a montanha mágica, de thomas mann

 

Pode-se narrar o tempo, o próprio tempo, o tempo como tal e em si? Não, isso seria deveras uma empresa tola. Uma história que rezasse: "O tempo decorria, escoava-se, seguia o seu curso" e assim por diante - nenhum homem de espírito são poderia considerá-la história. Seria como se alguém tivesse a idéia maluca de manter durante uma hora um mesmo tom ou acorde e afirmasse ser isso música. Pois a narrativa se parece com a música no sentido de que ambas dão um conteúdo ao tempo; "enchem-no de uma forma decente", assinalam-no" e fazem com que ele "tenha algum valor próprio" e que "nele aconteça alguma coisa", para citarmos, com a melancólica piedade que se costuma devotar aos ditos dos defuntos, algumas observações ocasionais do saudoso Joachim, palavras essas que há muito se perderam no espaço; nem sabemos se o leitor é capaz de dizer claramente quanto tempo se passou desde que foram pronunciadas. O tempo é o elemento da narrativa, assim como é o elemento da vida; está inseparavelmente ligado a ela, como aos corpos no espaço. É também o elemento da música, que o mede e subdivide, carregando-o de interesse e tornando-o precioso. Nesse ponto, como já mencionamos, assemelha-se à narrativa e difere da obra de arte plástica que surge diante de nós de uma vez, em todo o seu esplendor, e não se acha relacionada com o tempo senão à maneira de todos os corpos. A narrativa, porém, não se pode apresentar senão sob a forma de uma seqüência de fatos, como algo que se desenvolve, e necessita intimamente do tempo, mesmo que deseje estar toda presente a cada instante que transcorre.

Isso é evidente. Mas é igualmente óbvio que há uma diferença entre a narrativa e a música. Nesta, o elemento do tempo é um só: um setor do tempo humano e terrestre que ela inunda para exaltá-lo e enobrecê-lo de modo indizível. A narrativa, porém, tem dois tipos de tempo: em primeiro lugar, o seu tempo próprio, o tempo efetivo, igual ao da música, o tempo que lhe determina o curso e a existência; e em segundo, o tempo de seu conteúdo, que é apresentado sob uma determinada perspectiva, e isso de forma tão variável que o tempo imaginário da narração tanto pode coincidir quase por completo, e mesmo inteiramente, com seu tempo musical, quando dele diferir infinitamente. Uma peça de música, denominada Valsa dos cinco minutos, dura cinco minutos; nisso, e em nada mais, consiste a sua relação com o tempo. Uma história, entretanto, cujo conteúdo abrangesse um lapso de cinco minutos poderia ter duração mil vezes maior, devido à extrema meticulosidade empregada na descrição desses cinco minutos e todavia parecer bem curta, embora fosse bastante longa em proporção a seu tempo imaginário. Por outro lado é possível que o tempo do conteúdo da história ultrapasse enormemente a duração da narrativa, em virtude de um processo de "redução". Servimo-nos desse termo para assinalar um elemento ilusório, ou, para falar com maior clareza, um elemento mórbido que se manifesta nesse caso. A narrativa usa então um feitiço hermético, uma perspectiva exagerada, quanto ao tempo, e isso nos chama à memória certos fatos anormais da experiência real, que evidentemente entram no campo transcendental. Existem diários de fumadores de ópio, relatando que a pessoa entorpecida passou, durante o breve período da embriaguez, por sonhos cuja extensão no tempo abrangia dez, trinta e até sessenta anos e mesmo transpunha os limites traçados à experiência humana, no que se refere à exploração do tempo. Trata-se, pois, de sonhos cuja duração imaginária excede consideravelmente a real, e nos quais se efetua uma redução incrível da experiência do tempo, que faz com que as imagens se precipitem com tamanha velocidade que se poderia crer, segundo a expressão de um consumidor de haxixe, que do cérebro do ébrio "houvesse sido tirada uma peça parecida com o balancim de um relógio".

É de modo congênere ao desses sonhos oriundos do vício que a narrativa pode proceder para com o tempo; é dessa forma que ele pode ser tratado numa história. Mas, uma vez que é possível "tratá-lo", é lógico que o tempo, além de ser o elemento da narrativa, também pode tornar-se o seu assunto. Embora seja exagero afirmar que se pode "narrar o tempo", não constitui certamente empresa tão absurda, como nos parecia de início, a de querer narrar coisas do tempo. Destarte poderíamos atribuir uma singular ambigüidade de sonho ao conceito de um "romance do tempo". Com efeito, ventilamos os problemas de saber se é possível ou não narrar o tempo exclusivamente para confessar que, no presente história, temos coisa semelhante em mente. E se ainda, de passagem, pusemos em dúvida que os leitores agrupados em torno de nós fossem capazes de dizer claramente quanto tempo decorreu desde o momento em que o honrado e já falecido Joachim intercalou na palestra aquela observação acerca da música e do tempo - observação que demonstra certa sublimação alquimística da sua naturaze, que normalmente não se inclinava para esse tipo de pensamentos -, não nos mostraríamos nem um pouco contrariados ao inteirar-nos de que, de fato, reina confusão a esse respeito; ao invés de contrariados, estaríamos até satisfeitos, pela simples razão de termos um interesse natural em que todos participem das experiências do nosso herói, Hans Castorp, o qual, de há muito, deixou de estar seguro sobre a questão em apreço. Isso faz parte do seu romance, que é um romance do tempo, tanto num como noutro sentido.

Afinal, quanto tempo passara Joachim ali em cima, ao lado de Hans Carstop, até a sua partida "em falso", e quanto ao todo? Em que época do calendário se realizara aquela primeira partida arbitrária? Por quanto tempo estivera ausente? Quando voltara? E havia quanto tempo se achava o próprio Hans Carstop em Davos, na data do regresso do primo, e naquela outra, posterior, em que este se despediu do tempo? Por quanto tempo, para deixarmos Joachim de lado, ausentara-se Mme Chauchat? E desde quando, ou pelo menos desde que ano, estava ela de volta (pois que estava mesmo de volta), e quanto tempo decorrera entre o dia do seu regresso e aquele da chegada de Hans Carstop ao Berghof? Se alguém fizesse todas essas perguntas a Hans Carstop - o que em realidade ninguém fazia, nem sequer ele próprio, provavelmente por ter receio de tais indagações -, o jovem teria tamborilado com os dedos na fronte, sem saber dar uma resposta precisa; fenômeno não menos inquietante do que aquela passageira incapacidade de dizer a sua idade ao Sr. Settembrini, logo na primeira noite da sua estadia ali. E desde então essa falta de memória até se havia agravado, uma vez que Hans Carstop já ignorava séria e constantemente quantos anos tinha.

Isso talvez pareça fantástico, mas está longe de ser surpreendente ou inverossímil porque, sob determinadas condições, pode acontecer a cada um de nós a qualquer instante; supostas tais condições, nada nos resguardaria de mergulhar-mos na mais profunda ignorância quanto ao curso do tempo, e de perdermos, por conseguinte, a noção da nossa idade. Esse fenômeno é possível, já que não temos no nosso interior um órgão para perceber o tempo, o que nos torna incapazes de avaliá-lo, em termos absolutos, pelos nossas próprias forças e sem nos basear em indícios exteriores. Alguns mineiros soterrados e impossibilitados de observar a sucessão de dias e noites calcularam, quando salvos, fosse de três dias o tempo que haviam passado nas trevas, entre a esperança e o desespero. Na realidade se haviam escoado dez dias. Seria natural se, nesse situação angustiosa, o tempo lhes houvesse afigurado longo. No entanto, se reduzira para eles a menos de um terço da sua duração objetiva. Parece, portanto, que sob condições desconcertantes a impotência humana tende antes a subestimar do que a exagerar o tempo por que acaba de passar.

Certo, ninguém põe em dúvida que Hans Carstop, querendo, teria podido sem grandes dificuldades escapar dessa incerteza e ganhar clareza por meio de um cômputo; da mesma forma como o leitor poderia fazer sem nenhum trabalho, se porventura, a confusão e o vazio repugnassem ao seu espírito sadio. No que toca a Hans Carstop, talvez não se sentisse muito à vontade na sua ignorância, mas tampouco se animava a fazer um esforço para livrar-se daquele vazio e daquela confusão, e para conhecer a idade que alcançara ali em cima. O que o impedia era um receio arraigado na sua consciência, apesar de ser a mais crassa falta de consciência o não se preocupar com o tempo.

Não sabemos se convém alegar a seu favor que as circunstâncias fomentavam bastante a sua falta de boa vontade, para não o acusar de aberta má vontade. Quando voltou Mme Chuachat - de modo bem diferente do que imaginara Hans Castorp, mas disso trataremos noutra parte -, estava-se novamente na época do Advento, e o dia mais curto do ano, o princípio do inverno, astronomicamente falando, achava-se iminente. Em realidade, porém, não se levando em conta tais subdivisões teóricas e considerando-se o frio e a neve reinantes, era inverno sabe Deus desde quando, e este inverno não fora interrompido senão passageiramente por abrasadores dias de verão, com um azul celeste de uma intensidade tão exagerada que tocava as raias do preto, dias estivais, portanto, como também costumavam ocorrer no inverno, abstração feita da neve, que por sua vez caía em todos os meses de verão. Quantas vezes não conversara Hans Castorp com o malogrado Joachim sobre essa grande confusão, que misturava e embrulhava as estações, que privava o ano das suas cisões naturais e destarte o fazia decorrer rápida e tediosamente, ou também devagar, mas de modo divertido, de maneira que no fundo nem se podia falar de tempo, conforme observava Joachim com desgosto numa ocasião muito remota. O que realmente se misturava e se baralhava em virtude dessa grande confusão eram certos conceitos emocionais ou estados de consciência, como os do "ainda" e do "de novo". Achamo-nos diante de uma experiência das mais pertubadoras, complexas e mágicas que se podem imaginar, experiência para cujo gozo Hans Castorp, logo no primeiro dia da sua estadia ali em cima, mostrara inclinação imoral. Fora em face das cinco refeições fartas em excesso, na sala alegremente colorida, que pela primeira vez sentira vertigem desse gênero, inofensiva em comparação com as posteriores.

Desde então, essa ilusão dos sentidos e do espírito assumira proporções muito mais vastas. O tempo, por mais enfraquecida ou aniquilada que esteja a sensação subjetiva que se tem a seu respeito, possui uma realidade objetiva, enquanto age, enquanto "traz consigo". É um problema que compete a pensadores profissionais, embora Hans Castorp, em certa ocasião, o tivesse atacado, impelido por uma presunção juvenil, o problema de saber se a conserva hermeticamente fechada e posta na prateleira se acha ou não fora do tempo. Mas sabemos que o tempo age até mesmo sobre os hibernantes. Um médico relata o caso de uma menina de doze anos que um belo dia adormeceu e prosseguiu dormindo treze anos; mas ao despertar já não era criança, senão mulher feita. Nem poderia ser de outra forma. O morto está morto; entrou no eterno descanso; tem muito tempo, quer dizer, o tempo não existe, quanto à sua pessoa. Isso todavia não impede que suas unhas e seus cabelos continuem a crescer, e que em suma... Mas não queremos recordar a locução um tanto rude que Joachim usou certa vez, falando desse assunto, e com a qual Hans Castorp então se escandalizou à maneira dos habitantes da planície. Também a ele, Hans Castorp, lhe cresciam as unhas e os cabelos; cresciam depressa, como parecia, pois seguidamente se encontrava envolto num pano branco, na cadeira da barbearia na rua principal da "aldeia", para que lhe cortassem o cabelo, que mais uma vez acabava de formar franjas ao redor das orelhas. Na verdade, sempre se achava ali, ou melhor, quando estava sentado ali e conversava com o barbeiro hábil e obsequioso, que se desincumbia da sua tarefa, depois de o tempo se ter desincumbido da sua, ou também quando se quedava junto à porta da sacada, a fim de encurtar as unhas mediante a tesourinha e a lima, tiradas de um belo estojo forrado de veludo - nessas ocasiões experimentava uma espécie de susto mesclado com curioso prazer, e de súbito sentia-se tomado daquela vertigem que já mencionamos; essa vertigem que o tornava inseguro física e psiquicamente, causando um remoinho no meio do qual Hans Castorp já não sabia distinguir o "ainda" e o "de novo", de cuja mistura e confusão resulta o "sempre" isento de tempo.

Temos afirmado freqüentemente que não tencionamos apresentar o nosso herói nem melhor nem pior do que era, e por isso não queremos deixar de contar que muitas vezes se empenhava em compensar a complacência censurável em face dessas tentações místicas, provocadas por ele consciente e propositadamente, com esforços em sentido contrário. Era capaz de ficar sentado com o relógio na mão - o relógio de algibeira, chato, liso e de ouro fino, cuja tampa com o monograma gravado estava aberta. Contemplava então o mostrador redondo, de porcelana, rodeado por uma dupla fileira de cifras árabes, pretas e vermelhas, e em cima do qual os dois ponteiros de ouro, enfeitados de suntuosos arabescos, apontavam em diferentes direções, enquanto o delgado ponteiro dos segundos, tiquetaqueando, dava pressurosas voltas à sua areazinha especial. Hans Castorp fixava-o, como para deter e esticar alguns minutos, na intenção de agarrar o tempo pela cauda. A minúscula agulha saltitava pelo seu caminho, sem se importar com as cifras que alcançava, percorria, ultrapassava, deixava longe atrás, voltava a demandar e alcançava de novo. Era insensível a objetivos, divisões e marcos. Deveria demorar-se por um instante no 60 ou pelo menos dar um pequeno sinal de que alguma coisa terminava ali. Mas, pelo jeito como passava por cima desse ponto assim como por qualquer outra risca não marcada, reconhecia-se que toda essa marcação e subdivisão do seu caminho era apenas acessória, e que o ponteiro se limitava a caminhar, a caminhar para a frente... Diante dessa percepção, Hans Castorp tornava a abrigar o relógio no bolsinho do colete e abandonava o tempo à sua própria sorte.

Como tornar plausíveis aos honrados cidadãos dos países planos as transformações que se efetuavam na economia íntima de nosso jovem aventuroso? A escala dessas identidades perturbadores ia crescendo. Desde que, para uma pessoa não muito concentrada, era difícil distinguir o "agora" de hoje do de ontem, de anteontem, de três dias atrás, o presente já se mostrava inclinado e capaz de se confundir com aquele presente que existira havia um mês ou um ano, e de unir-se com ele para formar o "sempre". Mas, ainda que se mantivesse a distinção entre os casos de consciência moral, que se chamam "ainda", "de novo", "no futuro", poderíamos sentir-nos tentados a ampliar o alcance das denominações relativas, com que o "hoje" se isola do passado e do porvir, as denominações de "ontem" e de "amanhã", e a aplicá-las a períodos mais longos. Seria fácil imaginar seres - os habitantes de um planeta menor que o nosso, por exemplo - que lidassem com um tempo em miniatura, e para cuja vida "curta" os saltinhos velozes do nosso ponteiro dos segundo representassem o mesmo que para nós a progressão lenta e tenaz do ponteiro das horas. Mas também seria possível idear criaturas a cujo espaço correspondesse um tempo que avançasse tão majestosamente que os conceitos de "há um instante", de "em breve", de "ontem" e de "amanhã", adquirissem, para a sua experiência, um significado muito mais amplo. Segundo a nossa opinião, isso não somente seria admissível, senão até legítimo, sadio e respeitável, quando o julgássemos sob o ponto de vista de um relativismo indulgente e em conformidade com o provérbio: "Cada terra com seu uso". Que, porém, pensar um filho desta nossa terra - e ainda de um para cuja idade um dia, uma semana, um mês, um semestre deveriam ter suma importância, uma vez que acarretam muitas modificações e grandes progressos para a sua vida -, que pensar, pois, se esse moço um dia adquirisse o hábito vicioso, ou pelo menos cedesse às vezes ao prazer de dizer "ontem" ou "amanhã", em lugar de "faz um ano" ou "no ano que vem"? Não há dúvida de que nos acharíamos diante de um caso de anomalia e de perturbação, que justificaria o mais vivo desassossego.

Há neste mundo uma situação, há certos fatores cênicos - se é que se pode falar de "cenário" no caso que temos em vista - que fazem com que o confusão e a mistura das distâncias do tempo e do espaço, que vão a ponto de criar uma uniformidade verginosa, se produzam de forma natural e lógica, de maneira que, pelo menos para um período de férias, parece tolerável o abandono ao seu enleio mágico. Pensamos em passeios à beira-mar - ocupação do qual Hans Carstop nunca deixava de lembrar-se com a maior simpatia - e já sabemos que a vida na neve lhe recordava de modo ameno e grato as dunas de seu torrão natal. Esperamos que a experiência e a memória dos nossos leitores também não falhem, quando nos referimos e esse isolamento maravilhoso. As pessoas caminham, caminham... e de uma excursão desses nunca voltarão a tempo, já que se desgarraram do tempo e este se desgarrou delas. Ó mar, nós que contamos esta história achamo-nos longe de ti, mas te devotamos os nossos pensamentos e nossa afeição. Expressamente e em voz alta te dirigimos a nossa invocação, para que estejas presente no nosso livro como sempre tens estado e como continuarás eternamente... Ó deserto marulhante, sob a cúpula de um pálido céu cinza, ó ermo impregnado de acre umidade cujo sabor perdura em nossos lábios! Caminhamos, caminhamos sobre o solo levemente elástico, salpicado de sargaço e de pequenas conchas. O vento nos envolve os ouvidos, esse vento imenso, vasto, brando, que livremente, sem freio nem maldade, atravessa o espaço e produz no nosso cérebro um ligeiro atordoamento. Marchamos, marchamos, e vemos os nossos pés lambidos pelas línguas espumantes do mar, que é impelido para a frente e, fervilhando, torna a recuar. Agita-se a rebentação. Vaga após vaga, com um murmúrio agudo e surdo, choca-se com a terra, antes de deslizar, sedosa, pelo praia rasa. Aqui se dá o mesmo que ali e que nos bancos de areia, lá fora, e esse rumor confuso, generalizado, do suave marulho, sobrepuja, em nossos ouvidos, todas as demais vozes do mundo. Bastamo-nos a nós mesmos e de propósito olvidamos o resto... Ah, cerremos os olhos, abrigados na eternidade! Não! Olha ali! Naquela vastidão glauca, espumante, que, com enormes escorços, se perde no horizonte, surge uma vela. Ali? Que significa esse "ali"? Quão longe? Quão perto? Não sabes dizer. De modo vertiginoso, isso se subtrai à tua avaliação. Para computar a distância que separa esse navio da praia, deverias saber qual o seu tamanho. Pequeno e próximo? Grande e longínquo? Tua vista turva-se me dúvida, pois nenhum dos órgãos e dos sentidos que possuis te informa sobre o espaço... Caminhamos, caminhamos... Desde quando? Até onde? Tudo incerto. Nada se modifica, por mais que avancemos. O "ali" é igual ao "aqui", o passado é idêntico ao presente e ao futuro. Na imensa monotonia do espaço afoga-se o tempo. Onde reina a uniformidade, o movimento de um ponto a outro deixa de ser movimento. Onde isso acontece, já não existe o tempo.

Os sábios da Idade Média afirmavam que o tempo era uma ilusão, que seu curso, entre causa e efeito, não passava do produto de um dispositivo dos nossos sentidos, e que o verdadeiro ser das coisas era um presente imutável. Terá passeado à beira-mar aquele doutor que foi o primeiro a conceber esse pensamento, saboreando nos seus lábios a leve amargura da eternidade? Seja como for, repetimos que aqui se falou de liberdades tais como a gente se permite nas férias, de fantasias inspiradas pelo ócio da vida, e das quais o espírito decente se farta tão depressa como um homem forte, do repouso na areia cálida. Criticar os meios e as formas do conhecimento humano, pôr em dúvida a sua validade objetiva, seria absurdo, desprezível e hostil, se tal atitude se baseasse numa outra intenção além da de designar à nossa gratidão a um homem como o Sr. Settembrini, por ter tachado a metafísica de o "mal", ao instruir com a intransigência de um pedagogo o jovem cujo destino nos preocupa, e que ele mesmo, em certa ocasião, qualificara acertadamente de "filho enfermiço da vida". E a melhor maneira de honrarmos a memória de determinada pessoa a quem queremos muito é declarar que o sentido, o objetivo, o fim do princípio crítico não devem nem podem ser outros senão a idéia do dever e a lei da vida. Sim, a sabedoria do legislador, traçando criticamente os limites da razão, içou, nesses mesmos limites, a bandeira da vida e proclamou como um dever militar do homem servir sob essa bandeira. Será que devemos levar a crédito de Hans Carstop e considerar na sua viciosa administração do tempo e no seu perigoso namoro com a eternidade, por ver que aquilo que certo palrador melancólico chamara de "excesso de entusiasmo" apenas conduzira o seu primo guerreiro ao exitus letalis?