psico-tecnologia robótica, de Fabiano Moreira
No dia 14 de março de 1998 ele havia
desistido de seus amigos e havia descoberto que estar
deprimido era uma atitude racional e absolutamente
lógica. Sua cabeça dói constantemente e vomita quando
tenta comer alguma coisa ou sorri de algo. As únicas
coisas que lhe dão prazer são os sons dos grilos à
tarde e o vento ocasional, lento-estúpido ou
estúpidamente-forte... a poeira, o ar, o cheiro de
nada... o frio suave ou gélido nas narinas. Mas isso
não é suficiente. Ainda falta força para que a vida
siga seu rumo. E enquanto espera a idéia que o salvará,
tudo se estagna... entre vida e morte. Um irmão louco com medo do escuro... seus pais são bons... não se lembra mais dos nomes de suas irmãs... não alimenta seu cachorro à muito tempo. Toda visão se distorpe... e ele pensa agora sobre algo que transforme o distorpe em entorpe. A visão entorpecida é o sonho. A fuga. A alternativa restante pra quem não quer viver triste, quando o suicídio é descartado por ser um método que vá doer demais antes do fim. A dor é algo incômodo sempre. Então a função da dor é mostrar que algo não está certo... então, se dói viver, a vida não está certa... então só resta a insanidade, resultado direto do descobrimento do universo. Somos todos protozoários pairando em meio ao vácuo e às luzes... a consciência disso causa a explosão ou implosão da célula-mór alma inseto humana. O seu caso é implosão certa. Não há outra alternativa. Ele grita pra dentro. Lógico que se pode viver sabendo... lógico que se pode dar um jeito... sempre se pode dar um jeito, se o aplicativo do esquecimento for utilizado. Se ele se esquecer ele apagará o que realmente importa. O esquecimento é uma morte dentro da vida. A página sendo não só virada, mas arrancada. O livro torna-se eternamente danificado diante dos olhos sem óculos das estrelas... (embora isso não importe, visto que não sabem ler.) A questão é que pra ele é preferível preservar a memória... se ele apaga a memória torna-se um disco rígido vazio, pronto pra novas experiências... novos programas a serem vividos... vívidos programas rodados... teria de trocar a placa mãe. Desenvolver uma nova personalidade... é o único jeito... se não pode consertar o problema, adapte-se a ele... aconchegue a doença ao invés de expulsá-la... sua memória será sua única amiga. Será tudo que lhe resta de si mesmo. Mas para viver em sociedade terá de criar uma face que aja por si só, automaticamente.... enquanto ele mora dentro de si... daí a necessidade da construção de uma nova personalidade... um tipo de piloto automático para a vida social. Se quer sobreviver ao mundo tem de estar entre as pessoas, infelizmente. As lágrimas deverão fluir invertidas pra dentro de suas glândulas por meio de processos ultrasofisticados... deverão cair dentro de si mesmo, enquanto seu rosto robótico sorri... são as maravilhas da psico-tecnologia... Agora ele precisa criar... tem de pensar em quem ele será... quem o representará diante o mundo. Deve criar alguém com uma história, gostos e personalidades distintos de si mesmo, embora não difira radicalmente de quem ele foi. Uma metamorfose falsa que deve se estabelecer até que ganhe automatismo. E a esse automatismo daremos o nome de vida. E o monstro recém-criado ganha um raio da existência, tão doloroso brilhante que acordaria até mesmo uma pedra (embora nada pudesse fazer visto que não deixará de ser pedra) e a faria pesar sobre si mesma até que alguém a destruísse ou destrua alguém por meio dela. Pensa em algo que seja plausível... e que seja diferente... alguém pra onde pudesse fugir, visto que sua amada não pode mais ajudá-lo... assim fugiria, dormindo ou acordado... uma fuga perpétua embora o corpo se mantivesse vivo. Uma pessoa calada e que não gostasse das pessoas (o que não era ele, visto que ele sempre amou as pessoas) embora mantivesse uma fachada tão bem feita que conquistaria a confiança de todos ao seu redor. Essa criatura tentaria levar as pessoas à autodestruição por meio de vícios, liberdade e conselhos que enviassem seus consulentes à um abismo pior do que o seu. Estudaria, leria, escreveria, analisaria, criticaria, seria consciente e inteligente. E fugiria da dor(único defeito no computador encefaloegocardíaco) por meio das artes. A vida seria insuportável dessa maneira. É insuportável criar alguém pra viver no seu corpo, forjar uma esquizofrenia tão bem feita que acabasse por se tornar. Ser o mais profissional possível... ser prático afasta pensamentos que sejam profundos a ponto de serem abismos. Quando anda estará fechado em si mesmo embora esse "si mesmo" não passe de uma armadura feia com o mesmo bigode que não podará em sua metamorstranha. No fundo a intenção é criar um inferno pra si mesmo... mas por que? Será que seu objetivo é purgar suas faltas? Será que seus pecados são assim tão graves? Seu pecado é meramente não saber viver... mas isso é tão comum entre anjos harpistas preguiçosos. Talvez ele seja, no fundo que submerge, um ser que se alimenta de treva. Um masoquista espiritual buscando dor e se prendendo a ela. A pergunta é se ele faz isso por mero prazer em estar sofrendo.... uma vontade geométrica e exponencial... gradativa... de se explodir por mecanismos alternativos dos métodos mais fáceis? Ou será que é esse o preço da lembrança?... do amor eterno?... pra que o amor seja mantido é preciso se lembrar dele... se segurar com todas as forças, correndo o risco de ser transrachado... mesmo que o amor negue tanta devoção. Chega-se por meio dessas perguntas à uma conclusão... ele se firma na lembrança pra que o amor seja eterno e o preço crucial é a dor absoluta que consequenciará a autodestruição. Será que existe um meio de manter o amorlembrança sem que haja sofrimento? Se a lembrança o arrasta á sua felicidade brilhando passado e ele se depara no presente desbrilhado, ocorre um susto que o bane para o Canal Dor, cheio de comerciais que o lembrem de que está vivo e que este sofrimento perdurará se ele não largar o cadáver emocional que abraça com todo o seu carinho e com o qual continuará fazendo amor... às vezes até com quase tanta intensidade quanto na deliciosa lembrança, que ele gostaria que não fosse mais antiga do que ontem ou que a estivesse lembrando amanhã, sendo hoje o dia em que ela ocorreria... e nesse futuro gostoso haveriam novos projetos para a criação ingovernada de mais e mais lembranças, como uma fábrica viva... intensamente viva... Essa é a única fórmula felicidade pra ele, porque todos os caminhos foram fechados, porque se não fosse de outra maneira seu amor não seria eterno. Ou seria? Talvez aja uma esperança... se ele se mantiver aberto à todos os outros caminhos e vivenciações e ao mesmo tempo a Lembrança... mas estaria desse modo sua Lembrança em primeiro lugar? E será que isso se faz tão necessário?... Seu amor seria menor se ele pensasse mais, ou menos, na Lembrança do que em outras coisas? Quando se ama se dedica... se você se dedica ao trabalho, você ama o trabalho... se se dedica ao cinema, você ama o cinema... pra se dedicar à lembrança então você a ama... e se a lembrança é o amor então você ama o amor... então sua atitude é de reter o seu amor... e esse reter é se lembrar. E o amor se auto-alimenta, devora sua própria carne quintessencial... se alimenta de sua própria destruição. Aí vem a dor... mas o amor se mantém ou torna-se ódio por não suportar todo esse auto-canibalismo. Se ele suporta, torna-se mártir de si mesmo... torna-se santo... sobe aos céus fibra-ótica-glorificado... Se o amor é retribuído ele se alimenta de outro amor... um canibalismo prazeiroso porque não é mais a si mesmo... e o outro amor, monstrinho mordedor voraz (vingativo ou recíproco? Processo natural), fará a mesma coisa. Essa circulação entre dor e prazer formam o estado Paixão. A paixão pode desvanecer mas o amor pode continuar vivo, alimentando-se de si próprio como foi afirmado antes, até que a paixão retorne e traga o alívio de volta. Se você mata o amor, como o fazem todas as pessoas relativamente normais, você consegue ter uma vida familiar. E talvez aguardar calmamente uma paixão de brincadeira, só pra se lembrar que também pode amar... e que é um pouco humano a mais. Depois arruma um meio de se separar para voltar a ser comum. Com Ele é bem diferente... porque ele não é comum... e não gosta de pensar comumente... ele quer beijar complexidades cheias de alumínio e vidro e cacos e parafusos pontudos friejando. Deve ser doloroso ser complexo, assim como ser medíocre é brisa-fresca-ensolarada-sem-calor. Passa então as noites nas forjas, com seu martelo, fazendo a sua máscara nova. A apresentará às pessoas assim que estiver tudo pronto... cada detalhe... cada marquinha... os buracos para os olhos, os quais cobrirá com óculos escuros (mesmo quando for noite se não estiver se preparando para dormir ou no banheiro quando estará longe das pessoas). Ainda a está preparando... delicadamente... com calma e tristeza... despedindo-se de quem era. Preparando o interior de si mesmo com música, café, cigarros, uma tv para os jogos de futebol e videoclips, mulheres com bundas grandes, uma cama macia para que possa hibernar talvez pra sempre (menos nos sonhos) e um cobertor de diamante escuro e fofinho para se proteger do frio duro seda lá de fora, torcendo pra que a máscara nunca caia, mesmo sabendo que seria mais feliz sem ela. Engole um pão-de-queijo inteiro, sem mastigar, e vira um copo de suco colorido (embora não perceba com os olhos ele engole um gosto de tinta doce)... os testes estão começando... o robô já logo poderá ser ligado. Tudo em nome do amor.
Câmera Craniana Acordou pensando sobre as palavras... notou que sua irmã lhe havia obedecido quando tinha lhe pedido com carinho um copo dágua. E também que seu amigo havia lhe compreendido quando lhe pediu dinheiro emprestado. Isso tudo porque pediu do jeito certo. Teria funcionado se fosse em outras situações... não é assim tão difícil. Provável até que se estivesse num cargo de poder, como presidente, general ou algo assim, que sua palavra também tivesse tido igual poder. Nem é preciso muito conhecimento. Simplesmente uma ignorância bem articulada... a expressão dos desejos com astúcia sobre as outras pessoas... pode-se conseguir qualquer coisa, desde o mais verdadeiro amor até as mais míseras moedas.... a mais pura verdade pode ser obtida facilmente por meio da mais honesta falsidade discursada. Essa era uma peça primordial em seu trabalho. A aparência de sua psico-máquina, a impressão que causaria daqui por diante, o acabamento final... seriam suas palavras. Ele se rodearia de símbolos e mais símbolos. A verdadeira consciência estaria escondida... ninguém iria perceber... Saiu de casa naquela manhã... o novo pensamento já criado... o pensamento do fundo, afundado em inconsciência. A nova visão despertando... caminhando em direção á padaria... um primeiro teste... o mundo por detrás de lentes escuras... os óculos de sombra são apenas o interruptor para ligar a máquina... em breve não precisará mais disso. De dentro de si enxerga o mundo se movendo... como se estivesse aprisionado dentro de uma câmera craniana, observando tudo de longe. Bem provável é que nada o possa atingir... seu corpo... um boneco gigante de nervos... caminhando plasticamente... talvez nem sinta dor, embora tenha de fingir o grito ao parafuso que lhe enterrem... mecanismo básico da programação, nada demais. Pronto... pão comprado por outro eu que nem o é, em torno de si... agora resta voltar pra casa... sempre conversou tanto com as pessoas... sempre as cumprimentou... hoje não faz nada disso. Hoje foi frio, como uma máquina de lavar desligada... em silêncio. O teste seguinte está chegando.... precisava romper com sua moralidade agora. Romper com a moralidade na primeira esquina. Lógico que isso se justificaria... Finalmente chega o momento. Um mendigo se alimenta de um pão velho... sempre na mesma esquina... horripilantemente sujo... sempre na mesma esquina... se fosse Ele, teria dó e compraria ao pobre homem um pão novo. Mas agora não é Ele... e era preciso provar isso... que a máquina não tem falhas... se agachou perto do velho, que triturava com paciência o alimento que Deus amassou. Chegou bem perto do mendigo e disse em palavras precisas... "Você é pobre... vai morrer sofrendo e provávelmente na solidão... ninguém lhe liga a mínima... a sociedade não precisa de você." O pobre homem parecia não ter entendido nada, pelo seu olhar... em outros tempos Ele o ajudaria e o cumprimentaria... o mendigo parecia confuso. Máquina levantou-se e seguiu seu caminho de volta á casa... Ele se sentia ótimo... a câmera havia gravado tudo e ele não tinha tido participação alguma naquilo, o que lhe isentava de qualquer culpa. Ele não sentia culpa. Ninguém sentia. Tudo estava bem... No escuro que aproveitava para fazer os reparos... não eram precisos muitos... no fim da noite, enquanto estava sob as cobertas, todo o corpo cansado, ele reparafusava peças soltas... pensava em tudo aquilo que tinha feito por ele mesmo... pelo seu prazer... e logo treinava para eliminar esses pequenos detalhes humanos, de modo que sua criação o sobrepujasse de vêz. Por meses o conseguiria. A intensidade seria eliminada de seu laboratório(vida). O ser humano-visão... agora estava começando a entender o processo do viver.... cada pessoa uma perspectiva dentro de si.... e o corpo uma câmera móvel, registrando tudo... com braços para esfaquear, para carinhar, para masturbar, para tudo que as mãos fossem capazes. O corpo como uma grande máquina... a mente como o ângulo adequado á nossos padrões tão individuais de auto-narrador. Se tudo é assim, então a psico-tecnologia é a mais antiga ciência... algo tão natural ao ser quanto o ato de matar ou de mentir. Então teria ele feito em sua vida alguma mudança que o separasse da humanidade? Não que fosse esse o objetivo.... trata-se mais de adaptação do que de apartamento... mas e ele?? Onde está chegando? Até onde isso o torna excepcional? E por que lhe dói tanto?? Já deixou de ser quem era já fazem uns dois meses.... já deixou de pensar como humano, o que subtrai de si a insanidade característica de seres pensantes que são pessoas.... agora ele é raciocínio apenas...sem densidade ultrapassada... hoje tudo é feito de plástico e fibras sintéticas... a meta é se proteger... proteger o seu refúgio interior. Proteger-se do mundo... o tempo todo no piloto automático(digo novamente). A dor, porém, continuava.... e o pensamento fixo em sua amada... em sua Lady Paixão perdida.... isso ele manteve preservado... dentro de uma gaiola de diamantes dentro de si... cantando... o amor cantando na gaiola... como um pássaro.... cantando... morto.... Um pássaro morto cantando... enquanto o corpo funcionava.... e a mente absorvia.... a vida ia acontecendo. Seus amigos tinham desaparecido de vêz... já era insuportável estar ao seu lado. Os pais sabiam que ele estava estranho, mas nem mesmo psicólogos ou psiquiatras poderiam resolver seu problema... não havia prova de insanidade... a não ser dentro dele.... ali ninguém conseguiria atingi-lo.... sua fortaleza era perfeita. Foi então que aconteceu.... um golpe inesperado da existência.... Lady Paixão Perdida foi visita-lo... perdeu os controles.... a máquina não tinha respostas... nenhum programa preparado para isso. Tudo estava em pane, sendo que ela nem tinha entrado. Estava do lado de fora da casa, tinha tocado campainha.... foi no olho mágico... na proteção distorcida do olho mágico... a visão belamente distorcida daquele rosto... daquele belíssimo nariz gigantesco... aquela testa suada, os olhos brilhando negros... negros... a mente se revoltando. Os computadores precisavam ser desligados ou evoluir rapidamente para uma versão 2.0. Não havia alternativas... estava contra a parede... o único modo seria não atender a porta. Correu para debaixo das cobertas, não havia ninguém em casa... era ele e seus medos... e o negro distorcido... o escuro do quarto... negro mágico olho... estúpido olho de mulher lhe deslocando o olhar... porta saindo da inércia e se fechando... sensível pensamento sendo invocado... toda uma estrutura sendo desabada... uma coberta no calor e tudo apagado... tudo... por culpa de um maldito olho de mulher!! Ela sabia que ele estava lá.... ou pelo menos insistia o tempo todo... insistia.... a cada grito da campainha ele gritava... e as máquinas iam se quebrando... as peças sendo chacoalhadas, soltas.... dentro de si... saco de peças... robô danificado. Dormiu gritando. Zumbi perfume diante da porta. "Quando caminho.... eu ando pronto para lutar... a ameaça sempre está em toda parte.... trata-se de pessoas!!!" É isso que ele pensa.... pessoas não são nada confortáveis... só servem para pensar ou serem pensadas... e quando pensam muito acabam se matando... e quando pensam pouco acabam se sorrindo.... mas ao custo de não saber. Ele experimentou pensar demais... e acabou se apaixonando. Da paixão ao suicídio a diferença é tênue.... é uma espécie de final clichê. Mas já está decidido... entre o tiro e o beijo, escolheria o tiro se de novo pudesse fazer a escolha... cala-se o cérebro.... descansa o coração. Mas agora não... agora seria cômodo morrer. Ela tocou a campainha desesperadamente... e ele adormeceu... ela fazendo barulho... ele silêncio... nunca mais iria vê-la... não agora que chegou tão longe em sua tristeza segura.... só faltava consertar peçinhas... pequenas engrenagens... logo já estaria funcionando novamente... poderá manter o sistema programado á sua meta principal... continuar preservando o amor, permanente... percebeu que para isso só havia um método.... Nunca mais toca-la... nunca mais filmar seus olhos com sua câmera-EU. |