tão longe, tão perto, de Marcos Nunes
O que é o cinema senão o alargamento
de perspectivas filtradas no enquadramento de uma tela
que mira para além de si mesma? Há uma imagem no filme BARTON FINK, dos irmãos Coen, conhecidíssimos, cinema hollywoodiano, primeira realização GOSTO DE SANGUE, última O GRANDE LEBOWSKI (refiro-me, neste caso, ao último filme de Joel e Ethan projetado no Brasil) que exibe justamente o que descrevemos no parágrafo acima, especificamente uma banhista em um retrato acadêmico a mirar para além do horizonte do mar previsto em uma tela. Simples: não há realidade que possa ser abarcada esteticamente, sequer pelo realismo estético. Exceção à regra: CLOSE-UP, que ainda está sendo exibido no Brasil em poucas salas, a despeito de também estar disponível em vídeo. Sim, o filme é iraniano, o que poderia significar: "filme tecnicamente pobre e esteticamente preso à metáfora como forma e fórmula para driblar uma censura onipresente de um Estado teocrático". No entanto, porém, contudo, e etc. e tal, CLOSE-UP inverte a lógica da arte cinematográfica, partindo de uma estética documentarista não para filtrar a realidade, mas ultrapassá-la e atingi-la mais adiante, onde o pensamento se transforma em matéria e a interpretação forja regras que colocam o real no cerco das possibilidades do imaginário humano. Mas eis que, em mais um salto surpreendente, o imaginário transforma-se em real e o desejo toma corpo em uma realidade incontestável. A película toma corpo e manifesta seu desejo no simulacro desenvolvido pelo personagem principal, um homem comum que, face a oportunidade, passa a representar o papel de um cineasta famoso, pelo que é recebido de forma honrosa em uma casa de respeitáveis pequenos-burgueses, um tanto mal informados e confusos, além de decadentes (os dois filhos homens se formaram em engenharia, um trabalha gerenciando uma padaria e, o outro, desempregado, sonha com uma vida artística). Nos primeiros planos, somos jogados no interior de um veículo de passeio onde um motorista, não militar, mas que serviu em uma unidade disposta em uma cidade, apesar de residir em outra, que leva consigo dois militares que servem em uma unidade policial, sendo ambos oriundos de outra cidade que não aquela (Teerã?). Com eles, um jornalista que, à porta da delegacia, farejara a boa história do farsante e se propõe a levar os dois militares ao local do crime, ou seja, à casa da família onde estava o falso cineasta. Estamos, assim, sendo realisticamente transportados para um certo lugar onde um determinado homem representa o papel de outro, sendo o veículo dirigido por outro que não poderia ser aquilo que é e não deveria estar ali, levando consigo dois militares que também estão no lugar errado sendo financiados não pelo poder público, mas por um jornalista que sonha atingir um status equivalente a de uma Oriana Falacci, jornalista famosa pelas histórias que desenvolve partindo de episódios aparentemente banais. O desejo humano não é uma esfera íntima, ele transborda e se realiza no cotidiano e adquire a marca do real, mesmo que que compreendido de maneira errônea, equivocada e preconceituosa. Logo, o desejo se realiza não como ele mesmo, mas como algo que, recebendo a interferência externa, malogra em si mesmo se transformando em força como que autônoma, carregando outros desejos de outros personagens que o alimentam com novas circunstâncias e condicionantes. O falso cineasta, logo, se vê diante do repórter verdadeiro, mas falso, porque não é o que ele deseja ser, e é preso por militares que estão ali mas não deveriam estar, mas o que fazem ? Simples, representam os papéis dos policiais que deveriam lá estar, levados por um motorista que não possui as prerrogativas de prestar serviço como viatura policial, mas cumpre tal obrigação por força da iniciativa do repórter e pelo fato de, um dia, ter deixado sua cidade natal, para servir à milícia naquela cidade. Tudo converge ao falso cineasta, um homem oprimido pela miséria mas que, não despido de imaginação, simplesmente sonha ser aquilo que não é, estimulado pela obra de um cineasta que, para ele, nada mais faz que representar a realidade como ela é. E sendo o que não é, fazendo o que não faz, falando o que só poderia falar em razão de representar determinado papel que não o seu, é que atinge o grau que, para si, é o da excelência do real: o desejo que se manifesta com a superação das circunstâncias que o oprimem. Sem saber, o personagem do filme, real, absurdamente real, corporifica o sonho de todo ser humano, traduzido na palavra tornada maldita pelas ideologias políticas: a liberdade. O realismo dá voltas, é um organismo a revolver suas vísceras e revelar que a verdade que há em si é a verdade que há no real que só existe como desejo, como uma forma específica de ver e firmar posição tentando administrar as possibilidades do sonho com as interações resultantes do choque entre tal sonho e todos os demais que, mesmo que restritos pelas circunstâncias do aparentemente real (instituições políticas, econômicas, religiosas), reconstroem o mundo sob a regência de significantes e significados outros que não apenas aqueles que fundamentam os poderes constituídos. Realização funde-se com realidade, e o que estava, a princípio, tão longe, revela-se mais perto, porque exatamente na medida da representação que dá cabo do que não é real, fazendo com que ele assim se faça sob forma da representação, que não é nada mais nada menos que a imaginação em processo. Não apenas um filme extraordinário, CLOSE-UP impõe o cinema iraniano não como preso à fórmulas que possibilitam suas pequenas realizações, mas como o realismo estético muito mais além e capaz que o realismo estético ocidental, que não vai às últimas conseqüências de suas implicações ontológicas. Revertendo-o em escalas, em vértices e espirais cada vez mais problematizantes, CLOSE-UP nos aproxima, pela via técnica e pela impossibilidade de abordagem puramente técnica, da imagem, não como expressão inequívoca e esquemática, não como produto submetido de uma gramática, não como significante passível de interpretação unívocas, mas como uma constante variável que, na perspectiva daquele que a tem diante de si, faz dela o que dela pode fazer, de acordo com o que o seu mundo lhe faculta e com algo mais além, que persevera na esfera insondável do desejo e do sonho, que leva as pessoas à insubmissão e ao ato da criação pois, entre tantas coisas, pensamos, é exatamente disso que trata do filme CLOSE-UP, da insubmissão frente às restrições de uma realidade que, demonstrada esteticamente, é superada e alimenta a imaginação que sustenta o fantasma da liberdade para bem mais além do liberalismo burguês. |