a arte de volta ao cinema, de Marcos Nunes

  Sob a pressão do capital, há muito o cinema abandonou qualquer pretensão além de servir à multiplicação dos dividendos. Quando muito, reverbera tendências, segue padrões moderninhos e tira alguns anônimos das agências de publicidade, premiando-lhes com a fama fugaz que lhes é de direito, fama que ajuda a alimentar a mídia, que cede generosos espaços em cadernos culturais a essas criaturas, cadernos que são o lar de toda manifestação da vaidade dos pseudo-intelectuais metropolitanos.

O péssimo humor é só para não perder o hábito? Não, ele é justo. Mesmo quando vamos falar de um filme que, se não é a redenção da cinematografia como arte, é ao menos mais uma lata para se por nas cinematecas e esperar pelo fim dos tempos. Colocar numa cápsula do tempo, vagando pelo espaço, como prova que existiu vida inteligente neste planeta, além de Bach, Beethoven, Leonardo e mais alguns poucos.

O filme em questão, INQUIETUDE, foi realizado por Manoel de Oliveira, português, quase centenário, de obra bastante diversificada, que inclui um excelente épico às avessas – NON, OU A VÃ GLÓRIA DE MANDAR, uma opereta antropofágica antiburguesa – OS CANIBAIS, e uma comédia ambientada em um asilo de loucos voluntários – A DIVINA COMÉDIA.

INQUIETUDE divide-se em três episódios e em duas vertentes principais: a palavra e a imagem. Os personagens não apenas falam, mas recitam, textos que vão do sarcasmo ao patético, totalmente entregues à busca da expressão lingüística que não se completa, perdida em costumes que se sobrepõe a cada um como a razão que se construiu acumulando-se equívocos através da história. Entre o mítico e o real pleno, fissuras que se estendem e engolem aqueles que procuram encontrar nos meios humanos a possibilidade de realização da vida como um sonho verdadeiro.

As imagens não são belas em si mesmas, não procura a câmera se ocupar de colher referências que levem o espectador a terrenos conhecidos; ao contrário, tudo que vemos é novo, é deslumbrante, se coloca como máxima expressão do que se pode dizer com os meios cinematográficos, como focalizar determinado quadro para conceber uma cena que só poderia ser tratada daquele maneira, para que pudéssemos dela colher indeterminadas conseqüências. São as imagens compondo uma obra ímpar, que mesmo partilhando dos espaços públicos e privados padronizados, os tem como sustentáculos para revelação do que se apresenta, na forma de três pequenas histórias sobre as incongruências do humano e de suas criações, a perda constante do ser em razão do que se assemelha à verdade, mas é apenas fruto de convenções criadas por estratos sociais em conflito, ou imersos em tal idealismo que nunca atinge o objeto sobre o qual passeia sem nunca tocar.

Não temos aqui o cinema francês, verborrágico e repleto de imagens preciosamente construídas, mas vazias como os letreiros de neon que focalizam como demonstração da fugacidade do real, ou mesmo do belo, ou quem sabe da nomeação artificial das coisas. Também disso trata Oliveira, das artificialidades de nossos esquemas de pensamento, da forma como nos ocupamos de nosso desejo à imortalidade procurando desconhecer a nossa essencial condição de mortais, perecíveis, que não podem ser salvos sequer por documentos ou monumentos. O homem se vai, e não há quem se contente com isso.

Diante das poucas perspectivas cotidianas, envolvemo-nos com os mundos pretéritos e sonhamos com o futuro, mas sempre somos anacrônicos. Nunca, em nenhuma oportunidade, atingimos o presente e a nós mesmos. Recitamos a Teogonia ou poemas românticos, escudamo-nos em nossas teses ou desejos sexuais, mas nada nos permite viver o que imediatamente se coloca para nós. Tudo o que nos acontece é dado, é referência, é algo que deve ser lido sob determinadas técnicas, é alimento para sensibilidades frívolas, fúteis em seus idealismos sempre extemporâneos. Não nos realizamos e não nos compreendemos, mas vivemos e acompanhamos a vida como nos interessamos pelo alheio, e também como este cinema procura nos atingir em nosso alheamento e investir na radicalidade dos princípios que humanamente observamos, para torná-los como sombras de um sonho que está fugindo, como no poema de John Donne.

O cinema é arte quando se projeta como obra singular e acabada, onde as interferências do meio são recompostas conforme os rigores daquele que organiza a produção das imagens e pensa em dotá-las de outros elementos que a construam e a integralizem. O artista sintetiza os conflitos, as razões, os estímulos, os desejos humanos, e não o faz atento às técnicas que tolhem sua disposição de organizar os planos e os elementos que o constituem, não o faz sob as pressões dos clichês, dos lugares comuns, dos gestos legíveis, compreendidos, milhões de vezes repetidos e tidos e havidos como "a gramática essencial do cinema", onde os planos devem ser curtos, onde as atuações tem que ser ao mesmo tempo exacerbadas e naturalistas, onde música e texto devem interferir na medida em que não tornem as seqüências demasiado longas, ou criem um contraponto entre as imagens que reforcem uma estranheza que transporta o público comum à refração, ao tédio.

INQUIETUDE não é um filme de concessões, se pretendeu ser o que ele é, algo misterioso ao tratar do banal, irônico e indireto, mas ao mesmo tempo incisivo, sem no entanto deixar de ser um filme climático, que se percorre com a estima que temos pelas paisagens queridas e pelas páginas da literatura que mais nos comove, sem nunca fazer nossa razão escrava de fórmulas, ou de nossa sensibilidade uma sombra de afetações que ambicionam à profundidade, quando tudo que temos são nossos poucos sentidos e uma cognição que se perde nos meandros dos dias que nos atropelam.

Talvez se desconfie que este filme seja como os outros, carregados de lições de vida, de palavras serenas sobre como viver e o que fazer enquanto se vive. Desconfiança que não se sustenta acompanhando um filme que trata justamente de como nos perdemos enquanto vagamos à procura de sentidos para nossas vidas, das quais queremos mais e nunca sabemos exatamente o quê, e onde estaria a satisfação extática com que sonham os que idealizam uma impossível eternidade.

Trata-se da inquietação humana face suas evidentes carências, trata-se das demonstrações de força que são engolidas pelo tempo e não deixam traço na história, senão pela obsessão de oferecer sentido ao que vivemos e às coisas que nomeamos à revelia delas, algumas apenas fenomenológicas, no sentido de criaturas de uma razão que determina coisas como manifestações de um possível espírito humano.

Em suma, o que vimos não foi o cinema como expressão das "necessidades" do tempo, mas justamente como impossibilidade de expressão de um tempo, onde as "necessidades" humanas contam suas histórias anacrônicas. Comédia dramática com requintes de ironia (e autoironia), INQUIETUDE é um filme para todos que nos chega como um filme para poucos ou para ninguém, porque é cinema como pensou Walter Benjamim, que não reproduz a história e o ideário dominante, mas cria a partir daqueles que fazem a história e tem no cinema a possibilidade de somar formas autônomas de arte - pintura, música e literatura – com a técnica moderna, sem as ditaduras das rentabilidades, bilheterias, ideologias. Criação interessada em nossos descaminhos, não se projeta para indicar qualquer trilha, mas para multiplicar em nossos desvãos do imaginário a insubmissão de quem se inquieta e não aceita o tido e havido como absoluto e eterno. Que ponham as barbas de molho todos aqueles que assim se julgam (eternos) ou se pretendem, ecoamos Melville, que ecoa em Oliveira e nos atinge em cheio.