a chuva, de Leonardo Rossato
Levanto-me assustado e suando frio.
Tive um pesadelo e agora não vou conseguir mais dormir.
Eu caindo e ninguém para me ajudar, mãos sendo-me
oferecidas e eu sem conseguir agarrar alguma. Não chego
a cair no chão. Acordo. Vou ao banheiro e fico
olhando-me no espelho: os olhos cansados, a boca
ressecada, a pele morena claro, quase desbotada e as
espinhas já timidamente desaparecendo, após anos de
convivência comigo. Era de madrugada. Perdi o meu relógio, mas suspeito ser entre três e quatro horas. Pensava em tudo e ao mesmo tempo em nada. Infinito- finito. Possível- impossível. Tudo parecia ser igual para mim. Todas as pessoas pareciam apenas não ligar. Sentia-me angustiado, no entanto, corajoso. Se alguém tinha que entender o que estava acontecido comigo era apenas eu. E mais ninguém. Saí do banheiro e abri a geladeira. O frio tomou conta do meu corpo e no meu peito nu senti meu coração bater forte. Que bom se estivesse apaixonado! Era apenas raiva, angústia, revolta... Já tinha acordado sozinho em casa ao meio da noite várias vezes, mas nenhuma como aquela. Ou talvez seja. Todas as noites são iguais, pensei indiferente. Peguei uma cerveja e a abri. Tomei um gole no gargalo e senti o líquido gelado e prazeroso descer por meu corpo já inverno. Peguei um cigarro e escolhi o cigarro mais escondido. Procurei por fósforos, achei o isqueiro. Troquei de roupa e saí para a rua. Com a cerveja em uma mão e o cigarro na outra fui dar uma volta pelas ruas da minha cidade. Não sabia para onde ia, mesmo sabendo que algo me puxava, como se um imã estivesse me fazendo isso. Sentia-me como uma marionete e gostaria de saber aonde estava indo (mesmo que no fundo soubesse). Enquanto passava pelas noites sujas do meu bairro, observava o que à luz do dia não encontrava. Os olhos famintos e tristes dos mendigos que se uniam como irmãos contra o maior dos inimigos: a morte; as prostitutas vendendo seus corpos para que seus filhos tomem leite e comam um pedaço de pão com margarina. Naquele olhar sensual e provocativo, eu entendia tristeza, dor, submundo. O medo, a raiva, a angústia de viver assim. No fundo ninguém quer ser como é. Não conseguia encarar essas pessoas, olhá-las nos olhos. Talvez porque meu pequeno mundo fora invadido, inevitavelmente, por essas pessoas, eu me sentia culpado. Não sei porque me sentia assim, sabia que todo o mal do mundo não era minha culpa. Talvez por conhecer de todo esse mal, mas nunca ter feito realmente nada para ajudar. Me senti demagogo e sujo. Senti-me culpado de novo. Inútil. Temeroso. Covarde. Só. Terminei de beber a cerveja e a joguei no lixo de alguém. Fez algum barulho e talvez apenas algum sonâmbulo ou alguém que gosta de viver e trabalhar à noite tenha escutado. Ou talvez ninguém tenha ouvido. Não me importa. Às vezes dou tanta importância para certas banalidades da minha vida e depois fico me perguntando se valeu a pena lutar por pouco. Eu tenho tanto coisas maiores para lutar que deveria centrar minhas forças nelas. As pessoas medíocres que se preocupem com as banalidades da vida. O cigarro que fumava faltava pouco para terminar; dois tragos e o joguei fora. Pisei fortemente sobre a chama e minha raiva foi canalizada naquele momento, naquela pisada. Bobeira, alguns podem pensar, mas eu precisava usar minha raiva. Rangi os dentes, mas mesmo tentando explicar minha raiva, não a entendi completamente. Pensei em minha namorada e quando ela me largou; nos amigos e quando estes não me ajudaram; meu pai e minha mãe brigando; o padre me xingando quando disse-lhe que não mais voltaria a igreja dele. Lembrei de tudo isto e esmaguei o cigarro. Chorei. Minhas lágrimas mataram as poucas chamas que ainda sobreviviam. Ninguém é e todos somos culpados. Senti-me mal. Meu estômago revirava-se. Minha cabeça doía. A lua agora me cegava. Os mendigos e as prostitutas pareciam ter sumidos. Não tinha bebida ou cigarro ou alguém. Começava a chover. Só faltava isso, pensei. Os pingos começaram suaves e tocaram a minha face generosamente. A chuva me enternecia como que se precisasse dela para que apagasse todos os meus pecados. A chuva me agradava. A chuva me acalmava. Senti-me num filme e dancei no meio da rua. Alegrei-me. Minha boca não estava mais ressecada e meus dentes amarelos por causa da cigarro abriram um sorriso bonito na minha boca. Começava a chover mais forte. Encharquei-me e continuei andando. Meu corpo e minha cabeça sabiam para onde me levar. Minhas pernas me guiavam. A colina. Há alguns minutos irá amanhecer. Andei pela noite quase morta e comecei a ver o lado positivo das coisas na minha vida. Pelo menos tentava fazer isso. Ou não tentava, não sei ao certo o que fazia ali. No entanto, as poucas pessoas que passavam por mim, não entendiam como uma pessoa encharcada da chuva, andando (quase) sem rumo de madrugada podia ter aquele ligeiro sorriso no canto esquerdo da boca. Subi algumas quadras e cheguei à colina. Sentei numa pedra toda rabiscada e reconheci o meu e o da minha namorada escrito com meu canivete suíço em forma de coração. Lembrei do momento que escrevi aquilo naquele lugar tão simples e tão significativo com curiosa emoção. Lembrei do vestido preto que ela usava e lhe caía muito bem, de seu hálito sabor menta da bala que chupava, de seu sutiã beginho, de seu sorriso enternecedor e das duas covinhas que faziam em seu rosto. Dos seus olhos vivos, de seu rosto e de sua boca que tantas vezes tive o prazer de beijar. Sentei e cruzei as pernas. O dia começou a nascer. O sol agora me cegava. A cidade começava a nascer mais uma vez e seus habitantes lá embaixo devem agora estar no banheiro lavando os rostos ou assistindo o noticiário matinal. Não quis ainda voltar para casa, queria apenas ficar ali sentado. Apenas observando. E lembrando. O sol já ardia nas minhas costas e apaguei o meu nome e o da minha namorada escrito com canivete suíço em forma de coração. Não tinha mais raiva. Apenas apaguei e fui embora. Ninguém é e todos somos culpados, pensei enquanto voltava para a minha casa. |