Numa sala era fria e escura.

_ Você não vai mesmo me dizer onde esconde seus comparsas? Eles roubaram 5 milhões em dinheiro americano, se você me disser sua pena poderá cair pela metade, meu caro.
_ Eu não vou dizer, vocês vão matá-los, eu conheço a polícia.
_ Olhe, você não está no Brasil, aqui é diferente, eu lhe dou garantia de vida para seus amigos. E mais, se eles devolverem o dinheiro, suas penas de pelo menos 10 anos, vão cair pela metade.
_ Sério?
_ Claro, meu caro.
_ Se for para o bem deles, então eu digo.

Mais tarde...

_ Como eu estava lhes dizendo – Mário Campos ajeita os óculos – esses portugueses são burros mesmo, guardam dinheiro estadunidense a sete chaves, enquanto a cultura quase não tem segurança.

Pascoal se levanta:

_ Nós já fizemos os planos, são dois seguranças sem armas de fogo, os manuscritos estão no primeiro andar. Vamos precisar de 3 homens, eu vou com vocês. Você (aponta para um mercenário) rende os 2 seguranças desarmados. Você (aponta para o outro) vigia a porta para ninguém entrar nem sair, enquanto eu recolho os manuscritos. Teremos que agir depois de amanhã, logo as 8 da manhã quando abrir o museu, vai ser fácil se tudo correr como planejado.
_ Parece fácil. Diz um mercenário.
_ Porque não vamos amanhã? Diz o outro.
_ Porque nós precisamos ter os passaportes para o Brasil em mãos, precisamos de um outro carro, disfarce e novas armas.

Quarta-feira, dia D, 6:00.

_ Estão todos preparados?

Os mercenários acenam positivamente.

_ Logo após o resgate voltaremos para a base, e amanhã bem cedo partiremos. Diz Mário Campos.
_ Tome os comunicadores. Os passaportes estão em ordem.

Confiantes e otimistas eles partem.

Ficam no esconderijo Marcos e Pascoal, muito ansiosos é claro; eles preparam o primeiro café do dia, na verdade era um capuccino. Acendem os charutos silenciosamente. Em meio aquele ambiente enfumaçado, onde encontram-se os dois insanos intelectuais fanáticos ex-comunistas, há também um livro; Pascoal pega-o e passa para Marcos, em silêncio ele abre o livro, o qual agora vê-se o título: "Lira do vinte anos". Marcos realiza um ritual cotidiano, o sorteio clássico, ele se pronuncia:

_ Caiu no meu preferido.

Solidão

Nas nuvens cor de cinza do horizonte
A lua amarelada a face embuça;
Parece que tem frio, e no seu leito
Deitou, para dormir, a carapuça,

Ergue-se, vem da noite a vagabunda
Sem xale, sem camisa e sem mantilha,
Vem nua e bela, procura amantes
É doida por amor da noite a filha.

As nuvens são frades de joelhos,
Rezam adormecendo no oratório;
Todos têm o capuz e bons narizes
E parecem sonhar o refeitório

As árvores pran...

_ Grupo de resgate para base, grupo de resgate para base.
_ Macacos me mordam, fui interrompido na melhor parte. Indigna-se Marcos.

Pascoal pega o comunicador e, após alguns segundos, volta-se para Marcos:

_ A operação foi um sucesso, eles estão vindo, prepare uma mesa de leitura enquanto eu preparo o café; o poema fica para depois, agora temos o original.

Os dois eficientemente preparam tudo. Cronologicamente chegam os três: Mário Campos com duas valises negras nas mãos e os mercenários bem armados dando cobertura.

_ Não fomos seguidos; diz um mercenário.

Um êxtase que chega a ser infantil tomou o pequeno barraco, os três ex-comunistas avançam cuidadosos nos papéis, que estavam relativamente bem conservados e apesar da letra em estilo gótico, escrito em um bom português, eles compreendiam cada sílaba. Os poemas que eles liam em papéis originais, já os tinham decorado; lendo aqueles manuscritos, eles nem prestavam atenção no significado, o êxtase os impediu de fazerem qualquer coisa, mal conseguiam pensar, eles sentiam aquele tom de desejo realizado, de vitória absoluta... Isso até ouvirem um grande clichê que cortou efetivamente o momento de vitória:

_ Vocês estão cercados, saiam com as mãos para cima.

Uma grande tensão tomou o recinto.

_ Você disse que não fomos seguidos, idiota!!!
_ E não fomos mesmo. Diz um mercenário carregando sua automática.
_ Idiota, idiota, idiota.

Por iniciativa dos mercenários, começa-se um grande tiroteio, paredes perfuradas, balas para todos os lados. Uma insanidade obsessiva toma conta de Marcos, ele recolhe cada manuscrito e leva para o banheiro, Pascoal e Mário Campos, sem saberem o que fazer, o acompanham. Um mercenário é abatido, os tiros estão por todos os lados; eles sentem a fria morte se aproximando, render-se? Nunca. Como um último ato, Marcos distribui partes de um mesmo poema para todos. As paredes de cortiça do pequeno banheiro não agüentariam. Enquanto sente seu corpo sendo perfurado, Marcos inicia o poema:

Lembranças de Morrer

Quando em meu peito rebentar-se a fibra
Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nem uma lágrima
Em pálpebra demente.

E nem desfolhem na matéria impura
A flor do vale que adormece o vento,
Não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste passamento.

Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto, o poento caminheiro
Como as horas de um longo pesadelo
Que desfaz ao dobro de um sineiro...

O sangue de Marcos banha o manuscrito, a boca se cala, os olhos se fecham. Também ferido, esforçando para manter-se vivo, Pascoal começa a recitar:

...Só levo uma saudade – é dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas.
De tí, ó minha mãe, pobre coitada
Que por minha tristeza definhas!

Se uma lágrima as pálpebras me imunda,
Se um suspiro nos seios teme ainda
É pela virgem que sonhei... que nunca
Aos lábios me encostou a face linda!...

Pascoal também abandona o mundo dos vivos, faz questão de encharcar seu manuscrito com seu próprio sangue, seu coração se cala. Mário, como se alguém o ouvisse, lê a última parte do poema em voz alta:

...Beijarei a verdade santa e nua,
Verei cristalizar-se o sonho amigo...
Ô minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu, eu vou amar contigo!

Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz, e escrevem nela
Foi poeta – sonhou – e amou na vida.

Neste momento a polícia invade o banheiro, arrombam a frágil porta de cortiça. Mário encara um agente antes de seu último suspiro, e como todos encharca em líquido vital nos manuscritos, que também morreram ali, em mãos brasileiras.