ciclopes, de Fabiano Moreira

  O velho ciclope permanece sentado, cheio de serenidade aparente, de humanidades beatíficas de jeans, canecas e bermudas e bengalas e meias para proteger pezinhos do frio fumaça de boca.

A chuva continua a banhá-los........... o som estalante das gotas mais relembra o estalar de madeira em meio as chamas e enquanto isso as estrelas vestem seus pijamas por detrás das brumas esverdeadas. O ciclope permanece quieto, simplesmente sereno, com o seu olho vermelho mirando o céu. Enquanto ele se cala eternamente, os televisores também se desligam e as pessoas refletem, elas dormem para acordar amanhã, elas se esquentam com o atrito faiscante do sexo. Ele continua calado. Ele e seus ainda mais gigantescos irmãos.

Fico me perguntando enquanto os observo, por que quando chove as pessoas não vão para a janela observar o espetáculo cinza? Por que acham mais interessante ver paredes limitantes do que o ar preenchido de gotas revolucionárias, ver um filme holywood do que o susto de um estrondoso trovão? Se o velho ciclope pensa em algo, essa questão já deve ter lhe ocorrido. Quando a cidade acaricia o céu, quando o céu lambe sensualmente a cidade e ambos se unem numa peça além-Shakespeare... o ciclope continua em silêncio, agachado, respirando e sendo respirado, adorado , torturado. Seus pensamentos circulam independentes, subindo escadas e descendo elevadores.

Deve ser bom ser ciclope. Nunca falam de si, nunca falam com ele, todos acham que é uma posse, mas a verdade é que ele os tem. Não que um ciclope seja possesivo. Nunca há culpa. Mesmo que nele exista um elevador de serviço ou que não caibam dentro dele todas as idéias da existência, jamais poderemos culpá-lo. Seus outros olhos sempre estarão acesos, de maneira aparentemente aleatória, um ciclope tem mais olhos do que aparenta.

Um dia Luana me perguntou se um ciclope pode ser masculino ou feminino, se eles se reproduzem... Deve ser bonito imaginar dois prédios se amando apaixonadamente, dois arranha céus namorando sob a chuva, aproveitando que ninguém se interessa em olhar as gotas. Eles se abraçariam e declamariam poemas quietos um para o outro. Tudo abafado pelos sussurros intencionais dos pingos. Pensei um pouco sobre a pergunta que ela me fez e respondi apenas que um ciclope não é macho nem é fêmea. Disse que "um ciclope é um ciclope". E a chuva continuou falando.

As luzes todas se apagaram e a cidade sentiu o escuro veludo das trevas. E todos os pássaros estranhos, todas as lendas urbanas saíram rebolando e plantando bananeiras. Luana se abraçou em mim, usando o medo como desculpa para afeição... Acho que eu gosto das desculpas, embora encubram perguntas sem realmente responder algo, é sempre bom estar debaixo das cobertas, sem ver direito o que se passa, deixando se guiar pela ausência da luz que nos desperta sentidos astrais de normais.

Os peixes do meu aquário já não se assustam com o escuro. Quando eu era criança eu cantava para eles dormirem e zelava pela sua segurança, eu tentava plantar um sorriso em seus rostos piscianos, mas nunca conseguia. Acho que não pode ser feito em cativeiro. Quando algum deles morria, eu tentava revivê-los, eu os imaginava vivos e sorridentes, eu os imaginava saltitantes, juntos, amigos. Quando olhava, sua carcaça sumira. "Deus deve tê-lo levado", eu pensava. Depois descobri que eram comidos pelos amigos. Tive problemas com amigos na infância, eu era paranóico demais e demorou para entender o estranho ritual fúnebre dos peixes... percebi com o tempo que somos diferentes deles. Nós usamos roupas e pensamos que pensamos... Eles devem rir disso de vez em quando.

É incrível as coisas que a gente diz quando se está apaixonado, principalmente quando ao telefone, onde até as pausas silenciosas são consideradas palavras e contar sobre a sombra, a cor de uma tampinha ou o som de uma campainha torna-se assunto de importância máxima. Adoro ouvir Luana. É legal quando ela fica sem assunto e eu já não tenho mais nenhuma novidade para contar, nem a mais quotidiana delas. Sempre que isso acontece ela me lambe o rosto e as vezes mais do que isso... Quando ela quer eu a lambo também. Legal, né?!

Quando as luzes se apagam e estamos sozinhos, uma das melhores coisas a fazer é comermos uvas juntos, batendo um papo ou brigando. Brigar comendo uvas é uma ocasião especial. A gente faz isso sempre e quase chego a pensar que brigamos de propósito, só para romper o marasmo e adoçar a doçura da fruta com um sabor meio amargo. É incrível as coisas que se diz quando se está apaixonado.

Depois da meia noite eu a levo para casa. Sempre foi assim, menos hoje. Ela dormirá aqui. Não, não faremos sexo a noite toda. Dormiremos separados, um no quarto e outro na cozinha, devemos manter os padrões e os limites da moralidade sempre presentes... Até parece que você acreditou nisso né ciclope?

Abri as cortinas para podermos dormir diante da chuva imensa que caía na paz. Sorrimos abraçados esperando que alguma coisa grande acontecesse, algo como uma aparição, um assalto, uma explosão nuclear por acidente. Mas não era nada disso, eram só gotas, uma atrás da outra, cada qual mais diferente à olhos atentos. Cada qual representando um mili-segundo de vida, valendo, agora. Isso foi tão empolgante para mim que quase sorri chorando. Luana me lambeu todo.

As gotas foram embora. A manhã não vai chegar tão cedo e eu tento paralisar tudo, paralisar gotas no ar. Mas a goteira continua a gerar e gerar. E as gotas se espatifam no chão dando lugar à outras. Penso então comigo mesmo: se eu não posso pará-las não quero vê-las cair e nem as outras seguintes.

Fecho os meus olhos sorrindo. Luana já fechou os dela à um bom tempo. Ouço um ônibus passar, ouço algo se quebrando na rua, um tiro na favela... eu ouço o piscar do ciclope.