faça você mesmo, de marcos nunes

  Nunca conhecera outro mundo. Não se lembrava de ter nascido, nem de ter conhecido sua mãe. Sua primeira lembrança deste mundo data de vinte anos atrás, quando procurava comida e já sabia que, ao mesmo tempo, tinha de se esconder de outros que faziam a mesma coisa. De lá para cá muita coisa mudou, os bens já escassos naquela época se esgotaram, e a saída foi o desenvolvimento de técnicas para captação de recursos, quer dizer, começar tudo de novo, reinventando processos para obtenção de água, plantio de frutas, verduras e legumes, edificação de estruturas que servissem de moradia, feitura de ferramentas, objetos de uso doméstico, e tudo o mais e sobretudo o mais complicado: como fazer fogo ?

Mais complicado ? Não, nada mais difícil, na verdade, de contatar gente. Ficaram todos arredios, assustados, poucos dispostos a colaborar com o outro para conseguir realizar tarefas que beneficiassem a todos. Por que fariam isso ? Tudo não começara justamente para fugir da associação ? Os poucos que sobreviveram ao século vinte e um vagavam como loucos pelas ruínas, gritando palavras de ordem antigas, e sobretudo a fórmula que parecera genial, a última, grande e fatal solução: "faça você mesmo".

O mundo perfeito, o que seria um mundo perfeito ? Fácil responder isso no século vinte e um: um mundo centrado nas necessidades de cada indivíduo. Um mundo para o indivíduo, onde cada vez mais ele pudesse resolver, sozinho, seus próprios problemas, sem tem que contar com a colaboração de ninguém para nada. Self-service, era a fórmula, auto-atendimento. Começaram com esquemas simples, como pegar a própria comida, utilizar equipamentos eletrônicos de uso estritamente pessoal, realizar transações bancárias sem sair de casa, comprar tudo sem ter de levantar-se da cadeira em frente ao computador. Logo, cada um estava fazendo as próprias roupas, criando seus próprios animais de abate, cuidando de sua própria horta. É claro, somente aqueles que tinham oportunidade de fazê-lo, aqueles que tinham previamente adquirido propriedades que lhes facultassem o isolamento completo do fazer coletivo; a maioria, sem fontes de renda e de auto-realização, partiram para o saque, para a desapropriação. Contudo, sem qualquer programa abrangente, a batalha se travava como tudo se resumisse em outra fórmula: o mais forte e mais apto sobrevive.

O "faça você mesmo", última evolução, paradoxalmente provocou a involução; em questão de poucos anos, retroagiu toda a humanidade ao estado tribal, ou ainda pior que isso, a um estado em que sequer as tribos sem compunham para defender a sobrevivência da espécie. Assim, poucos como ele vagavam pelo planeta arruinado; uns milhares à sua volta, uns poucos milhões pelo planeta inteiro.

Faltando contato humano, a comunicação restringiu-se a poucas palavras, que serviam basicamente para ameaçar e defender o pouco obtido por cada um. Era preciso desenvolver também um novo vocabulário, mas para isso era preciso o contato com outro ser humano, a conversa, o acerto, a vontade mútua.

Faça você mesmo, ele pensava com essas poucas palavras, tentando fugir da fórmula básica. Faça você mesmo, fazer o que, o que posso fazer ? Posso tentar falar com alguém, mas como, o que falar, falar "faça você mesmo"? "Seja feliz, você só precisa de você" ? Lugares comuns de quando havia uma máquina publicitária para imprimir em cada um a necessidade de um egoísmo superdesenvolvido ?

Como se aproximar de alguém, se quando fazia-se isso era para estuprar o outro, mantidos que estavam os desejos sexuais ? Toda vez que se aproximava de outra pessoa, o medo interpunha-se, a idéia: quem forçará quem ?

O dia acabara, estava na hora de recolher-se à toca, na verdade uma construção semidestruída, entre tantas outras na mesma rua completamente esburacada, onde moviam-se apressadamente uns tantos viventes miseráveis. Aquela toca tinha sido, na verdade, uma grande casa, à frente de um grande terreno, com jardim, piscina, salão de festas, garagem e quadra de esportes. Tudo que sobrara foram três cômodos intactos, utilizados antes como cozinha, sala de estar e sala de visitas; todos os quartos foram postos abaixo, como as garagens e o salão de festas, enquanto a quadra de esportes fora transformada há muito em uma horta.

Espalhados pelo chão de um dos cômodos, livros eram às vezes utilizados para atiçar fogo. Centenas reduziram-se em poucos anos a não mais que trinta, havendo a necessidade de procurar por mais em outros prédios. Sem qualquer razão, resolvera não se desfazer desses trinta, e de vez em quando folheava-os a esmo, sem saber o que continham. Não sabia ler nem escrever, e aqueles símbolos eram tão legíveis para ele como as estrelas no céu.

No entanto, era capaz de emitir alguns fonemas, e esses fonemas formavam palavras, e essas palavras eram inteligíveis tanto para si quanto para muitos outros. Faça você mesmo, pensava, e assim foi que recolheu alguns desses livros e se dispôs a obter, deles, alguns elementos que possibilitassem a criação de um novo vocabulário, palavras que não servissem de ameaça ou para expressar o medo, mas palavras que servissem para dizer ao outro: venha, façamos juntos, sejamos melhores, vamos iniciar um tempo de cooperação, de entendimento, de reconhecimento de que as necessidades são mútuas, e não únicas ou satisfeitas apenas na solidão.

Teve às mãos um livro repleto de preceitos, de velhos costumes, de uma velha ordem. Conseguiu decifrar muitos trechos, mas logo percebeu que era inutilizável. Continha verdades demais, palavras de ordem demais, um tipo de "faça você mesmo" oculto no "faça pelo outro", que invariavelmente era fazer por alguém para tirar vantagem do que era feito. Sem saber, não queria as velhas utopias; sem saber, vivia o mesmo caminho das velhas utopias; sem entender, trilhava o caminho para o outro com dúvidas equivalentes àquelas que levaram ao ocaso o que havia sido uma civilização.

Mas havia tempo e espaço à frente, como também muitos que, como ele, olhavam para o outro e pensavam que mesmo nos tempos ruins festas comemoravam a graça da união. Façamos todos nós, ele escreveu, de maneira vacilante, com carvão, no muro ainda branco que cercava o que fora um estádio de futebol. Ficou durante algum tempo olhando para o muro, pensando se estavam corretos os caracteres, e estavam, porque havia copiado de um livro, com muita atenção. Umas tantas outras criaturas passavam e também olhavam para aquilo, e se lembravam. Ele repetiu para si mesmo: tempo recuperado, tempo redescoberto. Como lera em um de seus trinta volumes, acerca de um breve instante, aromas de chá e biscoitos, e repentinamente as lembranças fugazes tornavam-se como que palpáveis, concretas e eternamente refeitas em todos os instantes, naquele momento. Naquele momento.