o consultório, de rafael mantovani
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Às vezes se tem um problema grande. Às vezes se tem um problema pequeno. Às vezes também se engana a respeito do tamanho do problema. O meu problema muitas vezes é querer ser mais do que pequeno ou, no mínimo, ser verdadeiro. De vez em quando, esse tipo de vontade ou sentimento que inunda o corpo e não se pode negar, por mais dor ou problemas que possa trazer, se torna intragável, então, quando é cuspido... Aí reside o problema real. Um dia desses, eu tentei ser verdadeiro. E fui, de fato fui! Entrei no tão conhecido consultório que costumo entrar a cada mês. Faço um tratamento, sabe? Preciso me cuidar um pouco de vez em quando, mas não me repreenda por isso! Bem, sempre me intrigo com a facilidade que a doutora mor tem de desfazer qualquer embaraço, irritação ou clima ruim causado por um atraso seu, ou qualquer coisa do gênero, com o seu espírito desembaraçado. Mas a esse respeito eu vou tratar outra hora, o que mais me intriga nesse instante é uma outra pessoa:

- "Tudo bem?" - ela me pergunta.

Não saberia o que dizer sobre essa pergunta, que, na verdade, é mais um cumprimento. Minto: na verdade saberia muito bem o que dizer, mas tenho medo de dizê-lo. Acho que você poderia pensar que é um exagero, uma extravagância, uma simples vontade de chocar de um niilista. Pois bem, digo-lhe que não é. Não vou dizer o que eu penso sobre a frase em si, vou dizer simplesmente o que ela me causa e a impressão que eu tenho da sua pronunciante. A frase me embaraça, me embaraça enormemente, pois eu sei que a indiferença que ela sente com relação a mim é a mesma que eu sinto com relação a ela. Ela trabalha no local! Ela precisa ser gentil, por mais que isso vá contra a sua natureza e o senso de ridículo, ela precisa ser gentil! Talvez tente plantar alguma sensação de bem estar nos pacientes que por lá vão tentar resolver seus problemas mais graves ou, por simples vaidade, vão se tratar (como é o meu caso). Mas comigo, ela seria muito menos insuportável se não me dirigisse a palavra! Se tivesse a coragem de demonstrar o quanto a minha presença é insuportável, o quanto que ela lastima por ter que me ver na sua frente e ainda se obrigar a ser social comigo...

Ao menos pudesse compreender que estão impressos nos seus olhos, por um lado o cansaço de tudo o que já foi obrigada a viver e, de outro o enfado pela consciência de saber o quanto há de viver. A quem a vida é uma moléstia, porém, não uma moléstia como é aos espíritos livres e que querem respirar, mas uma moléstia por não ter conseguido ser engolida por inteiro, terem restado algumas reminiscências da consciência de inadequação por tudo aquilo que lhe foi exigido e entristecer-se por não possuir os centímetros a menos na cintura e, assim, achar-se um traste. Compreende? Não é uma moléstia por não se deixar modelar por si, mas por não terem-na modelado para a glória. E agora, acredita que nada lhe resta já que teria que dar muito duro pra conseguir chegar à tão estimada posição de igual, insossa e insignificante. Insignificante pela significação forte, porém, nula que exercem as pessoas estimadas pelo mundo! Os grandes, os mais grandiosos são os mais imbecis... Não, não! Minto novamente: imbecis são aqueles que querem se elevar à qualidade de insignificantes. E essa moça se encontra no grupo desses últimos, dos aspirantes à anulação não conseguida e que graças a isso sentem asco pela vida. É como se a vida tivesse sido injusta para com ela, é como se a verdadeira injustiça estivesse se construindo fora dela, a isentando de qualquer culpa sobre o seu auto-flagelo. Porém, esse flagelo constitui um final independentemente das possibilidades que ela poderia ter: iria se flagelar por ser a altiva ameba, como se flagela hoje por não terem-lhe oferecido a possibilidade dessa primeira forma de flagelação.

E o que se pode responder à sua pergunta? Obviamente, ela não está minimamente interessada em saber como eu estou e isso é recíproco. "Estou bem e você?" é no mínimo uma covardia da minha parte, talvez seja me rebaixar a qualidade de protozoário em que ela se encontra. Como eu ficaria com a minha auto-estima se conservasse o tipo de comportamento que mais venho criticando? Poderia mandá-la à merda, mas aí como ficaria o resto do meu tratamento? Não, não, a minha vontade mais veemente não pode se dar o luxo de se consumar. Porém, se eu lhe responder à pergunta sem, no entanto, lhe perguntar ou retribuir a sua grosseira atitude generosa, ela nem se dará conta da sutil, porém insolente agressão. Que fazer, então? Pensando bem, me importo tanto com a sua percepção do que penso quando me manifesto que chego até a pensar que fazer o que realmente acho que deveria fazer (responder-lhe sem indagar-lhe a sua situação) parece sem sentido caso ela não se zangue ou, no mínimo, se incomode. Eu quero incomodá-la! Mas a impossibilidade de incomodá-la é motivo para deixar de fazer aquilo que acho que deveria fazer? Que estúpido! Acho que somos nada simplesmente em graus diferentes!

E por que me importo tanto com a incapacidade de olhar para dentro de si de alguns indivíduos que choram amargamente por terem a infelicidade de não se adequarem ao mundo que os almejaria chupar até os ossos se fossem o que é esperado que sejam? Seus cabelos revoltos e seu aspecto sombrio poderiam ser muito mais interessantes a olhos realmente atenciosos caso não houvesse essa nuvem de descontentamento com a própria consciência do eu inoportuna que lhe tira a possibilidade de ser mais uma entre todas... Que lástima reside em seu coração quando percebe esse fato! Queria ser admirada, queria ser observada como inútil como todas as outras, mas as circunstâncias não lhe permitiram tal ocasião nunca na vida e tem a dolorosa sensação de que terá que fazer algo por si ela própria, pois não poderá seguir o caminho trilhado, com manual e garantia. Que vontade de nascer de novo!

Seu olhar não estava voltado para mim. Resolvi fazer o que devia ser feito:

- "Estou bem" - respondi-lhe.