radim, de fabiano moreira
Maurício costumava chegar em casa ás
21 horas. Hoje conseguira sair mais cedo. Antes haveria
de passar no supermercado. Com o dinheiro que ainda lhe
restava compraria ovos, biscoitos e café. Não parece
dar boa estória. Ou pelo menos não se formos valorizar
apenas o clássico ponto de vista no qual se dá
atenção a algo que cresce, progressivamente
transquebrado por quedas e de repentes até atingir
ápices seguidos por calmos sentimentos, onde o herói se
rejubila em deleite. Ou então após o píncaro haveria
gloriosa queda, que, ás avessas tornaria-se um ápice a
seu modo. Também poderia ser assim, certamente. No entanto darei ênfase a um outro tipo de estrutura na qual o enfoque não estará no herói (Maurício), nem no em si das descritas situações(supermercado, casa, banho, sono do bom trabalhador). O enfoque estará em picuinhas, isso mesmo, picuinhas de fundo psicológico. Comecemos, portanto. Maurício saíra mais cedo de seu trabalho devido a um terrível incidente com seu chefe. Nervoso e suado, o patrão mantinha um sistema rígido de controle de seus funcionários. Essa rigidez era amaciada somente em situações onde sua esposa se interpunha. Vou explicar. Certa tarde, quando ainda faltavam 15 minutos pra que Maurício e os outros fossem liberados do banco, Azevinha aparecera de olhos vermelhos e bafo de cachaça quente. Quando ela grunhiu as primeiras palavras, a ação do sábio chefe foi imediatamente dispensar seus funcionários. Afinal, gordas escandalosas representam gordurosas manchas na reputação de um chefe. Era a mais sensata coisa a se fazer. Pois bem, a situação aqui é semelhante. Jonas havia dispensado Maurício assim que sua mulher fez mais uma de suas desagradáveis surpresas. Com o suor escorrendo da testa, Maurício adentrava o supermercado que havia diante de seu ponto de ônibus. Esbarrou por algumas senhoras de classe média carregando crianças e inúmeros produtos coloridos nos carrinhos. Após escolher o seu e se pôr a andar calmamente foi aos poucos relaxando. O humor já se alterava para melhor. Melhorzíssimo quando o cheiro quentinho lhe tocou o nariz, aguçando-lhe o paladar. Uma
mulher sorridente e magra, servia cafezinhos. Maurício
tomou um café gratuito, depois mais dois, só não tomou
mais por educação. Não que houvessem mais pessoas na
fila, nem mesmo havia fila. Mas ele não --- Moça. Por que é que você também não toma um cafezinho? Por acaso não gosta? --- Gostar eu gosto, moço. O problema é que não me é permitido tomar deste café. São amostras pra vocês consumirem, não pra mim. --- Mas também é uma consumidora de café, Aline(estava escrito numa pequena plaquinha, perto do bolso de sua blusa), tem todo o direito de experimentar. Além do mais, não é abuso nenhum experimentar ao menos um copinho. --- Está bem. Já que não há mais ninguém por perto querendo que eu sirva acho que não vai fazer mal. Disse Aline virando numa única golada todo o café do copinho plástico. Maurício comprou o café mais barato quando prosseguiu nas compras e alguns biscoitos de polvilho para acompanhar. A última coisa foram os ovos, uma abundância de proteínas envolvida por uma estilosa armadura de cálcio. Sempre gostara do formato único de um ovo. O poderoso e alquímico símbolo de suas refeições. Quando estava virando com a caixa de ovos, rumando em direção ao caixa rápido... PLESTHCS... esbarrara numa mulher negra de estatura baixa que estava distraidamente fazendo contas com uma calculadora. Assustada, ela olhou para Maurício e disse: -- Desculpa, moço... nem o tinha visto passando... -- Nota-se. Disse Maurício com tediosa frieza. Teve que ir pra casa sem os ovos. Levara consigo apenas o café e os biscoitos. Era suficiente, visto que almoçaria na casa de um amigo no dia seguinte. No ônibus resolveu ficar em pé. Gostava de se balançar a medida que se aproximava a sua rua. Chegando já foi logo descendo. Subindo as escadas já foi logo entrando em seu apartamento. As luzes todas apagadas. Mal dava para se perceber a humildade do lugar. Maurício não havia pago a conta de luz. O telefone ainda funcionava mas só recebia chamadas. Hoje desligaria o telefone. Queria paz, queria uma solidão contemplativa que só o silêncio e a ausência de luz poderiam lhe dar. O
banho de água fria no escuro era revigorante. Adorava
sentir o gosto da água. Gostava da palavra:
"refrescar" e isso era facilitado pela sua
imaginação quando esta lhe proporcionava um cenário
onde uma cachoeira suave lhe banhava involuntária sob o
sereno da noite. Estava fazendo tanto Com as janelas todas abertas a casa recebia uma arejada muito ilusória mas muito significativa também. Acendeu uma vela com seu penúltimo fósforo. Com a leve iluminação da chama podia preparar o seu café e lavar um pouco de louça suja que ia se concentrando na pia. Fazia sempre questão de muito açúcar. Bem como as formigas que lhe faziam companhia. Retirou cuidadosamente o açúcar pra que nenhuma formiga fosse junto no processo de adoçamento da água que brevemente ferveria. Derramou propositadamente um pouco na pia. Certamente gostaram da oferenda de seu anônimo benfeitor. Sentou-se no sofá com sua caneca na mão. Seus pés formigavam. Deu uma boa golada de seu café que se indecidia: mais doce ou mais amargo? Mordeu um biscoito de polvilho. A vela tremeluzia calmamente. Um perfume de bife fritava no apartamento vizinho. De repente até suspirou. Não era só o ambiente, a serenidade de seu lar, nem mesmo era a riqueza de sensações que seus sentidos absorviam. Era o pequeno rádio preto sobre a mesa. Mesmo desligado o radim irradiava presença. Ligou-o, radim de pia. A voz do narrador era quase um sussurro de empolgação. Não sabia nem mesmo quem jogava mas a alegria lhe encheu os olhos de luz. Foi necessário apagar a vela e aproximar o radim de seu ouvido. Aquela intimidade lhe dava um frio na barriga. A empolgação do narrador pulsava em suas veias, bania suas preocupações. Teve de dar mais uma golada. Alguém marcou gol. Maurício calava-se em êxtase. |