panóptico, de roberta azambuja
"PANÓPTICO, adj. Diz-se
de um sistema de construção Dicionário Caldas Aulete Entrar naquela renomada escola que a maioria dos grandes homens do país freqüentaram era mais do que uma vitória para a minha família e mesmo para mim; seria a minha passagem por seus longos corredores e as palestras com os professores que abririam um enorme caminho para o meu futuro, para o meu avanço social e político. Mesmo a beleza daquela construção com sua arquitetura clássica já causava admiração; seus longos corredores em mármore de uma tonalidade amarelada tendente para o bege criava um ambiente de serenidade e concentração. Os dormitórios amplos e com um certo luxo; todos os alunos com seus uniformes cinzas de lã e boina; tudo como rezam a etiqueta e a boa educação. Intrigante era que, mesmo sendo uma escola internato masculino, comportavam-se os alunos pré-adolescentes de maneira extremamente recatada; mas no fundo, isso não me incomodou, afinal eram as elites, éramos a elite. Adequadamente vestido com minha boina e com as calças curtas e cinzas entrei na fila para o café da manhã no agradável refeitório e desde já conheci colegas dos quais paulatinamente tornei-me amigo. César foi o que se mostrou um dos mais receptivos; com seu cabelo curto e loiro já me falava com certo prestígio e orgulho de que seu pai era desembargador e com os olhos brilhando proclama que também ele seria. Foi assim o meu primeiro dia naquele Instituto; primeiro dia que me encheu de orgulho por ser parte daquele conjunto, com sua bela arquitetura, com sua doce cor amarela nas paredes e chão, pilastras e colunas. Entretanto, quando os dias foram passando, reparei que certo incômodo geral era sempre constante; todos os momentos que descontraídos falávamos sobre assuntos triviais e mesmo "de rapazes", meus colegas imediatamente olhavam para os lados, em volta, quase que à procura de alguém ou seria esquivando-se de algum. Somente depois de poucos dias soube o porquê daquela quase neurose que se instalava a todo instante e quase que por qualquer motivo: o inspetor era um homem muito rigoroso e sério e vigiava a todos. Mas não fazíamos nada de extraordinário que pudesse chamar a atenção do temido inspetor... apenas idiotices de meninos, coisas triviais de nossa idade... não entendia o motivo de todo rebuliço e muito menos conhecia tal inspetor... tudo devia ser mera invenção daqueles meus novatos colegas que, de alguma forma, tentavam me assustar... Porém, alguns dias passados, perto do meio-dia enquanto esperávamos a hora do estudo, conversávamos sentados em uma das escadarias da escola. Um colega mostrava-nos uma bala ou goma de mascar que conseguira com um outro. Eu, mais do que depressa, antecipei-me em garantir um para mim! Era do sabor morango, coisa rara de se encontrar naquela instituição! Olhos arregalados, ainda descrente com aquela especiaria, não percebi o verdadeiro pânico que se instalou entre os demais.... coloquei aquele doce na boca e me deliciei o sabor fervente de morango... hum... ao observar ao meu redor assustei-me com os olhos esbugalhados e as faces pálidas de meus amigos... ora, por que vocês não..... inspetor??? Durante uma semana fui obrigado a fazer tarefas e trabalhos extras... muita pesquisa na vasta e amarelada biblioteca, muitas horas de leitura e estudo como castigo pela infração, por uma simples, deliciosa e singela especiaria... entendi então a razão de todo a comoção geral do Instituto; e tentando não ser mais surpreendido, tentei me reinteirar dos fatos históricos que envolviam a arrepiante figura do inspetor. Todos falavam que ele era o olho da direção, um verdadeiro Sherlock em descobrir as "brincadeiras" de todos alunos. Alguns diziam que ele estava sempre em toda parte e em parte alguma; uns diziam que se esgueirava pelos corredores camuflado por sua capa ¾ também amarela; comentavam até mesmo que circulava por portas secretas e era por isso que se deslocava tão rápida e imperceptivelmente por toda a vasta área da escola. Mas os comentários mais fortes eram que na verdade era ele um bruxo que sumia de um lugar e aparecia em outro; os mais religiosos afirmavam ainda ser ele um santo, que como São Francisco, tinha o poder de estar presente em vários lugares simultaneamente; eu, por minha vez, comecei a acreditar ser o inspetor não um, não uma pessoa, mas quem sabe vários irmãos gêmeos, quadrigêmeos talvez, contratados para tal missão. A verdade é que tais suposições nunca eram definitivas, justamente por serem meras conjecturas de meninos que ainda usavam calças curtas e que se disfarçavam com boinas de adultos. Certo é que também eu percebi o perigo que todos corríamos e tornei-me uns dos líderes do movimento em prol de arranjar os meios e modos cabíveis de não sermos pegos por tão perverso inspetor. O problema, todavia, é que tão perspicaz era o tal homem que passo algum dele se ouvia, de modo que não eram os sons de sapatos que nos chamavam a atenção; era o silêncio angustiante dos amarelados corredores que geravam em nosso peito uma quase palpitação, um medo de sermos pegos, dele estar quem sabe até mesmo do nosso lado camuflado com sua capa ¾, observando com um pequeno sorriso ao canto do rosto a ineficácia de nossa vigia. Tentávamos esconder na biblioteca dentro dos livros menos usados e das edições mais antigas algumas fotos femininas que conseguíamos de uma forma ou outra. Assim, enquanto três ou quatro distraíam o bibliotecário com alguns questionamentos, cinco iam para as prateleiras de maneira que, caso estivesse o inspetor (ou quem sabe os inspetores) esgueirando-se pelas estantes, fosse tal número um dificultador de seu olhar quase que certeiro. Porém, nem sempre as estratégias que bolávamos arduamente resultavam em glória. Vezes, e não poucas, por mais que maquinássemos e gastássemos nós o tutano, resultado positivo não lográvamos, mas pelo contrário, acabávamos sendo surpreendidos com sua presença constante, ou ausência inexistente... era ele, ou eles, santo ou diabo, presença ou ausência, bruxo ou mágico, o nosso pesadelo, o olhar constante e perene da direção.. para nós, aflição eterna... Mesmo quando estávamos a executar as tarefas exigidas, lendo uma literatura pedida pelo professor, pegávamo-nos com o medo de sermos surpreendidos por ele, com medo de haver na obra alguma palavra, ou figura, ou quem sabe anotação irregular que pudesse a nós injustamente ser atribuída. Pior era ainda à noite quando apertado tinha que ir ao banheiro; os corredores tornavam-se ainda mais ameaçadores e profundos, com sua penumbra que favorecia ainda mais sua vantagem. Uma verdadeira neurose coletiva; um verdadeiro delírio carcerário que nos rodeava e deprimia; arma alguma tínhamos como defesa; mesmo no silêncio, poderia ele estar ali... chegávamos mesmo ao ponto de pararmos de respirar por alguns instantes para constatar uma suposta respiração dele; mas nem o silêncio como resposta trazia para nós uma verdadeira paz de espírito. Sua peculiar figura, com o sorriso acanhado no canto do rosto e sua amarela capa ¾.... A chegada das férias fez ressurgir em mim uma esperança quase que ingênua. Iria passar com os meus pais, na minha livre casa, com os meus quase livres livros... O portão principal se abriu; na verdade foi ele quem o abriu. Pensei naquele instante no significado daquele ato: era o inspetor que nos concedia a liberdade, era esta um concessão gratuita por ele dada; mas o que livremente se dá, arbitrariamente se tira?? O que queria ele dizer com aquele ato? Mas o que importava verdadeiramente naquele solene instante era a promessa de liberdade! Livre, feliz e em paz eu seria!!! Chegando em minha conhecida casa com suas janelas grandes, seus belos tapetes persas, meus conhecidos móveis, minha escrivaninha de mogno.... escrivaninha com meu tinteiro... tinteiro com o qual escrevia as cartas... cartas para Ana... quanto tempo não escrevia para ela... quanto tempo não a via... sentei-me então. Estar em casa era a melhor recompensa e alívio que já tinha sentido em toda a minha iniciante existência. Era lá o meu espaço, com as minhas especiarias e, sobretudo, sem o terror do vigia, o perene receio da presença daquela horripilante figura... Entretanto, um vento frio se esgueirou pela janela e cortinas; um arrepio subiu por minha coluna... algum incômodo me atingiu... parecia que não estava eu sozinho... levantei-me lentamente.. o coração batia forte.... olhei pela janela.... Na rua um homem virava a esquina... |