sonho em k
de daniel gomes
Que soneto é este sonho, Um sonho deveria soar como um soneto, mas a peculiaridade do sonhador transforma o tom num repleto jogo de sons, num tilintar de chaves que abrem a porta do ritual cotidiano... Ele entra, o casaco na estaqueira e a valise na mesa de encostar ao lado do telefone sob o interruptor, que ilumina todo o exíguo ambiente que constitui um lar. O ranger das dobradiças precede o som da porta ao se fechar, num dia que termina. Mas hoje ele perde seu herdeiro, pois seu criador retrocede para o cinzento corredor, de onde observa pasmo um grande cágado virado no centro da sala. Ele espia, sorrateiramente protegido pela madeira de má qualidade, enquanto é calmamente espiado pelo réptil em sua firme casca. Seria provável um sibilante paralelo, traçado pelo lento ir e vir de olhares em busca de compreensão. Uma conjugada e dividida aceitação do inescapável fato de que há algo além de suas proteções reais, e de estranho, onde tudo deveria ser simplesmente previsível. Ele adentra, tartarugando pelas bordas dos móveis mudos, rumo aos corriqueiros hábitos. Primeiro vai até a cozinha, prepara um lanche e come sem importar. Em seguida vai até o banheiro, escova os dentes e encara o espelho sem admirar. Volta então a sala, confere a tranca da porta e apaga a luz sem questionar. Depois vai até o quarto, troca de roupa e deita com a leveza de um estivador que joga um saco sem saber o que contém. Um sono tranquilo é tudo que ele pede, como se não tivesse tempo para refletir sobre seus miseráveis dias repetitivos, mas lança furtivos olhares em direção ao cágado que se esforça em mudar... Ele acorda, dominado pelo automatismo matinal, inicia seu poderoso ritual sem poder. Primeiro vai até o banheiro, urina e toma banho... seu pensar aguarda... Em seguida vai até o quarto, boceja e coloca seu terno... seu pensar faísca... Volta então ao banheiro, espirra e penteia o cabelo... seu pensar espreita... Depois vai até a cozinha, suspira e toma um café... seu pensar desperta. Revirado; a palavra que se forma em seu pensar reflete bem a situação. Pronto para mais um dia de trabalho ele vê um cágado no centro da sala. Pega seu casaco e sua valise sem sentido para ir e vir e vai até a porta. Gira a chave que faz pouco barulho e volta para o cinzento corredor. Desce as escadas em direção a rua que atravessa até o ponto do ônibus. Espera o tempo. Cumprimenta o velho motorista conhecido e senta no lugar de costume, próximo a uma janela. A cidade passa por seus olhos, bela e triste donzela, que não olham para aqueles que o acompanham. Ele desce defronte ao prédio estilo pombal. Um milagre da arquitetura moderna para prender os homens em cubículos nos quais consomem, entre papéis e telefones, seus dias de trabalho árduo e socialmente produtivo. Receber e revisar e corrigir, quando preciso, e carimbar e despachar. Um copo de café aguado. Receber e revisar e corrigir, quando preciso, e carimbar e despachar. Um copo de café adocicado. Receber e revisar e corrigir, quando preciso, e carimbar... hora do almoço. A manhã passa rapidamente e sem problemas. A caminhada até o pequeno restaurante onde almoça é agradável, quando não chove. O prato do dia é sempre uma boa surpresa. São em lugares como estes que se descobre que qualquer coisa pode transformar-se em uma refeição gostosa e saudável. Uma pequena sobremesa para completar e outra breve caminhada em sentido contrário. A tarde tende a ser um pouco vagarosa, os ponteiros se alinham com os homens e se movem lentamente, mas cumprem sua missão. Despachar e receber e revisar e carimbar. Um copo de água. Receber, carimbar e despachar. Um comentário sobre o tempo. Receber e despachar. Uma despedida sem despedidas. O trajeto para casa é feito a pé, faz bem para a saúde e o espírito, dizem os médicos. Ele passa por ruas pouco movimentadas, tomando um caminho mais longo. Contempla a cidade onde nasceu e viveu. Seu bairro é próximo ao centro comercial, pequenos prédios e algumas casas ainda resistem ao ataque dos arranha-céus, o pão já não é mais feito em fornos a lenha. Ao passar, ele pega a correspondência. Uma carta de seus pais que voltaram para o interior traz notícias sobre a criação, as plantas e os vizinhos. Vários folhetos sobre produtos que irão salvar sua vida da angústia pós-modernista. Algumas contas que precisam ser pagas. O elevador chega ao sexto andar, foi uma sorte ter conseguido esta cobertura em um condomínio tão simpático. Ele desce para o corredor decorado em cinza e abre a porta que range e bate. "Um cágado é um réptil de pescoço tão longo quanto a coluna vertebral"; isto foi tudo que ele conseguiu descobrir sobre seu hóspede. Não se pode esperar muito de um minidicionário. O que fazer com um réptil de pescoço longo que está virado no centro da sala é uma pergunta que nem mesmo a melhor enciclopédia responderia; ele vai precisar de ajuda. Ele, o cágado, também não deve estar entendendo muito bem o que se passa aliás, nem eu estou entendendo. Ele continua na mesma posição do dia anterior, ou seja, revoltado com sua condição, mais uma vez ele está revirado. Começa a pensar que aquilo pode se tornar uma rotina, mais uma rotina de seu dia cheio de rotinas que mudam rotineiramente para outras rotinas. Cansado, a idéia de rotina parece algo confortante, pois ele não sabe o que fazer com aquele pescoço longo alojado em sua sala. Acha mais fácil se dedicar aos seus corriqueiros hábitos. Primeiro vai até a cozinha, em seguida até o banheiro, volta para a sala e depois o quarto. Dorme e sonha com um soneto em seu nome. Pela manhã, após seu circuito pelo banheiro, quarto, banheiro, cozinha e sala, pronto para mais um dia de trabalho, o telefone de enfeite toca. Um toque alto e agudo, que o impressionou pela hora baixa e grave. Ele atende seu psiquiatra com uma presteza que assusta seu hóspede ainda sonolento. A ligação emergente remarca sua sessão para hoje, no final da tarde, quando ele poderá questionar sobre o que fazer; pedir ajuda. A cidade fria e úmida passa como a manhã. O almoço é pouco proveitoso devido a fina chuva. O final da tarde guarda expectativas, pegar um taxi, ir ao consultório, encontrar Sofia, esperar... Certamente é difícil, mesmo para um profissional experiente, acreditar em certas histórias contadas pelos pacientes. Casos de assassinato, de estupro, de traição, de incesto, crimes e pecados diversos perpassam o dia de um psiquiatra. Mas um cágado, um elefante, extraterrestres, vampiros, seres e mitos diversos são sempre uma curiosidade de cunho científico, claro. A melhor atitude a ser tomada são conselhos leves, subliminares, difusos como retirar o réptil da casa, tentar descobrir quem é o dono, voltar na próxima sessão para uma análise mais profunda do caso. Ele chega em casa com o ranger e bater da porta. Um seriado fajuto de detetive seria um pano de fundo exato. Mas antes deve cumprir sua rotina que comporta todos os cômodos de seu apartamento, com um papel pouco destacado para a sala. Ele começa a perceber que a sala realmente tem pouca utilidade em sua vida. Serve para colocar seu casaco, sua valise, o telefone e a foto dos pais, nada mais do que isto. Imóvel, sem poder mais definir se virado ou revirado, o cágado começa a impor seu domínio. Afinal, é ele quem usa a sala. É verdade que esta situação não pode durar por muito tempo, mas nada tem de mudar por causa deste estranho evento. Ele pode ser sumariamente ignorado, desprezado em sua insignificância. O hóspede se sente bem e pode ficar na sala por mais algum tempo, pena ele não ter um sofá. Dorme sem sonhar. Acorda, com a forte impressão de que tudo foi um sonho esquisito, solução simples para o problema principalmente na prática literária. Mas isto não é suficiente para fazer com que seu visitante desapareça. Ele continua no mesmo lugar, sem se mover, sem dizer uma palavra, sem nem mesmo respirar. Isto preocupa seu anfitrião indeciso, que após seus ritos vai para o trabalho. Ônibus, janela, cidade. Receber, carimbar, despachar. Café, água, tempo. Caminhada, almoço, sobremesa. Receber, carimbar, despachar. Café, açúcar, despedida. Caminhada, bairro, pães. Para; conversa com o porteiro sobre o possível desaparecimento de um bichinho de estimação. Ninguém reclamou, mas ele vai prestar atenção, rir pelas costas. Elevador, corredor, porta. Desconsolado, ele adentra seu apartamento já sem esperanças. O cágado esboça um sorriso de vitória, ele cumpriu sua missão. Mas, espere, sua rotina, seu ritual, seus hábitos não se alteraram. Cozinha, quarto, banheiro, é tudo que ele tem e precisa. Agora basta, o casaco na estaqueira e a valise na mesa de encostar. Acrescentado de um pequeno olhar para o centro da sala, apenas para conferir se nada mudou. Dorme, as vezes sonha. Acorda, as vezes corrige. Almoça, as vezes chove. Despede, as vezes sozinho. Caminha, as vezes não. Num desses arranjos ele volta ao psiquiatra. Discutem sobre o caso que muito interessa ao doutor, que insiste no tema. Médicos são pagos para isto, para nos lembrarem e relembrarem de coisas que queremos esquecer que existem ou são possíveis. Como o dia em que sua mulher o deixou levando a pequena filha uma infeliz idéia absurda pode surgir nestes momentos. ... Agora, eles são uma família perfeita. K perpetua sua rotina, enquanto o cágado permanece em seu lugar. Mas, num certo dia, ele acorda com o tilintar de chaves que abrem a porta do ritual cotidiano... |