manga com leite

 

n. 2 – seis propostas

E se alguém objetar que não vale a pena tanto esforço, citarei Cioran: "Enquanto era preparada a cicuta, Sócrates estava aprendendo uma ária com a flauta. 'Para que lhe servirá?', perguntaram-lhe. 'Para aprender esta ária antes de morrer.'"
Italo Calvino

"Estamos em 1985: quinze anos apenas nos separam do início de um novo milênio. Por ora não me parece que a aproximação dessa data suscite alguma emoção particular. Em todo caso, não estou aqui para falar de futurologia, mas de literatura. O milênio que está para findar-se viu o surgimento e a expansão das línguas ocidentais modernas e as literaturas que exploraram suas possibilidades expressivas, cognoscitivas e imaginativas. Foi também o milênio do livro, na medida em que viu o objeto-livro tomar a forma que nos é familiar. O sinal talvez de que o milênio esteja para findar-se é a freqüência com que nos interrogamos sobre o destino da literatura e do livro na era tecnológica dita pós-industrial. Não me sinto tentado a aventurar-me nesse tipo de previsões. Minha confiança no futuro da literatura consiste em saber que há coisas que só a literatura com seus meios específicos nos pode dar. Quero pois dedicar estas conferências a alguns valores ou qualidades ou especificidades da literatura que me são particularmente caros, buscando situá-los na perspectiva do novo milênio."

Seriam estas as palavras de abertura de Italo Calvino nas Charles Eliot Norton Poetry Lectures, se não fosse sua morte. Felizmente, Calvino deixou escritas cincos destas conferências, que serão o tema das próximas colunas. Por enquanto, gostaria de tratar desta abertura.

Já chegamos ao novo milênio e me parece ser justificável o fato de não ter havido nenhuma emoção particular em relação a isto, afinal apenas mais um ano se passou e continuamos com as mesmas questões, os mesmos problemas e, espero, com os mesmos sonhos. Mas vemos sim, e cada vez mais, o objeto livro sob interrogatório, porém, infelizmente, vemos muito pouco refletir sobre a literatura. Pouco importa se a internet irá acabar com o livro impresso, se irá mudar nossos hábitos de leitura ou coisa do tipo, se nos falta, desesperadamente, o que ler. É por isso que quero compartilhar da confiança de Calvino e discutir "alguns valores literários que mereciam ser preservados no curso do próximo milênio", ou seja, aquilo que a literatura nos dá, apenas ela, e que devemos conservar, até mesmo transcender.

Italo Calvino coloca seis valores nesta categoria, apesar de ter expresso a possibilidade de aumentar este número, que são: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência, do qual não temos o manuscrito. Creio que todos estes, e talvez mais alguns, são valores importantes para nossas discussões sobre a "literatura virtual" e por isto irei me aprofundar em cada um deles nas próximas colunas.

Daniel Gomes
Editor de Bizarrona