um e noventa e nove, de fabiano moreira

  Uma sensação de sufocamento se iniciava ao meio dia, como se afogada, impossível escapar. Ao seu redor o cheiro ia se acumulando: suores, odores, barulho vertiginoso de comprimida multidão. O som do velho ônibus impunha o transe e este se mesclava á turbulência. O terrível mantra urbano.

O rígido corpo solto. Se caísse para trás seria aparada por braços masculinos que a fitavam desde que entrara no ônibus. Á frente as cadeiras ocupadas por gente cansada e adolescentes bagunceiros, com seus bonés. Pele, pano de blusas, jeans aquecido pelo calor, tudo ao seu redor. Já havia perdido a noção de espaço. O fato de ser baixinha contribuía para que não visse com clareza as janelas fechadas, brancas de embaçamento. Lá fora chuviscava.

Foi quando aqueles dedos lhe puxaram o ombro esquerdo enquanto o nome JULIA, dito por outra boca, a despertasse para si. Eram os olhos de Alexandre brindando, reluzentes, os seus.

-- Julia!! Tudo bem?

-- Um pouco tonta... acho... mas tudo bem sim. E você, como está? A muito tempo que não te vejo. Imagino que seja o curso de direito.

-- O curso eu tô adorando. O problema são as pilhas de trabalho que somos obrigados a fazer. Você tava trabalhando numa lojinha na Afonso Pena né?

-- Dá pra sobreviver. Disse ela, abrindo caminho para uma senhora que passava, com sacolas empilhadas nos braços obscurecendo-lhe a visão.

-- As pessoas querem comprar algo para dar de presente aos amigos mais próximos, prosseguiu Julia, em datas especiais como natal, aniversário. Ás vezes o que salva nesses casos, em momentos de aperto é o preço. Chegaram ontem uns brinquedos novos e um tantão de bijuterias, coisa simples, uma gracinha!! Sabe quanto? 1,99, bem como todos os produtos da loja.

Alexandre fazia tanta força pra sorrir que a falsidade que ali se estampava lhe era incômoda. A reciprocidade era imediata, Julia sorria do mesmo modo e por alguns instantes era como se olhassem para um espelho.

Chegara o seu ponto e a luz do meio dia acabara por desfazer o amontoado de nuvens escuras. Com um rápido aceno se despedira de seu velho conhecido desde a mais tenra adolescência, antes que suas vidas tomassem rumos totalmente diversos.

Sentindo-se mais á vontade na tranquilidade da rua, poças no caminho refletiam múltiplos sóis. Os cães e seus mendigos, numa mútua demonstração de identidade. Duas sacolas pesadas agora lhe pareciam mais leves.

Entrou em seu apartamento, segundo andar. Numa sossegada rua do bairro Santa Teresa em Belo Horizonte. Nas paredes, quadros despretensiosos ocupavam vazios espaços: Jesus Cristo e seu coração escarlate, seus olhos pareciam fitar o quadro adiante, onde Iemanjá o encarava corajosa. Uma imagem de São Jorge se interpunha entre os dois, na neutralidade íntegra de quem cavalga dragões.

Débora, a irmã mais velha, colocava o almoço na mesa. No quarto logo ao lado o som eletrônico do video game predominava enquanto Felipe, o filho de sua irmã, brincava concentrado com um joystick nas mãos.

-- Trouxe a hortelã? Perguntou Débora.

-- Claro que sim. Disse mexendo nos sacos plásticos onde trouxera algumas coisas para a cozinha.

-- Ótimo, chegou bem a tempo. Kibe sem hortelã não é kibe.

Alguns minutos depois, quando os kibes foram servidos, Felipe se juntou á mesa. A televisão ligada contava as notícias do dia.

-- Encontrei AlêxandrI no ônibus. Disse Júlia sem qualquer entusiasmo.

-- Ele ainda tá fazendo direito?

-- Sim. Mas parece que o curso é bastante cansativo. Acho que ele vai até o fim.

Os apresentadores do jornal murmuravam as notícias enquanto as duas comiam sem muita pressa. Felipe mal acabou de comer e já se levantou pra voltar ao seu velho Atari, que tanto amava. Assim que o menino saiu, Débora acendeu um cigarro e sentou-se mais perto da irmã com um sorriso malicioso nos olhos.

-- Que foi?? Perguntou Júlia, parecendo não entender.

-- Quando é que você vai ligar pra ele?

-- QUE??

-- Não se faça de burra, nós duas sabemos o que deve ser feito.

-- Vejo que você não me conhece nem o pouco que eu pensava... De onde é que você tirou essa idéia tão absurda?

-- Em momentos como esse é que penso te conhecer melhor do que você mesma. Pensa que não notei o tremor da sua voz quando pronunciou o nome dele? "AlêxandrI"?? Não se diz "AlêxandrI", se diz ALEXANDRE.

-- Não sei do qu...

-- Ah!! Deixa de ser boba, Júlia! Um gato montado na grana como ele não é coisa que se deixa passar. Vai ficar solteirona a vida toda é?

Julia se irritava com Débora que só fazia intensificar ainda mais sua raiva, mais de si mesma do que dela, visto que os argumentos de sua irmã pareciam ter algum sentido. Era como se sua intimidade mais privada não tivesse nenhuma proteção contra olhos alheios.

Trimmmmmmnnnnnnnn. Correu para atender ao telefone e assim encerrar esse assunto.

-- Oi de novo, Júlia.

-- "AlêxandrI"!! Disse Júlia, mais uma vez trocando as letras, despertando um ainda mais triunfante sorriso em Débora.

-- Não sei porquê, mas de repente me bateu uma vontade de te ligar. Olha... Gostaria de jantar comigo essa noite?

-- Jantar? Onde??

-- Conheço uma caldería fabulosa! Fica pertinho aí da sua casa. Eles servem um caldo de lagosta muito bom!! Ótimo para noites chuvosas.

-- Não sei se vou poder... Tenho que resolver uns assuntos aqui em casa...

-- Deixe esses assuntos pra depois, não se pode morrer sem provar aquele caldo ao menos uma vez na vida.

-- Desculpa, mas...

-- Qual o problema, Julia?? Qual a desculpa dessa vez? Disse Alexandre um pouco mais agressivo.

Perdurou o silêncio após esta última frase. Parecia irritado o suficiente para que a resposta certa de Julia a deixasse em paz. Não mais teria que aguentar os insistentes aborrecimentos causados pelas insinuações da irmã. O que faria? Parecia óbvio que ela deveria dispensa-lo com a mais falsa das respostas. A ambiguidade se fazia presente na obviedade de sua decisão. Ambiguidade reveladora que gerava mais uma questão em meio ás muitas que se acumulavam.

-- Que horas?

Por que o que ela tanto odiava nele ao mesmo tempo a atraía?

-- Que? Disse ele como se tivesse levado um susto.

-- A que horas nos encontramos?

O que mais atrai no outro, o que falta? Ou algo no outro é presente demais a ponto de atrair.

-- Hum... Pode ser ás nove. Pode deixar que eu a busco.

Era muito esquisita, a situação da paixão.

-- Não, não precisa. Sei onde fica essa caldería. Fica realmente muito perto daqui, posso ir sozinha.

Alexandre insistiu, mas ela não quis que ele a buscasse. Sua irmã se vangloriava e achava a atitude de Júlia o mais básico e natural charminho feminino.

Em seu quarto enterrou-se na cama, cabeça sob o travesseiro. Misteriosas lágrimas despencaram de seus olhos. "Era uma descoberta". Pensava assustada, ensimesmando-se numa escura vertigem. Á princípio pensou em queda de glicose, tinha diabetes desde os dezesseis anos, período em que havia conhecido Alexandre. A polidez os marcara desde o primeiro encontro como uma digital. Um gosto doce e enjoativo de lábio (quando pensava nele), uma vontade de vomitar o mundo (quando pensava em si).

Não, não era diabetes. Paixão, talvez. Na dúvida aplicou-se uma dose de insulina.

"É agora", pensou enquanto olhava para o espelho. Eram sete horas. Começou a se arrumar vestindo seu vestido mais delicado, sapatos de uma discreta elegância e dois brincos caros, um em cada orelha. Banhou-se de maquiagem e não se esqueceu de passar um pouco do perfume francês que sua irmã ganhara a pouco tempo e que ficava guardado na gaveta da penteadeira, a com chave.

Passou cor vermelha na boca e olhou pra irmã sem nada dizer, demonstrando uma seriedade insegura.

-- Ele vai gostar, querida. Disse Débora com um sorriso.

O táxi demorava. Sorte que a chuva era fina e mal molhava. Parou para se observar num espelho de poça sob a luz de um poste. "Linda, pronta para conquista-lo". A essa empolgação logo sobreveio algo que parecia ser nojo, nojo de si mesma. Lembrou-se do sufocamento no ônibus. Apercebeu-se da Júlia bem vestida que esperava o táxi. A mesma da 1,99?

Sorriu-se e encheu-se de si, transbordando uma vaidade artificial e plena. Estava pronta.

"Era uma descoberta?" Pensou enquanto a luz dos faróis lhe tocava os joelhos, até que o carro estivesse ao seu lado.

Explicou o caminho ao taxista, era bem pertinho dali. A emoção lhe embriagava (É uma descoberta), nem deu pra ver o outro carro (Uma descoberta), o som do metal se esmagando, o fogo, a água, o sangue perfumado (Descoberta?). Teria tido tempo de se entristecer? Morreu sem nunca ter experimentado aquele caldo, ótimo em noites chuvosas.