o ruminante, de gustavo acrani

 

Nada deveria ser do jeito que é!

CAPÍTULO I

 

Naquela manhã acordei como se tivesse bebido um galão de pinga na noite anterior. Estava ainda meio tonto e com o estômago enjoado, dor de cabeça e toda aquela coisa típica de uma ressaca, afinal, na noite anterior eu tinha ido no...eu tinha ido...

Não me lembrava onde estive na noite anterior! A última coisa que eu me lembro é de ter passado na casa do César e...sei que fomos para um bar, só isso que eu me lembro, não sei nem como havia chegado em casa. Acordei com os olhos cheios de remela e a cama meio úmida. O lençol da cama estava muito molhado e, achando muito estranho, acendi a luz para ver o que havia acontecido. Levei o maior susto quando percebi que a cama estava cheia de sangue, encharcada com um sangue que já estava quase preto. Mas de onde teria vindo aquele sangue todo? Conferi se tinha algum corte em meu corpo, e percebi que o sangue só poderia ter saído de minha mão esquerda, que estava enrolada em um pano todo sujo de sangue.

Com a respiração ofegante e morrendo de medo retirei o pano lentamente, achei estranho ter saído tanto sangue, pois eu não estava sentindo nenhuma dor. Na realidade eu não estava nem sentindo minha mão. Qual não foi minha surpresa quando finalmente retirei todo o pano e percebi que meu dedo mindinho havia sido arrancado. No lugar havia ficado um pequeno toco de sangue pisado e pedaços de pele pendurados. Meu coração disparou de medo. Corri para a cozinha, abri a geladeira e peguei todo o gelo, embrulhei num pano e coloquei no toco do dedo arrancado. Começou a doer um pouco. Abri a gaveta do armário da dispensa e peguei dois analgésicos. Tomei com um gole de água da torneira. Como será que aquilo teria acontecido? O que será que teria acontecido na noite anterior?

Eu precisava fazer um curativo mais decente. Voltei para o quarto, mas quando passei pela sala de televisão vi uma coisa que gelou meu coração na hora. Jogada no tapete da sala estava uma menina de uns 16 anos nua e aparentemente desmaiada. Corri em direção da menina cambaleando, pois ainda estava meio tonto. A menina estava gelada, com o lábio bem roxo e os olhos bem abertos. Estava morta. O que teria acontecido? Quem teria feito aquilo? Não havia nenhuma marca no corpo da menina que indicasse que ela tivesse recebido golpes de faca ou tiros.

Sentei no sofá desesperado, tentando puxar da memória qualquer coisa que me fizesse entender o que tinha acontecido. Por que eu estava sem meu dedo e o que aquela menina que eu nunca tinha visto na minha vida estava fazendo morta no chão da minha sala! Forcei minha cabeça ao máximo, e num momento de reflexão percebi um barulho estranho na casa. O chuveiro estava ligado.

Será que eu tinha esquecido ele ligado a noite toda? Corri para o banheiro para fechar a torneira, mas assustei ao ver a porta meio aberta e umas roupas de mulher jogadas no chão. Olhei de esgueio pela fresta da porta e vi um vulto pela cortina do chuveiro. Parecia ser uma mulher. Abri a porta bruscamente, abri a cortina do chuveiro e gritei:

O que você está fazendo aqui? O que está acontecendo?

A pessoa estava de costas, ensaboando os longos cabelos loiros. Ao ouvir minha voz ela se virou. Levei meu terceiro susto da manhã, ao ver que na realidade aquela suposta mulher tinha um pinto enorme no meio das pernas! Era um baita traveco. O que um travesti estaria fazendo tomando banho no meu chuveiro? Será que eu dormi com ele na noite anterior? Será que...não quero nem pensar.

Peguei o traveco pelo braço e joguei-o com força em cima da privada. Ele caiu de pernas abertas e com o cabelo ainda ensaboado gritou:

Ai, cara! Assim você me machuca!

Segurei ele pelo pescoço e perguntei:

Escuta aqui, eu não acordei muito bem hoje. Não estou entendendo nada que está acontecendo e não me lembro de nada que aconteceu na noite anterior. O que você está fazendo aqui na minha casa?

O travesti agarrou meu braço torcendo-o, se levantou e me deu uma chave de pescoço. Me segurando por trás e com a espuma de seu cabelo escorrendo no meu ombro ele falou.

Escuta aqui, cara. Eu não sei de nada, e também tô pouco me lixando pra você. Você me falou que se eu viesse aqui com você e ficasse quietinha você ia me dar 400 paus. Eu fiz o que você pediu, não neguei nada e não perguntei por nada, também. Agora eu quero o meu dinheiro, cara.

Mas que dinheiro, eu não sei de nada...

Com o outro braço livre dei uma cotovelada no estômago da bixinha, que largou meu pescoço e caiu no chão. Tentei sair do banheiro, mas o travesti agarrou minha perna e ainda caído no chão ele conseguiu tirar um revólver de sua bolsa e apontou-o para mim.

Se você se mexer eu atiro.

O travesti se levantou, ainda apontando a arma para mim, enrolou o cabelo numa toalha e falou:

Agora você vai lá no quarto pegar meu dinheiro e se tentar qualquer coisa eu te mato.

Mas você não poderia ao menos me contar o que aconteceu? Por que eu tô sem meu dedo? Quem é aquela menina?

Cala a boca e vai pegar meu dinheiro.

O travesti me empurrou para o quarto ainda apontando a arma para minha cabeça. Abri a gaveta do criado mudo e peguei quatro notas de cem e entreguei pro traveco.

Tá aqui seu dinheiro, sua puta!

O travesti pegou o dinheiro, me deu um soco na cara e correu para o banheiro. Se trocou e saiu. Me levantei e corri para a porta de casa, com a esperança de ainda encontrá-lo. Ele estava saindo pelo portão. Gritei:

Ô, seu viado! Só me fala se você me enrabou ou não, seu desgraçado!

O travesti virou pra trás e gritou:

Vai se fuder!

E me jogou uma pedra no ombro.

Ainda pensando se eu havia ou não perdido minha virgindade anal, voltei para dentro de casa e comecei a enrolar um pano limpo no meu machucado. Me lembrei de ligar para o César, ele deveria saber alguma coisa sobre a noite anterior, poderia me explicar...afinal de contas lembro de ter passado em sua casa...

Alô, por favor, o César está? – quem atendeu foi a irmã dele.

Quem está falando? O César não dormiu em casa esta noite. Ele saiu ontem lá pelas 10 horas e ainda não voltou. Deve ter ficado na casa de alguma namorada.

Nem respondi nada. Desliguei na cara dela assustado e aborrecido. A única pessoa que poderia me falar o que aconteceu naquela noite estava desaparecida. O que teria acontecido com o César? Tinha que dar um jeito na menina morta. Ela já ia começar a feder e ninguém poderia desconfiar de nada.

Embrulhei a menina num lençol junto com o meu lençol sujo e coloquei-a no porta malas do meu carro. Entrei em casa e fui tomar um banho. Era domingo, e o calor estava de rachar. Depois que terminei o banho, deitei no sofá da sala e comecei a forçar a memória de novo para tentar entender tudo aquilo, quando de repente tocou o telefone. Levei um susto gigantesco. Hesitei. Quem poderia ser? O que eu iria falar? O telefone tocou umas seis vezes. Tomei coragem e atendi.

Alô? – do outro lado da linha ninguém respondeu. – Alô? Quem está falando? Responde! – ninguém falou nada...silêncio total.

Irritado e começando a sentir aquele frio na barriga que começou a se tornar familiar nessa manhã, desliguei o telefone e deitei no sofá. Assim que coloquei a cabeça no encosto, o telefone tocou de novo. Esperei um pouco, levantei, fechei a janela da sala que estava aberta e me apavorei! Será que alguém de fora teria visto o que estava acontecendo na minha casa? Afinal de contas a janela ficou aberta o tempo todo, e com a menina morta jogada no chão...Comecei a ficar apavorado, e o telefone gritando não me ajudava nada a melhorar meus ânimos. Atendi o telefone de novo:

Alô? – continuavam sem falar nada, dava para ouvir somente uma respiração fraca – Alô? Quem está falando?

Cui...cui...cuida...socorro...- a voz do outro lado da linha parecia muito fraca e sofrida. Parecia a voz de algum homem que estivesse morrendo, ou sofrendo muita dor. – Me ajuda...

Mas quem está falando? Qual é o seu problema?

P..p...po...por fav...me ajud. – caiu a ligação.

Se a minha manhã já havia começado ruim, então imaginem agora como eu estava me sentindo. Não reconheci a voz como sendo de alguém que eu conhecesse, só sei que essa pessoa deveria estar passando maus momentos...E por que ele teria ligado para mim? Resolvi sair de casa, pois se eu ficasse lá dentro acho que iria começar a enlouquecer. E afinal de contas, teria que dar um sumiço no corpo da menina.

Enquanto isso, em outra parte da cidade, quatro homens encapuzados vestidos de preto invadiam uma casa e matavam um casal de velhos de forma violenta e sanguinária enquanto eles faziam contas para ver se ia dar pra comprar um presente pro neto no dia de seu aniversário, que era amanhã.

 

CAPÍTULO II

 

Peguei o carro e fui direto para a casa do César, talvez uma hora dessas ele já teria voltado. A irmã dele estava no portão.

Oi, Carla. E o César, voltou?

Não veio ainda não. Já estou começando a ficar preocupada, afinal de contas ele sempre liga para me dizer onde está. Você não quer entrar? Estou terminando de fazer o almoço, e provavelmente ele deve chegar daqui a pouco, pois ele sempre almoça em casa...

Talvez valesse a pena esperar pelo César na casa dele. Ele vivia sozinho com a irmã, que era viúva e cozinhava muito bem. Carla, a irmã de César, era mais velha que ele, tinha um rosto muito bonito e o corpo meio judiado por umas gorduras a mais que insistiam em se proliferar por sua barriga e pernas e que relutavam em sair, por mais que Carla caminhasse 1 hora toda manhã. Carla colecionava imagens de santos, afinal, quem não trabalha precisa manter a mente ocupada de alguma maneira...Fazia já algum tempo que eu não entrava na casa de César. A casa estava meio escura, iluminada apenas pela luz do sol que entrava pelas janelas, e em todos os lugares podia se ver estátuas de vários tamanhos diferentes e formatos de tudo quanto é santo que você possa imaginar.

Estou fazendo bife acebolado. Gosta? Você não quer ficar para o almoço?

Gosto muito – respondi educadamente – e muito obrigado por me convidar para o almoço.

Sentamos à mesa e ela me serviu com um prato bem generoso de arroz e bife com cebola. Bebemos suco de uva. Conversamos um pouco sobre os meus livros, e falei para ela que fazia já quatro anos que eu não conseguia escrever nada. Nem um conto sequer. Era uma espécie de bloqueio. Ela sugeriu um psicólogo, e todo um papo desestimulante foi jogado fora. Em nenhum momento mencionei sobre o que tinha ocorrido na manhã, nem sobre o telefonema estranho. Ela perguntou o que havia acontecido com minha mão, pois o curativo estava cheio de sangue. Falei que havia me machucado com a faca da cozinha. Ela deu uma risadinha e me chamou de descuidado.

Me ofereceu pudim e perguntou se sabia o que teria acontecido com César. Falei que na noite anterior tínhamos ido a um bar e ele tinha me deixado sozinho na mesa porque ia sair com uma morena. Menti.

Muito obrigado pelo almoço, Carla. Tenho que ir agora. Se o César aparecer, pede para ele me ligar.

Por favor, fique mais um pouco, eu faço questão. Vou lá em cima trocar de roupa e já desço.

Limpou a mão num guardanapo e nem esperou eu responder. Subiu as escadas correndo e ligou o chuveiro. Fiquei sozinho com os santos. Aqueles santos todos coloridos grudados nas paredes e móveis da casa começaram a me infernizar. Nunca gostei de imagens de santos, elas sempre me apavoravam. O cheiro de sabonete que vinha do chuveiro descendo pela escada era muito agradável. Subi a escada pensando em Carla, ela era uma mulher bonita, e sozinha. A porta do banheiro estava meio aberta. Inventei uma desculpa para falar com ela:

Carla, com licença, eu vou lavar os pratos, você se importa?

Pode deixar, não faça isso não. Daqui a pouco eu estou saindo. Fique à vontade.

Meu coração começou a bater mais forte, sem nem perceber eu já estava dentro do banheiro, o vestido azul manchado de gordura estava jogado no chão, e pendurada num gancho na parede estava a calcinha limpa que ela iria colocar depois que saísse do banho. O banheiro estava tomado por uma fumaça branca que vinha do chuveiro quente. Carla percebeu que eu estava lá dentro, mas não falou nada. Fingiu que não havia percebido. Tirei minha roupa lentamente tomando muito cuidado com o curativo em minha mão e abri a cortina do chuveiro. Carla se virou, me deu um abraço bem forte e me lambeu a boca. Ela estava toda ensaboada, lisa e cheirosa, e muito linda. Ela não falou nada. Transamos ali de pé no chuveiro, com a água quente caindo na minha mão machucada causando uma grande dor. Senti ainda mais prazer. Depois ela me lavou e começou a tirar o curativo da minha mão.

Temos que cuidar disso.

Puxei minha mão e disse:

Carla, pode deixar. Foi um machucadinho de nada. Não tem nenhum problema. Não precisa se preocupar.

Mas pode infeccionar. O curativo está todo molhado...

Saí do chuveiro e me enrolei numa toalha. Saí do banheiro e desci a escada carregando minhas roupas no braço. Na cozinha eu coloquei minha roupa, tirei o curativo molhado e enrolei minha mão num guardanapo que estava em cima da mesa. Tomei um resto de suco de uva e Carla apareceu embrulhada numa toalha colorida.

Você está mais linda do que antes, Carla.

Ela olhou minha mão machucada mais uma vez e saí de sua casa. Liguei o carro e fui para uma farmácia. Comprei as tranqueiras pra fazer curativo, tomei uns analgésicos e sentei no carro. Logo, logo eu estaria bom de novo. Era só esperar.

Enquanto isso, do outro lado da cidade, quatro homens encapuzados vestidos de preto invadiam uma casa e matavam violentamente um casal que estava tomando banho juntos, sem saber que no criado mudo o namorado, que fora esquartejado, guardava o anel de noivado que tanto prometera.

 

CAPÍTULO III

 

Tinha que me livrar do corpo da menina morta que estava no porta malas. Passei numa loja de ferragens e comprei uma pá. Dirigi por quase uma hora até chegar numa mata bem longe da cidade. Longe do pensamento das pessoas. Pela primeira vez em quatro anos me senti um pouco humano. Tirei a menina do porta malas. Ela já estava com um cheiro meio desagradável, roxa e gelada. Coloquei-a no chão e comecei a cavar o buraco.

Fazia já quatro anos que eu não escrevia nada. Os jornais já nem se lembravam de mim. A última vez que recebi uma proposta foi no ano passado, do jornal local. Escrever um conto de Natal. Não consegui. Desde meu último livro, "A Mulher Ilustrada", que eu não consigo pensar em nada. Sento em frente ao computador e parece que minha mente se esvazia...Mas naquele momento senti uma onda de idéias se aproximando. Ver aquela menina morta jogada no chão tinha que significar alguma coisa. O que teria acontecido com ela? Será que eu teria matado a pobre coitada? Quem seria essa menina? Ela tinha os cabelos loiros e compridos, um rosto de menininha lindo, e um corpo maravilhoso. Apesar da pouca idade, tinha já um corpo de mulher, os peitos fartos e a cintura bem feita.

O buraco já estava pronto. Passei a tarde toda cavando, não pensava que fosse demorar tanto. Me abaixei para pegar a menina e fechei seus olhos verdes. Ela estava linda. Senti culpa. Me deu vontade de trocar de lugar com ela. Toquei suas mãos. Estava gelada. Pensei comigo mesmo: eu nunca havia pegado nos seios de uma defunta. Toquei levemente os peitos da menina morta e me senti bem. Estava um pouco gelado e duro, mas ainda tinha a consistência de um seio vivo. Passei a língua levemente no bico duro dos seios, com medo que ela acordasse e ficasse brava comigo. Acariciei seus seios por alguns minutos, até perceber que estava gostando demais daquilo. Olhei para seu corpo. A menina era realmente muito linda. Beijei sua testa e joguei-a no buraco. Cobri-a com a terra e coloquei umas folhas por cima para disfarçar. Já estava começando a anoitecer. E eu estava com fome.

Voltei para casa. Quando ia entrar no banho o telefone tocou. Deve ser o César.

Alô? – do outro lado da linha a voz fraca e dolorida de novo.

Me ajude....você precisa vir...eu estou...

Quem está falando? Como eu posso te ajudar?

Eu sou....socorro...você tem....

E desligou o telefone. Agora a coisa estava começando a me irritar. Pensei em ir de novo no bar que fomos na noite anterior e descobrir alguma coisa. Fui tomar banho, refiz o curativo e saí. O bar não ficava muito longe de casa. Dava para ir a pé. O bar era pequeno e fechado, parecido com os PUBS londrinos. Entrei e pedi uma cerveja no balcão. O barman, ao me ver, saiu por uma portinha no fundo do balcão e sumiu. Dez minutos depois ele voltou com alguém que parecia ser o dono do bar e com dois seguranças bem grandes.

Cara, nós já conversamos ontem, e você prometeu numa boa não voltar mais aqui. – o dono do bar falou, segurando meu braço.

O que? Eu não estou entendendo. – respondi, sem saber sobre o que o cara estava falando.

Ontem à noite, depois da briga, lembra?

Meu amigo, eu juro pra você que não me lembro de nada. Inclusive é por isso que estou aqui. Se você puder me ajudar a lembrar o que aconteceu aqui ontem à noite...

Veja o seu dedo. Foi aquele cara ali. – apontou para um gordão sentado com uma mulher no canto do bar – Ele está aqui de novo e eu não quero confusão. Se você não for embora nós vamos chamar a polícia, cara!

Quem é aquele cara? Como ele fez isso comigo? – apontei para o curativo em minha mão.

Você deve estar de gozação comigo, né, camarada? – o dono do bar foi me levando para a saída, junto com os dois seguranças. – Por favor, não volte mais aqui, e avise aquele seu amigo também, caso ele também tenha esquecido.

O César? Você sabe do César? O que aconteceu com ele?

Tenha uma boa noite. – e fechou a porta do bar na minha cara.

Pelo menos eu descobri quem tinha arrancado meu dedo. Era só esperar na frente do bar o gordão sair e descobrir o motivo. Sentei na calçado do outro lado da rua, em frente ao bar. Meia hora depois saiu do bar um sujeito magrelo de chapéu panamá carregando uma valise prateada, igual ao do 007. Esse sujeito atravessou a rua e veio em minha direção. Sentou-se do meu lado e falou:

Jaguar.

O quê? Me desculpe, eu não entendi.

Jaguar.

Jaguar? Não, meu nome é... – O cara magrelo colocou a mão na minha boca e tirou um revólver de dentro do paletó e apontou-o na minha barriga.

Se você disser você morre. Aqui pode ter gente olhando.

Tirou a mão da minha boca, guardou o revólver e perguntou:

Por que você demorou?

Escuta aqui, cara. Você deve estar me confundindo com alguém. Não sei nada sobre esse Jaguar, e nunca te vi na minha vida. Eu estou esperando um amigo, agora por favor...

Você quer ajuda. Eu sei. Eu li seus livros.

Um fã? Será que era somente um fã? Não poderia ser...

O que você quer de mim? O que é esse Jaguar?

Onde está a menina? E a mala?

Menina? Mala?

Será que ele estava falando da menina morta? Será que esse cara conhecia ela? Que mala era essa? Tentei disfarçar.

Cara, eu só quero saber o que aconteceu com meu dedo. E agora eu sei que foi aquele gordão. Se você puder me deixar resolver o meu problema eu prometo que nunca mais te encho o saco.

O seu dedo? É melhor você não arriscar falar com ele de novo. Você viu o que aconteceu com seu amigo...

O César? O que aconteceu com ele?

Você não lembra? Depois que o gordão arrancou seu dedo ele foi lá tirar satisfação. Foi o maior quebra pau, ele apanhou muito. Você tentou ajudar, mas estava muito bêbado e machucado. Só sei que a briga terminou lá no beco da rua nove, é o que me falaram.

Rua nove? E o que aconteceu com ele?

Não sei...deve estar em casa...Mas se você pensa em conversar com esse cara, o Getúlio, eu acho melhor você mudar de idéia.

O Gordão chama Getúlio?

Não aguentava mais de curiosidade. Com certeza esse magrelo sabia quem era a menina morta e sabia o que ela estaria fazendo lá em casa. Mas fiquei com medo de perguntar. Talvez se ele soubesse que ela estava morta, as coisas poderiam piorar.

E a mala? Vejo que você não trouxe... – o magrelo falou olhando ao redor.

Que mala, cara? Eu não sei de mala nenhuma.

Ontem à noite...Você saiu do bar com aquela menina, a Violeta. Ela carregava uma malinha preta. Essa malinha é minha. O nosso trato era você trazer a mala hoje e eu te dava o dinheiro. Jaguar seria o nosso código. Idéia do seu amigo.

Cara, eu não me lembro de nada disso. Não me lembro dessa menina e nunca vi essa mala preta. Eu tenho que ir no beco nove agora, tenho que ver se encontro o César.

Me levantei. O cara me segurou pelo braço:

Se você pensa que vai me enganar, cara...é bom pensar duas vezes. Ou você quer perder mais um dedo?

Dei um chute bem forte no estômago dele e saí correndo. Quando estava do outro lado da rua, olhei para trás e vi que o magrelo estava caído no chão. Voltei e dei um chute em cheio na cabeça do coitado. Ele apagou. Peguei a maleta que ele carregava e saí correndo em direção ao beco nove.

Aquele cara havia me esclarecido algumas coisas. Parece que na noite anterior eu participei de uma transação de malas e de uma briga, mas onde entrava o travesti nessa história? O que ele estaria fazendo lá em casa?

Ao chegar no beco nove não encontrei nada. As latas de lixo cheias de tranqueiras e uma cabine de telefone pública com um bêbado dormindo dentro. Pensei em ir embora, mas o bêbado estava gemendo. Me aproximei da cabine e vi muito sangue saindo da cabine telefônica, e jogado no chão, segurando o telefone na mão estava o meu amigo César.

César! O que aconteceu? Eu vou te tirar daqui.

Ele olhou para mim e deu um sorriso. Estava muito machucado, sangrando. Com o rosto cheio de cortes e um buraco de bala no ombro e nas pernas. Ele estendeu a mão direita para mim. Segurava uma caixa de cigarro toda cheia de sangue.

Eu...tentei...tentei...te ligar...você não...você não...entendeu...

Então era ele. Era ele que estava me ligando pedindo ajuda. Mas a voz estava irreconhecível. Com a outra mão, César segurava um torniquete feito com seu paletó que estava amarrando sua perna esquerda. Olhou para mim pela última vez e falou:

Desculpe...cuida da minha irmã.

Soltou o torniquete e começou a jorrar uma quantidade enorme de sangue preto de sua perna. Pulei para trás. César morreu assim, na minha frente. Não pude fazer nada. Peguei o telefone e liguei para uma ambulância. Fui embora. No caminho me lembrei da caixa suja de cigarro que ele havia me dado. Abri a caixa e levei um grande susto. Dentro da caixa amassada e suja de sangue estava o meu dedo todo ensangüentado, sujo e fedido, sozinho...

Enquanto isso, no outro lado da cidade, os quatro homens encapuzados vestidos de preto espancavam e matavam uma menina de quatorze anos que dormia feliz em sua cama pensando se deveria ou não transar com o Pedro, seu coleguinha de classe.

 

CAPÍTULO IV

 

Agora é que a situação estava ficando fora de controle mesmo. Meu melhor amigo havia morrido, por causa de uma briga começada por mim. Como eu iria avisar a Carla, sua irmã? Voltei para casa cansado e triste, abri a porta e dentro de casa escutei o som de vozes vindo da cozinha. Parecia uma pequena festa, e com certeza essa pequena festa estava acontecendo dentro da minha casa. Assustado, corri para a cozinha e me espantei ao ver quatro pessoas, três homens e uma mulher, sentados à minha mesa jogando baralho e comendo e bebendo e rindo e conversando.

Agora já não agüentava mais! Era muita esquisitice para um dia só. Quando entrei na cozinha eles pararam de falar e ficaram olhando para mim, esperando que eu falasse alguma coisa. Abri a geladeira, peguei uma cerveja e fui para meu quarto procurar pela mala da garota morta. Resolvi não interferir no jogo daquelas pessoas, pensei que nada poderia piorar se eu deixasse-as jogando lá sossegadas. Escondi a mala de dinheiro que eu estava carregando debaixo da cama e procurei pela mala da menina, que estava em algum lugar da casa. Procurei dentro do armário, nas gavetas, em todos os cantos do meu quarto e não encontrei nada! Procurei na sala, na cozinha, e não encontrei nada. Comecei a ficar nervoso. O que teria nessa mala? Talvez o cara poderia vir atrás de mim procurando por ela...estava começando a ficar com medo. Precisava tomar alguma droga.

Fui até a cozinha ver se o pessoal do baralho tinha algum bagulho pra me dar. Um cara bem gordo que estava bebendo muita água colocou suas cartas na mesa e disse:

Vai perguntar para as gêmeas lá no banheiro.

Gêmeas? Que gêmeas? Quer dizer que agora tinham gêmeas no meu banheiro? Isso era demais! Abri a porta do banheiro devagar para não assustar quem estivesse lá dentro, e vi pela fresta da porta duas meninas nuas deitadas no chão se beijando e acariciando seus corpos delicadamente, uma passando a língua nos seios da outra, o que me deixou excitado. Quando abri a porta totalmente elas pararam o que estavam fazendo e ficaram olhando para mim. Elas eram irmãs gêmeas, idênticas.

Vocês têm drogas? – perguntei.

Uma delas se levantou meio cambaleante, como quem estivesse meio chapada e respondeu com uma voz trôpega:

Estávamos esperando um homem aparecer, mesmo...

Tirou uma seringa de dentro da pia e injetou o conteúdo no meu braço. Fiquei com o corpo mole, relaxado por alguns instantes, sentei no vaso sanitário e as paredes do banheiro começaram a diminuir de tamanho e o chão ficou bem colorido. Vi minha mãe entrar pela porta do banheiro. Ela estava linda, com um vestido vermelho e um colar de pérolas negras brilhante. Ela entrou no banheiro, lavou o rosto com a água da pia e falou:

Você é uma vergonha, meu filho! – e me deu um tapa no rosto.

Caí no chão no colo das gêmeas. Levantei cambaleante e pulei em cima de minha mãe. Caímos juntos no chão. Comecei a dar soco em seu rosto, enquanto ela gritava:

Você não consegue nem escrever! Arrume um emprego decente! Seu verme! Nem pra me enterrar você prestou!

As gêmeas pularam em cima de mim e me separaram de minha mãe. Ela se levantou, arrumou o vestido e falou assim com uma voz de robô:

Não desperdice o catarro jogado no canto da pia, meu filho! Sua mãe ainda pensa em coçar a piriquita. Pena que o pó do chão seja tão áspero. Melhor seria ter nascido libélula!

Dizendo isso ela desapareceu numa nuvem de fumaça e eu fiquei sozinha com as gêmeas, que estavam deitadas no chão em carícias safadas e profundas! Desmaiei.

Acordei no dia seguinte meio zonzo. Estava dormindo no chão gelado do banheiro. Levantei a cabeça e olhei ao redor. O chão do banheiro estava meio molhado, e as duas gêmeas estavam ainda deitadas no canto perto da porta, dormindo nuas uma no colo da outra. Meu estômago estava doendo e a minha mão machucada doía ainda mais. Precisava tomar alguma coisa. Levantei do chão cambaleante, fui até à cozinha e tomei três analgésicos. O pessoal que estava jogando baralho não estava mais lá, tinham ido embora e deixado a mesa da cozinha uma bagunça inacreditável. Copos, pratos, garrafas vazias, seringas e bitucas de cigarro por todo canto da mesa e do chão. A geladeira estava vazia, apenas uma garrafa de suco concentrado de manga. Diluí o suco em água, bebi um copo e levei dois copos para as meninas no banheiro. Provavelmente este seria um dia melhor que o anterior.

Precisava organizar minha vida. Em primeiro lugar eu tinha que avisar Carla sobre a morte de seu irmão. Precisava também procurar a mala de Violeta, a garota morta, antes que aquele magrelo viesse atrás dela. Precisava dar um jeito na minha mão, o meu dedo...onde estaria meu dedo? Procurei no bolso da calça, pois estava usando a mesma roupa da noite anterior. A caixa de cigarro estava lá, com o dedo estragado e fedido. Coloquei o dedo no congelador e dei uma ajeitada no curativo da mão. Voltei para o banheiro com os copos de suco.

As gêmeas estavam tomando banho.

Meninas, trouxe um suco para vocês.

Oi, bom dia. – respondeu uma delas com um sorriso maravilhoso nos lábios, enquanto a outra ensaboava suas costas. – entra aqui também, venha tomar um banho...

Tirei minha roupa e entrei no chuveiro. Elas começaram a ensaboar meu corpo, minhas pernas, braços, costas, tudo...não demorou muito para eu ficar excitado. Uma das meninas estava ensaboando o meu pinto, percebeu que eu estava ficando com o pinto duro e começou a rir.

Sueli, ele tá gostando...

Fiquei meio envergonhado, falei que estava gostando muito do banho e das carícias, e não ia mais agüentar. Agarrei uma delas pela cintura e comecei a beijá-la loucamente, enquanto a outra me agarrou por trás e começou a lamber minha orelha. Transamos durante duas horas, com o chuveiro ligado. O nome delas era Sueli e Viviane, e estavam de passagem na cidade. Depois do banho elas fizeram um curativo na minha mão machucada e me prepararam um almoço com algumas coisas que tinham no armário da cozinha. Enquanto isso, vasculhei a casa toda atrás da mala da menina morta, e não encontrei nada! O que será que tinha nessa mala?

Almoçamos juntos, eu, Sueli e Viviane. Depois do almoço as meninas foram dormir e eu aproveitei para dar uma organizada na minha vida. Peguei a mala de dinheiro do magrelão que estava debaixo da minha cama e escondi-a no quintal, em um lugar onde ninguém conseguiria encontrar, enterrado ao lado do túmulo de minha mãe.

Quando entrei dentro de casa novamente, encontrei quatro figuras encapuzadas com porretes na mão, em pé na sala. Eles estavam vestidos de preto, e eram todos do mesmo tamanho. Quando entrei na sala, um deles me agarrou enquanto outro me deu uma porrada na minha perna. Caí no chão.

O que vocês estão fazendo? Saiam da minha casa! Eu...Vocês estão atrás do dinheiro? Eu não...

O cara que havia me agarrado segurou minha cabeça e falou bem baixinho perto do meu ouvido:

Cala a boca! Nós não queremos nenhum dinheiro!

Outro cara veio em minha direção, me levantou e me entregou um revólver. Peguei o revólver na mão, enquanto eles me apontavam, cada um, um revólver em minha direção. O que eu iria fazer? Se eu atirasse em um deles os outros me matavam ali mesmo, na hora, sem hesitar. Ainda me ameaçando com as armas, eles me levaram para o quarto onde as gêmeas estavam dormindo, e, segurando na mão em que eu segurava a arma, eles fizeram eu apontar a arma na cabeça de uma delas.

Atire logo. – sussurrou um dos caras encapuzados.

As meninas ainda dormiam.

E se eu não atirar? – perguntei.

Você morre de uma forma muito dolorosa.

Eu precisava fazer alguma coisa. Se eu não matasse as meninas eles podiam fazer algo horrível comigo. Os quatro caras apontavam as armas para a minha cabeça, enquanto eu segurava minha arma próxima à cabeça da Viviane, ou da Sueli, não sei...elas eram tão iguais...

De repente uma das gêmeas acordou e levantou a cabeça bruscamente, o que me assustou e fez com que eu disparasse a arma, estourando a cabeça da menina. Em seguida, a outra garota acordou, assustada com o barulho do tiro, e levantou da cama e correu para um canto do quarto. Um dos caras encapuzados correu atrás dela e agarrou-a por trás.

Atire logo. – gritou um outro cara.

Apontei a arma em direção à cabeça da garota, que começou a chorar desesperadamente quando viu a irmã morta na cama. Comecei a tremer, fechei os olhos e puxei o gatilho. Ouvi um grito, e quando abri meus olhos, a outra garota estava jogada no chão. Os quatro caras encapuzados me agarraram e me levaram para meu carro. Dirigimos até um local afastado da cidade.

Quando chegamos em um campo bem longe da cidade, eles pararam o carro e me jogaram no chão, tampando minha boca com um pano.

Você não entendeu nada mesmo, não é? – perguntou um deles.

Em seguida, os quatro caras apontaram suas armas para minha testa e atiraram ao mesmo tempo. Morri no exato momento em que a primeira bala se alojou no miolo do meu cérebro, e quase nem senti a quarta bala furando meu crânio. Um dos caras começou a chutar meu corpo e me deu mais um tiro na perna. Os quatro caras voltaram para o carro e tiraram o capuz. Todos eles olharam mais uma vez para meu corpo ensangüentado caído no chão, e agora sem capuz pude ver que todos tinham o mesmo rosto, eram todos iguais, com a mesma cara sonsa e triste que eu via todas as manhãs no espelho do banheiro de casa. Os quatro caras de preto tinham o meu rosto. Eram EU!

Eles saíram em disparada com meu carro, assoviando uma linda música. Morri, depois de uma curta vida sem sentido e improdutiva. Escrevi cinco livros que não fizeram sucesso algum, não casei e fiz poucas amizades. Com certeza não ia aparecer em nenhuma enciclopédia. O pior de tudo é que eu não havia avisado Carla sobre a morte de seu irmão, a Carla era tão sozinha...talvez a gente até transava de novo, quem sabe... Nunca tive um bicho de estimação, nem um passarinho. Talvez seja por causa disso que fui um cara infeliz, ou talvez seja por que eu nunca disse que amava minha mãe!

Mas o que me deixa mais preocupado e confuso é que morri sem saber o que o travesti estava fazendo lá em casa. É mole?

Alguém ainda vai fazer um filme sobre tudo isso.

FIM