a cripta e o maldito, de Daniel Gomes

 

No começo era o caos, então os deuses perceberam
que assim não poderia ser, e criaram a luz...

Prelúdio - refúgio dos esquecidos

Eu vejo, diz o cego, vejo sua escuridão, seu vazio
Eu sinto, diz o morto, sinto seu pesar, sua dor
O trovão se faz no silêncio e o surdo se arrepia
A cripta estremece.

Eu digo, intervém o surdo, digo que não devemos atendê-lo
Eu caminhei, diz o peregrino, caminhei milhas para tê-lo
A serpente se agita na escuridão e o cego se arrepia
A cripta estremece.

Então você, diz o cego, você terá de revelar nosso segredo
Então você, completa o surdo, você terá o que busca
O filhote se aconchega no frio e o morto se arrepia
A cripta estremece.

Então você, acrescenta o morto, você nos derrotará
Então você, reflete o peregrino, você os destruirá
O nada se manifesta como o tudo e a realidade esvaece
O peregrino estremece.

 

Estou em uma rua, não a reconheço. As casas são grandes e espaçadas, entre elas diversos arbustos floridos transmitem um sentimento de inocência e os jardins e passeios estão tão bem cuidados, tão inacreditavelmente limpos, como se ninguém nunca houvesse passado por aqui, como se fossem os guardiões de um pureza esquecida. Esse ambiente me causa uma estranha sensação, estranha mas prazerosa, uma sensação artificialmente plástica, uma sensação que contrasta diretamente com a passividade eufórica do lugar pelo qual caminho sem rumo.

Caminho alguns quarteirões sem que a paisagem se altere de modo significativo e, enquanto os sentimentos de inocência e pureza me acompanham, tento entender o que estou sentindo, qual é essa sensação que tanto me incomoda e excita, e se há alguma relação entre ela e minha total desorientação temporal e espacial. A resposta chega através da única pessoa que encontro na rua, um rapaz de bicicleta, que está arrumando alguns jornais. Sim, estou perdido; mas estou vivo.

Procuro em meus bolsos, de modo autômato, por alguma moeda com a qual possa comprar um jornal do garoto e só então percebo como estou vestido. O terno negro, de corte simples e um pouco grande para mim, tem em seus bolsos apenas um terço e um pedaço de papel; objetos estes que definitivamente não condizem com meu estilo e que me tornam ainda mais deslocado nesse cenário agradável e suburbano.

Rapidamente percebo movimentos nas casas, como se todos estivessem acabando de acordar e se arrumando para enfrentarem suas vidas frívolas e ricas, movimentos que radicalizam todos os sentimentos que vinha tendo. Eles não parecem notar minha presença, nem mesmo o menino de bicicleta, ou se importarem com ela. Então, me dirijo a porta de uma das casas, onde há um jornal jogado pelo menino de bicicleta, e há eu; que estou perdido.

Dentro do jornal jogado pelo menino de bicicleta encontro, para meu grande agrado, um caderno dedicado a obra de Edgar Allan Poe, que tem em sua capa um poema. Tal poema, que pode não dizer nada para pessoas que não se preocupam com coisas triviais como arte e filosofia, é para mim uma fabulosa síntese de todos os sentimentos que vivenciei perante nossa realidade confusa e inquieta, repleta de equívocos e hipocrisias, como se nós, seres supostamente racionais, mas certamente paradoxais, fossemos a negação de tudo isto, quando somos na verdade apenas o reflexo desta complexa simplicidade maquiada para nosso conforto e nossa aceitação.

Após esta pequena divagação, volto para a rua em busca de um lugar no qual possa tranquilamente me sentar e ler o jornal jogado pelo menino de bicicleta e que, espero, vai me dizer onde estou e quando estou. Com este objetivo e impulsionado pela vontade crescente de fumar um cigarro caminho em direção ao próximo quarteirão que, diferentemente dos anteriores, parece repleto de estabelecimentos comerciais, na verdade tabacarias e cafés de excelente aparência; mas, para meu desgosto, ainda fechados.

Logo chego a uma praça simetricamente desolada, como se não pertencesse ao lugar pelo qual vinha caminhando, como se simbolizasse outra realidade, como se tivesse sido propositadamente construída para desiludir e dissipar qualquer esperança nascida anteriormente, como se tivesse algo importante para dizer; como eu. Sento em um dos bancos e observo as secas e distorcidas árvores, as murchas e incolores flores mortas, a abundância de insetos e a ausência de vida vegetal, a incompletude do lugar e a completude de meu ser.

Enquanto como com os olhos os nefastos contos de Poe, tenho aquela clássica sensação de estar sendo observado por olhos escondidos em minha mente paranóica auspiciosamente estimulada pela atmosfera do lugar e por uma pulga, que se aloja atrás de minha orelha, em outra situação desgastada. Além disto, meus olhos famintos capitam de relance um vulto, que ao mesmo tempo não está em lugar algum e está em todos os lugares, inclusive em minha mente e a minha frente, materializando-se em um convite para entrar em um bar, feito por uma mulher inacreditavelmente bela e indescritível.

Ela se senta ao meu lado no balcão e me oferece um cigarro. Enquanto acendo, o barman pergunta se queremos algo e ouço pela primeira vez a voz daquela bela mulher que nunca mais ouvirei pedir dois whiskeis. Aprovo o pedido com um leve movimento de cabeça e quando o mal encarado rapaz se afasta para supostamente ir buscar o pedido (para mim ele poderia muito bem estar indo buscar uma escopeta), ela me cumprimenta como se fossemos antigos amantes ou irmãos gêmeos. Ao perceber minha estranheza e falta de jeito ela faz a pergunta: você é real ou é apenas um sonho bom?

 

Mais uma vez acordo durante a noite por causa de um sonho. Ou pelo menos com a marcante impressão de ter tido um daqueles sonhos que, por algum motivo misterioso, nos faz acordar. Diferentemente do sonho em que nos sentimos caindo de grandes alturas ou do sonho em que estamos prestes a morrer, este sonho me faz acordar por uma outra razão, também comum nas histórias, que é algo que pode ser chamado de intervenção do destino ou premonição ou simplesmente acaso, quando nosso corpo desperta porque a realidade ao seu redor assim o ordena.

Estou em um quarto no qual nunca estive antes e que, apesar de ser decorado como um simples e inocente quarto de hotel de beira de estrada, tem algo de alienígena no modo como os móveis estão dispostos, como se linhas imaginárias formassem entre estes uma espécie de amuleto ou runa, que pode ser brevemente descrito como uma forma circular na qual estão inscritos dois quartos de círculo que se encontram no centro, sendo que seus arcos se cruzam nos extremidades do desenho. Estes dois quartos de círculo, que na verdade podem ser quatro, criam desta maneira uma representação estilizada e inclinada do símbolo matemático que representa o infinito, que na verdade podem ser duas, uma escura e outra clara. Isto possibilitou que meu olhar vagasse por vários minutos sobre estas linhas imaginárias, até que, após ter passado por todos os pontos diversas vezes, ficasse detido em um único; ponto este exatamente localizado ao meu lado, sobre a cama e onde está a única mulher que realmente amei na vida.

Estou morto, não literalmente é claro, e resolvo esperar minha companheira acordar, pois ainda está escuro lá fora, assim como aqui dentro, e mesmo que eu não consiga mais dormir (como acontece sempre após um sonho como este), posso ao menos descansar meu corpo e explorar minha alma. Tento evitar mais uma vez iniciar a inexorável reflexão sobre os sonhos, mas isto se mostra inútil e logo inicio o já conhecido e reconhecido ato de reviver mentalmente o único sonho que sou capaz de me lembrar; perdendo assim não apenas o sono da noite, como também a noite, pois eu poderia divagar infinitamente sobre o universo do sonhar sem chegar a lugar algum que não aquele no qual comecei.

O sonho realmente começa quando minha visão se torna equivalente ao olhar de uma lente de 50mm, que enquadra um piso de areia, a mais branca e fina areia. Este é meu primeiro dia no deserto e ainda estou próximo a cidade, pois posso ver caravanas de mercadores e tropas do exército nacional, que guardam esta infindável fonte de tolices. Esta impressão é reforçada por um sentimento de luta, uma luta contra meus instintos de sobrevivência, que me impelem a voltar para a civilização enquanto ainda é possível. Mas esta batalha é vencida e vago lentamente e sem direção precisa, tentando apenas me manter no sentido do centro de todo aquele lugar. Não há muito para ser observado ou descrito, apenas dunas e mais dunas, altas e baixas, com diversos tons entre o mais puro branco e um pálido amarelo febril. Não há vida, nem mesmo um cactos ou inseto; apenas areia, infinitas horas de areia, que caem de grão em grão na ampulheta do tempo e que me separam das hordas humanas que acabo de abandonar.

Tenho a clara impressão de que devo repousar sobre uma alta duna que se encontra logo a minha frente e que me atraí como a cama de um motel de estrada após uma longa viagem. Neste momento a lente é trocada e passo a ter um ângulo de visão de cento e oitenta graus, fabuloso olho de peixe, através do qual posso ver o horizonte belo e longínquo e observar o natural espetáculo protagonizado pelo sol, pelo luar e pela areia, que revelou sua extensa gama de cores, derrotando até mesmo o céu límpido e sangrento do crepúsculo. Lá permaneci até que o frio da noite colocou suas garras para fora, quando o sol já havia morrido e não mais me defendia e a lua cheia e nebulosa reinava gloriosamente sobre as estrelas; minha deusa lua, que iria me guiar em meio a escuridão. Volto então a caminhar, para aquecer meu corpo frágil, contemplando o manto de escuridão a minha frente, ao meu redor as pálidas sombras de dunas próximas, o imaginário contorno das mais distantes e o esplêndido céu estrelado; formoso lar de minha eterna amada.

Então, surge uma luz, que na realidade é uma sombra, tanto no mundo real como no mundo ainda mais real de minha mente. O sol começava a aparecer e seu ângulo levou para meu campo de visão algo diferente da areia cristalina com a qual eu já estava acostumado. Pelo menos é o que acredito ter acontecido, mas sempre acordo com a forte certeza de estar enganado sobre isto.

 

Mais uma vez me surpreendo com uma indescritível deusa, toda de branco, dizendo que já estamos atrasados para não sei qual cerimônia e que devo me apressar. Totalmente atordoado pela visão e pela contradição da cena, apressadamente visto um terno negro, de corte simples e que me aguardava sobre a cama desarrumada. Admiro por poucos instantes a decoração do quarto e sua similaridade com o terno dentro do qual me sinto perdido, antes de sair com ela.

Foi um erro. Caminho agora pelas ruas da cidade, sem reparar como elas são ou estão, apenas sentindo sua pulsação, seu ritmo, sua labuta cotidiana contra as forças que a criaram, que obrigam seus hóspedes a uma vida sem sentido e sem sentimentos, a uma realidade maldita que nos faz pensar que vivemos em uma cripta. Reparo nesta infinita runa que caminha junto a nós, como um amuleto de proteção, um símbolo que nos assegura apenas a satisfação de necessidades mesquinhas, o monstro que fomos forçados a criar devido a nossa própria natureza, aos nossos próprios sonhos, a nossa própria realidade; um monstro de papel e de demagogia, como nós mesmos. Porque criarmos um deus a nossa semelhança?

Estou em frente a uma igreja, sozinho como sempre estive em toda a minha vida e completamente perdido em relação ao que estou fazendo. Tento acender um cigarro, mas não consigo, pois sou rapidamente cercado por um grupo de crianças que parece estar me confundindo com algum parente e gritam constantemente algo sobre presentes e padrinhos e bebês. Tento me desvencilhar do assédio de tais criaturas e quando consigo escapar já me encontro dentro daquele antigo templo, no qual serão batizados um casal de irmãos gêmeos, ao que parece. Isto me fez pensar entender todos aqueles meninos e meninas, mas ainda me pergunto porque todos estão aqui, porque eu estou aqui?

Antes que estas perguntas pudessem encontrar qualquer resposta, antes mesmo de serem formalmente formuladas em minha mente, todos os presentes começam agitadamente a se sentarem. Faço o mesmo, impedido de abandonar aquela bela e insensata construção, pois sou cumprimentado pelo padre, que deixa aos meus cuidados um de seus colegas de profissão. Sem jeito, observo o celebrante dirigindo-se ao altar, enquanto o outro sacerdote me pergunta qual meu parentesco com os pais. Dou uma resposta evasiva, dizendo que sou um parente distante, que acaba de chegar de muito longe e que provavelmente o padre me confundiu com outra pessoa. Mas ele insiste em sua tentativa de criar um diálogo, perseverança que além de me incomodar por não saber como responder as suas perguntas, também me parece um pouco desrespeitosa para com a cerimônia que já tinha se iniciado. De qualquer modo, ele pergunta qual a graça que será dada as crianças. Digo que não estou certo e escuto neste momento palavras familiares ecoando em minha mente, o sacerdote se vira e diz os nomes dos batizados e o terror toma conta de meu ser. Tudo começa a ficar escuro, pontos de luz brincam com meus olhos e meu sangue desaparece de dentro do meu corpo; meu companheiro mais uma vez me interroga, querendo saber qual é minha graça.

Desesperadamente, procuro uma saída daquele lugar e rapidamente alcanço a rua, na qual, inadvertidamente, encontro-me; mortalmente amaldiçoado.

 

Interlúdio - segredos dissolvidos

Eu ouço, diz o surdo, ouço nosso segredo, nossa sina
Eu proclamo, diz o mudo, proclamo o início, o fim
O silêncio se faz como o trovão e o mundo se arrepia
A cripta estremece.

Eu pressinto, intervém o morto, pressinto a destruição
Eu revelarei, diz o peregrino, revelarei a criação
A escuridão se agita como a serpente e o nada se arrepia
A cripta estremece.

Então você, diz o cego, você verá a criação
Então você, completa o surdo, você ouvirá o criador
O frio se aconchega como o filhote e o tudo se arrepia
A cripta estremece.

Então você, acrescenta o morto, você viverá a realidade
Então você, reflete o peregrino, você enfrentará a nova realidade
O tudo se manifesta no nada e a cripta esvaece
O peregrino estremece.

 

Estou em uma rua, não a reconheço. Os prédios são baixos e velhos, as janelas estão presas por grades que transmitem um triste sentimento de opressão e as calçadas estão sujas e destruídas por raízes de enormes e antigas árvores, que parecem guardar, de modo imponente, a decadência do lugar pelo qual caminho sem rumo. Este ambiente me causa uma estranha sensação, estranha mas prazerosa, uma sensação que não sinto há muito tempo, uma sensação deliciosamente diversa de todas aquelas que me foram permitidas nos últimos anos; ou dias; não sei bem e não importa.

Caminho alguns quarteirões sem que a paisagem se altere de modo significativo e, enquanto os sentimentos de opressão e decadência me acompanham, tento entender o que estou sentindo, qual é essa sensação que tanto me incomoda e excita, e se há alguma relação entre ela e a situação na qual me encontro. A resposta chega através de um cheiro peculiar de molho agridoce. Sim, estou com fome; e estou vivo.

Procuro em meus bolsos, de modo autômato, por algum dinheiro e só então percebo como estou vestido. O terno negro, grande e de corte simples, com o qual fui enterrado, me causa a impressão de que algo está errado. Impressão que é reforçada pelo que encontro em seus bolsos, um terço e um pedaço de papel com um estranho texto sobre a gênese.

Rapidamente encontro a origem daquele cheiro dúbio, um restaurante chinês na esquina do próximo quarteirão, no qual parece começar uma área repleta de estabelecimentos comerciais. Como minha investida contra os bolsos do terno negro não apresentaram o resultado desejado, me dirijo ao beco lateral do restaurante, que além de possuir uma péssima aparência, tem postada na porta uma chinesa que ilustra a síntese de todos os sentimentos que me são companheiros desde que iniciei minha caminhada. Ela não parece notar minha presença, ou não se importar. Entro, então, no beco lateral do restaurante e como é comum em filmes, há uma pequena porta no beco lateral do restaurante, há uma lata de lixo em frente a pequena porta no beco lateral do restaurante, há um embalagem para viagem sobre a lata de lixo em frente a pequena porta no beco lateral do restaurante, e há eu; que estou com fome.

Dentro da embalagem para viagem sobre a lata de lixo em frente a pequena porta no beco lateral do restaurante, para meu grande agrado, encontro o famoso macarrão a moda chinesa, ou melhor, restos de macarrão a moda chinesa. Os chineses são os inventores do macarrão, fizeram-no há milhares de anos e é exatamente assim que me sinto, como se não comesse desde a guerra do fogo, que se deu muito antes do macarrão, tendo precedido a maior descoberta do homem – a culinária, prática que infelizmente ainda não foi introduzida em alguns lugares (principalmente o Japão) e nas regiões mais insólitas de nosso planeta (os restaurantes de fast-food).

Após esta divagação, volto para a rua em busca de um lugar digno, no qual possa saciar o inefável prazer de comer. Sem muitas expectativas, devido a estranheza do lugar, caminho mais um pouco. Logo chego a uma praça que parece deslocada em meio a toda aquela desolação, como se fosse nova no lugar, como se tivesse chegado ali no mesmo momento que eu, como se quisesse dar as boas vindas, como se aguardasse por algo importante; como eu. Sento em um banco e observo as pequenas e verdes árvores, as pequenas e coloridas flores, a ausência de vida animal e a abundância de vida vegetal; a completude do lugar e a incompletude de meu ser.

Enquanto como meu delicioso resto de macarrão frio e sem sabor definido, percebo que na realidade não estou sozinho nessa praça simetricamente estruturada e de uma beleza enjoativa. Mais do que isto, percebo que quem quer que esteja desfrutando desta ilha comigo, caminha em minha direção e, quando ela (só neste momento olhei diretamente para ela, e nunca mais o fiz) percebe que eu a percebi, ela começa a me observar, ou talvez ela já estivesse fazendo isto a algum tempo; mas fico em dúvida se é ela que está me encarando porque eu a estou olhando ou se sou eu que a estou encarando porque ela está me olhando. Antes de chegar a alguma conclusão sobre isto, ela se aproxima de modo tão inesperado que eu quase me assusto com sua beleza estonteante e indescritível; realmente indescritível, como se não fosse possível definir nem a cor de seus cabelos, ou mesmo se ela possui cabelos.

Ela se senta ao meu lado como uma estrela cadente, a bela vênus, e me oferece um cigarro, o belo apolo, que aceito meio sem jeito e rapidamente, pois nada melhor que um cigarro após as refeições; e ainda por cima oferecido por uma deusa. Começamos a conversar sobre coisas triviais; os prazeres do tabaco, bons livros, ir para casa, os prazeres do sexo, bons filmes; você existe, eu a cutuco, ou é apenas um sonho bom?

 

Mais uma vez acordo durante a noite por causa de um sonho. Desde o começo de meus tempos isto tem acontecido e além de impossibilitar que eu durma como gostaria (muitas pessoas acham que dormir pouco é uma vantagem, não é o meu caso), este sonho ainda torna impossível que eu tenha outros sonhos; ele é único em todos os sentidos e tem me perseguido por toda a vida, como se meu subconsciente quisesse me alertar sobre algo; algo sobre este inexorável acontecimento.

Estou em um quarto enigmaticamente decorado, deitado sobre uma cama desconhecida, que se encontra no centro deste amplo cômodo, e ao meu lado, está uma mulher bela e adormecida, que me transmite uma familiaridade estranha. Reflito sobre este único sonho que me é permitido e que parece durar apenas alguns minutos, mas que consome todas as minhas poucas horas de sono. Como é comum no mundo dos sonhos, nesta realidade dinâmica e lúdica, criada como distração por nossa mente inerte, diversas informações estão implícitas e servem como pano de fundo para as poucas cenas sem nexo claro que nosso subconsciente evoca durante esta viagem astral. Por outro lado, muitos dados, que seriam relevantes para a construção de uma realidade por nós considerada real ou para o trabalho de analise de um terapeuta ou de um vidente, se mostram inexistentes e desnecessários, mas nem por isto aquele que sonha tem uma sensação de incongruência, de desamparo, e sim de lucidez, de poder, como se fosse capaz, apenas neste momento, de compreender.

Estou morto, não sei porque e não é importante, e minha alma vaga pelas áridas veredas do inferno mais caricaturado e universalista que qualquer outro já representado pelo arte. Tenho a clara sensação de que estou ali merecidamente e de que caminho sozinho porque o próprio diabo me condenou a fazê-lo. Mesmo assim me sinto capaz de enfrentá-lo, utilizando-me do que costumo chamar de preparo psicológico, que pode ser entendido como "cabeça dura" ou "picaretagem", mas neste momento assume a forma funesta de "presunção". De qualquer modo, é esta presunção o que impede que minha alma seja penalizada pelo inferno e seu senhor, e isto está provocando certa inquietação no execrado reino demoníaco. Isto tudo contextualiza o que está para acontecer comigo.

O sonho realmente começa quando Lear me diz que há algo de podre no reino da Dinamarca e ao fundo Hamlet começa a gritar algo sobre manchas nas mãos, mas sem vencer em altura e timbre o supersticioso Macbeth que repete sadicamente e inúmeras vezes a pergunta: onde está meu crânio? Estas frases me parecem fruto de uma mente que nunca leu Shakespeare e que confunde peças e personagens na tentativa de mostrar conhecimentos que não possui. Porém, um especialista diria que o significado destas falas e a mistura de papéis é bem mais profundo, talvez uma premonição do que está por vir ou um trauma psíquico de minha juventude ou mesmo um reforço para o contexto daquilo é retratado no sonho. Após o ressoar destas palavras molestadas, um grande portal se abre e sou jogado dentro de uma espécie de sala do trono, não ficando claro se isto se deu pelo ato dos personagens já citados ou por algum subalterno extremamente parecido com o rei dos caídos.

Tenho a impressão de já ter estado neste aposento por diversas vezes, talvez pela constante repetição do sonho, ou talvez por ser um fato real nesta realidade por nós considerada irreal. Sei também que esta sala se apresenta de formas diversas para cada um que a adentra e que teoricamente isso se dá com o objetivo de aumentar o efeito aterrorizante que ela deve causar. No meu caso esse artifício não funciona e vejo exatamente o que o próprio diabo vê (e sei que isto o incomoda). É algo como o quarto de um psicopata experiente e eclético em seus métodos, que ostenta um ar de lenda viva e por isso mesmo acha apropriado estar sentado sobre uma enorme cadeira feita de esqueletos (na verdade crânios, como disse Macbeth, apoiados sobre grandes ossos humanos) e cercado por lembranças de seus atos hediondos. Tudo isso com um ar de cenário de filme para televisão e ao mesmo tempo bastante caricato e verdadeiro.

Então, aquela criatura perniciosa começa seu enfadonho discurso sobre como está insatisfeito com a punição que me tem sido dada e que a partir de agora isto mudará para sempre. Penso comigo mesmo que não há nada que ele possa fazer contra mim que já não tenha tentado sem sucesso, mas sempre acordo com a forte certeza de estar enganado.

 

Mais uma vez me surpreendo com uma indescritível deusa, toda de preto, que me entrega um terno negro e diz para enxugar-me e vesti-lo, pois devo acompanhá-la a um enterro. Não consigo encontrar a roupa que usava, nem mesmo me lembrar de qual era, então visto o terno de corte simples, que é um pouco grande para mim e resolvo sair com ela.

Foi um erro. Agora estou me dirigindo ao cemitério, para participar de uma cerimônia que não fez sentido para mim. Sou daquele tipo de pessoa arrogante, que não pode admitir que exista uma consciência superior que controla nossa vida, que escreve nosso destino em linhas tortas e com símbolos desconhecidos e que não possa ser enfrentada ou ignorada. Não me considero um ateu ou um agnóstico, apenas acho que um ser onipotente, onipresente e intervencionista é algo inventado por pessoas fracas e incapazes de enfrentar seus demônios sozinhas e que preferem ser dominadas por caricaturas tétricas e errantes do que serem amaldiçoados pelo livre arbítrio pleno; afinal, se houvesse tal criatura, não teria ela coisas mais instigantes com as quais se preocupar do que nós, meros pós de estrelas?

Estou em frente ao cemitério, com uma estranha sensação de abandono, que não entendo. Acendo um cigarro e reluto por alguns instantes se devo ou não entrar, mas algo me impele a fazê-lo. Assim que adentro aquele serpentuoso local, repleto de belas flores e de túmulos cercados por uma grama verde e bem cortada, sou acossado por um grupo de pessoas que prontamente me dão os pêsames e perguntam qual o meu parentesco com o falecido. Respondo, de modo ríspido, que sou um parente distante, com a parca esperança de me desvencilhar daquela horda, mas logo sou delicadamente levado por eles para o local onde se dará o enterro. O caixão é simples, mas está cercado por um grande número de pessoas e me pergunto porque todas elas estão aqui; porque eu estou aqui?

Antes que estas perguntas pudessem encontrar qualquer resposta, por mais insípida que fosse, todas as vozes se calam, inclusive minha mente, e o celebrante se aproxima. Fico ansioso para que ele comece logo e termine ainda mais rápido, mas parece que isto não irá acontecer. Enquanto o padre acerta os últimos detalhes com uma bela mulher, que de algum modo me é extremamente estranha e familiar, um dos mais intrépidos componentes do grupo que me trouxe até aqui, tranquilamente me pergunta qual o nome do falecido. Eu, disposto a não passar por mentiroso, mas achando aquela pergunta totalmente descabida, tento, desesperadamente, ler o nome gravado na lápide. Isso se mostra muito difícil, pois o nome está ligeiramente desbotado, como se a gravação tivesse sido feita há muito tempo. Sem opção e encurralado pela repetição da pergunta, forço meus olhos a decifrarem a inscrição, e, com tremendo espanto, reconheço meu próprio nome. Confuso, me aproximo desordenadamente da lápide, perseguido de perto por meu interlocutor, e verifico que meus olhos não me enganaram. Para atônito. Após descobrir por si mesmo a resposta de sua primeira pergunta, meu companheiro se vira para mim e me faz uma segunda – qual é o seu nome?

Desesperadamente, procuro uma saída daquele lugar e rapidamente alcanço a rua, na qual, inadvertidamente, encontro-me; mortalmente abençoado.

 

Poslúdio - diálogo com deus

Eu verei, diz o criador, verei sua face, sua alma
Eu sentirei, diz o criador, sentirei seu passado, seu destino
O trovão e o silêncio se arrepiam e esvaecem
A luz estremece.

Eu digo, intervém o peregrino, digo porque busco o criador
Eu contestarei, diz o peregrino, contestarei o poder do criador
A serpente e a escuridão se arrepiam e esvaecem
A luz estremece.

Então você, diz o criador, você não será mais parte da criação
Então você, completa o criador, você nunca foi parte da criação
O filhote e o frio se arrepiam e esvaecem
A luz estremece.

Então você, acrescenta o criador, você não entende
Então você, reflete o peregrino, você não compreende
O tudo e o nada se arrepiam e a luz esvaece
O peregrino estremece.

 

É tudo o que vemos ou parecemos ver,
Apenas um sonho dentro de um sonho?