manga com leite
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n. 16 - escrita automática "Viver e deixar de viver é que são soluções "Mande trazer com que escrever, quando já estiver colocado no lugar mais confortável possível para concentração do seu espírito sobre si mesmo. Ponha-se no estado mais passivo ou receptivo, dos talentos de todos os outros. Pense que a literatura é um dos mais tristes caminhos que levam a tudo. Escreva depressa, sem assunto preconcebido, bastante depressa para não reprimir, e para fugir à tentação de se reler. A primeira frase vem por si, tanto é verdade que a cada segundo há uma frase estranha ao nosso pensamento consciente pedindo para ser exteriorizada. É bastante difícil decidir sobre a frase seguinte: ela participa, sem dúvida, a um só tempo, de nossa atividade consciente e da outra, admitindo-se que o fato de haver escrito a primeira supõe um mínimo de percepção. Isto não lhe importa, aliás; é aí que reside, em maior parte, o interesse do jogo surrealista. A verdade é que a pontuação se opõe, sem dúvida, à continuidade absoluta do vazamento que nos interessa, se bem que ela pareça tão necessária quanto a distribuição dos nós de uma corda vibrante. Continue enquanto lhe apraz. Confie no caráter inesgotável do murmúrio. Se o silêncio ameaça cair, por uma falta da inatenção, digamos, que o leve a cometer um pequeno erro, não hesite em cortar uma linha muito clara. Após uma palavra cuja origem lhe pareça suspeita, ponha uma letra qualquer, a letra "i", por exemplo, sempre a letra "i", restabeleça o arbitrário, impondo esta letra como inicial à palavra que vem a seguir." Este é o primeiro segredo da arte mágica surrealista, exposto por André Breton no manifesto de 1924, e que ele chama de "composição surrealista escrita, ou primeiro e último jato". A escrita automática, já ilustrada na coluna anterior, coloca-se como a proposta libertadora do grupo surrealista para uma literatura tomada pelo marasmo de descrições enfadonhas e sistemáticas, incapazes de transmitir o que quer que fosse ao leitor e sepultando a capacidade criativa dos autores. Porém, como todo método de composição, principalmente os mais radicais e herméticos, a escrita automática se mostra também de difícil aplicação e gera resultados muitas vezes sofríveis. Mesmo assim, a contribuição do grupo para uma nova percepção da literatura e das possibilidades da linguagem é indiscutível, sendo a pregada oposição entre literatura e escrita automática mais uma postura ideológica do que efetiva. Leitores incansáveis, esses escritores inveterados jamais deixaram de frenquentar a literatura, fazendo dela o celeiro de suas inquietações. Em suma, como já observou Michel Beaujour, "era impossível ultrapassar a literatura, na medida em que a literatura desempenhava um papel necessário para se anunciar a boa nova de que a literatura tinha sido superada por algo que se intitulava surrealismo". Daniel Gomes |
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