montagem, de Serguei Eisenstein
Houve uma época em nosso cinema em
que se proclamava que a montagem é tudo. Atinge-se hoje
em dia o fim de um período onde a montagem não oferece
maior importância. Sem admitir que ela seja tudo ou
então nada, achamos necessário lembrar, agora, que a
montagem faz intrinsecamente parte da obra
cinematográfica, tendo a mesma importância que todos os
demais elementos que contribuem para a eficácia dessa
arte. Depois do Sturm em favor da montagem e o Drang
contra, torna-se necessário atacar de novo os problemas
que ela coloca. E essa necessidade impõe-se tanto mais
quanto o período de negação destruiu até o aspecto
mais incontestável da montagem, aquele que não deveria
jamais suscitar o menor ataque. Os autores de uma série
de filmes recentes "relegaram" a montagem a
ponto de esquecer a sua finalidade essencial e a missão
que justifica qualquer obra de arte missão
inseparável do seu papel de conhecimento de
fornecer uma exposição logicamente coerente do tema, da
história, da ação, dos comportamentos, do
movimento dentro do episódio e dentro do drama, no seu
todo. Mestres do cinema, às vezes bem eminentes,
parecem, em numerosos casos, nos mais diversos gêneros,
ter perdido o sentido da narrativa continuada, lógica,
isto é, simplesmente coerente (não nos referimos
nem mesmo à narrativa patética). E tal fato
obriga-nos se não a criticar aqueles mestres pelo menos
a lançar-nos imediatamente à batalha pela arte da
montagem por demais esquecida. Ainda mais que a missão
de nossos filmes não é somente contar com lógica e
coerência, mas com o máximo de capacidade
patética de emoção. A montagem representa uma poderosa ajuda na complementação daquela missão. ... Por que a executamos? Os piores adversários da montagem concordam que não é apenas porque não dispomos de um rolo de película infinito e que, condenados a dimensões finitas, devemos, de vez em quando, colar uma ponta a outra. Os mais ousados na montagem caíram em excesso inverso. Divertindo-se com as pontas da película, descobriram uma qualidade que, durante muito tempo, os deixou tontos: duas pontas quaisquer unidas combinam-se infalivelmente numa representação nova, surgida dessa justaposição como uma nova qualidade. Essa particularidade não pertence exclusivamente ao cinema. Encontramos sempre o mesmo fenômeno toda vez que juntamos dois fatos, dois processos, dois objetos. O hábito nos faz elaborar quase automaticamente certas generalizações comuns desde que se nos apresentem lado a lado determinados pares de objetos. Seja, por exemplo, um túmulo. Se lhe acrescentarmos uma figura como de uma mulher de luto chorando, ao lado, quase todo mundo concluirá: "A viúva!". É sobre essa reação natural que Ambroise Bierce tirou o efeito de uma de suas Fábulas Fantásticas, "A Viúva Inconsolável": Uma
mulher envolta em véus de luto chorava sobre um túmulo. Todo o efeito do relato vem de que um túmulo e uma mulher de luto se combinam de acordo com o chavão conhecido que sugere a idéia de uma viúva chorando o marido, quando aqui o que ela deplora é a perda do amante. Os enigmas também tiram partido dessa circunstância. Um exemplo folclórico: "Um corvo voa; um cão está sentado sobre sua cauda. Como isso é possível?". Automaticamente justapomos os dois elementos para combiná-los. E lê-se a frase como se o cachorro estivesse sentado sobre a cauda do corvo. Ora, a adivinhação supõe que as duas ações sejam independentes: o corvo voa e o cão está sentado sobre sua própria cauda. Não há pois nada de surpreendente se uma certa conclusão se forma no espírito do espectador diante da justaposição de duas pontas de película coladas uma a outra. Assim, parece, não é a respeito dos fatos, e seus aspectos raros ou universais, que devemos criticar, mas a respeito das deduções e conclusões que deles tiramos e às quais aplicaremos os corretivos que se impõem. Qual o elemento que negligenciamos, quando somos nós mesmos que indicamos pela primeira vez a importância incontestável desse fenômeno para a compreensão e o emprego da montagem? Qual seria a parte de verdade e de erro no entusiasmo de nossos enunciados de então? O que é ainda verdade hoje em dia é o fato de que a justaposição de dois fragmentos de filmes se assemelha mais ao produto que à soma. Assemelha-se ao produto, e não à soma, porque o resultado da justaposição difere sempre qualitativamente (calculado, se preferem, em expoentes) de cada um dos seus elementos componentes, tomados em separado. Para voltar ao nosso exemplo, a mulher é um objeto de percepção, o traje negro que ela usa também é um objeto de percepção, e um e outro dos objetos concretamente perceptíveis. Mas a "viúva" oriunda da justaposição dessas duas percepções não é concretamente perceptível, é um conceito novo, uma nova representação, uma nova imagem. Em que consiste, pois, o "desvio" que cometemos então ao tratar desse fenômeno incontestável? O erro consistiria em colocar o acento principal sobre as possibilidades de justaposição, enfraquecendo o acento que a atenção do experimentador teria feito cair sobre os elementos da justaposição. Os que me criticaram apressaram-se em apresentar o fato como uma falta de interesse pelo conteúdo em si dos elementos de montagem, confundindo o interesse do experimentador por certo aspecto e certo lado do problema com a atitude do próprio experimentador diante da realidade representada. Deixo por conta deles a responsabilidade da imputação. Acho que, na verdade, deixei-me levar de início por aquilo que existe de irrelativo nos componentes da montagem que, quase sempre, a despeito de mim mesmo, encontrando-se justapostos pela vontade do montador, originam "um terceiro termo" e tornam-se correlativos. Em suma, deixei-me levar por possibilidades que não eram nada típicas nas condições da composição cinematográfica normal. Referindo-se essencialmente a uma matéria e a casos dessa ordem, naturalmente somos levados a refletir principalmente na possibilidade de justaposição. E damos menos atenção analítica à própria natureza dos elementos justapostos. Aliás, a ela somente não basta a atenção. Atingindo apenas o conteúdo interno da sequência ela acaba por enfraquecer a montagem, com todas as consequências que daí decorrem. A que se deve prestar atenção para fazer essas duas exceções voltar ao normal? Seria preciso retornar-se ao elemento fundamental que determina igualmente o conteúdo interno de cada sequência e a justaposição desses materiais, isto é, ao conteúdo do todo, do conjunto, do que pode ser reunido. O primeiro excesso consistiria em deixar-se seduzir pela técnica da junção (o método de montagem), o segundo pelos elementos a juntar (o conteúdo da sequência). Seria preciso ocupar-se mais da natureza desse princípio unificador, desse princípio que, para cada obra, cria numa medida igual tanto o conteúdo da sequência como o que revela a justaposição das sequências. Mas seria preciso para isso, em primeiro lugar, que o interesse do experimentador não se voltasse jamais para os casos paradoxais em que o todo, o conjunto, o resultado final, longe de ter sido previsto, surgia de maneira inesperada. Seria preciso interessar-se pelos casos em que os elementos não são somente correlativos, mas em que o resultado final, o conjunto, o todo, foi previsto, sendo predeterminados os elementos assim como as condições de sua justaposição. São os casos normais, habituais, os mais conhecidos. Aqui também o conjunto aparecerá absolutamente como "um terceiro termo". Mas o quadro completo da maneira pela qual se determina a sequência, a montagem e o conteúdo de uma e de outra será mais demonstrativo e mais evidente. E são justamente esses casos que se revelam típicos para o cinema. Considerando a montagem sob este ângulo, as sequências, assim como a sua justaposição, encontram-se colocadas na relação verdadeira. Bem mais, a própria natureza da montagem, longe de romper com os princípios do realismo cinematográfico, apresenta-se como um dos processos mais lógicos e mais legítimos para fazer aparecer o realismo do conteúdo. O que representa, efetivamente, a montagem assim concebida? No caso presente, os elementos não existem mais como qualquer coisa independente, mas como uma representação particular de um único tema de conjunto que os atravessa a todos igualmente. A justaposição desses detalhes particulares em certo modo de montagem chama à vida, torna perceptível, o conjunto que imaginou cada parte, ela as liga umas às outras num todo, nessa imagem sintética onde o autor e, depois dele, o espectador, reviverão o tema em questão. Se, agora, considerarmos dois elementos apresentados lado a lado, a justaposição destes nos aparecerá sob um aspecto um pouco diferente. O elemento A, tirado do tema a desenvolver, e o elemento B, da mesma proveniência, produzem, justapondo-se, a imagem onde o conteúdo do tema se materializa com o máximo destaque. Traduzido para forma normativa, com mais cuidado, precisão e eficácia, a proposição pode enunciar-se assim: A representação A e a representação B devem ser escolhidas entre todos os detalhes possíveis no interior do tema desenvolvido, dever ser escolhidas entre as de natureza tal que sua justaposição a delas e não a de outros elementos suscita na percepção e na afetividade do espectador a imagem a mais completamente exaustiva do próprio tema. Em nosso raciocínio fizemos uso de dois termos: "representação" e "imagem". Precisemos qual a distinção que estabelecemos entre eles. Eis um exemplo sensível. Suponhamos um círculo branco, de diâmetro médio, de superfície lisa, cuja circunferência está dividida em sessenta graduações equidistantes. Algarismos que vão de um a doze, inclusive, são inscritos, em cada grupo de cinco graduações. No centro são colocadas duas plaquetas metálicas girando em torno de uma de suas extremidades, a extremidade livre, em forma de ponta: uma das plaquetas é de dimensão igual ao raio, outra um pouco mais curta. Se a ponta da maior permanece para no número 12, a menor vindo sucessivamente parar sobre os números 1, 2, 3 etc. até 12 inclusive, obteremos uma série de representações geométricas sucessivas pelo fato de que as duas plaquetas metálicas formam sucessivamente, uma em relação a outra, ângulos de 30o, 60o, 90o etc. até 360o inclusive. Mas se o círculo em questão está munido de um mecanismo para fazer avançar regularmente as plaquetas metálicas, a figura geométrica que se forma em sua superfície reveste um sentido particular: não é mais uma representação; é, agora, uma imagem do tempo. No presente caso, a representação e a imagem que ela suscita formam um bloco na percepção de tal modo que se tornam necessárias circunstâncias bem peculiares para separar do conceito de tempo a figura geométrica das agulhas. Não obstante, a coisa pode chegar a qualquer ponto, é verdade, em circunstâncias excepcionais. Lembremo-nos de Vronski depois que Ana Karenina lhe participa que está grávida. No começo do capítulo XXIV da segunda parte do romance de Tolstói encontramo-nos, justamente, em presença de um caso semelhante: No terraço dos Karenina, Vronski olhou o relógio; estava de tal maneira perturbado e voltado para seus próprios pensamentos que via os ponteiros no mostrador, mas não podia perceber as horas. A imagem do tempo que os ponteiros do relógio traduziam não lhe produzia mais qualquer reflexo. Ele só via a representação geométrica dos ponteiros no mostrador. Mesmo nos casos mais simples, como o do tempo astronômico, a simples representação no mostrador não é suficiente. Ver não é tudo. É preciso ainda que qualquer coisa sobrevenha à representação, que uma operação seja praticada. Somente aí é que ela deixa de ser registrada como uma simples figura geométrica. Ela se fixa como a imagem da hora na qual um acontecimento se produziu. E Tolstói nos mostra o que acontece quando tal processo não ocorre. Em que consiste esse processo? Tal configuração dos ponteiros no mostrador evidencia um mundo de conceitos, associados à hora à qual corresponde o número indicado. Suponhamos que se trata do número cinco. Nesse caso, nossa imaginação é levada a fazer afluir na memória, em resposta a esse sinal, a multidão de acontecimentos que ocorrem àquela hora certa: refeição, fim do trabalho de um dia, afluência nos locais de condução, fechamento das livrarias, ou então a luz crepuscular tão característica desse momento, todos os dias... enfim, uma série de quadros (de representações) do que se faz às cinco horas. A totalidade de tais quadros constitui a imagem de cinco horas. É o processo em seu desenrolar integral, na fase de assimilação, quando se trata de fazer sair de uma representação numerada a imagem das horas do dia e da noite. Em seguida, atuam as leis de economia da energia psíquica. Produz-se uma "condensação" no interior do processo descrito: a cadeia de elos intermediários desaparece, uma associação imediata, direta, instantânea, elabora-se entre o número e a percepção da imagem hora ao qual corresponde. No exemplo de Vronski, vimos que, sob a influência de um choque afetivo, essa associação pode ser perturbada, e que então representação e imagem se dissociam. Mas o que nos interessa é o quadro completo da formação da imagem a partir da representação, o quadro tal como o traçamos antes. Interessa-nos porque o mecanismo da formação da imagem na vida serve de protótipo ao que constitui, em arte, o método da criação de imagens estéticas. Devemos também lembrar que entre a representação da hora no mostrador e a percepção da imagem desse instante do dia se desenrola todo um rosário de representações dos aspectos particulares característicos da hora em questão. O encadeamento psicológico, repetimos, leva a reduzir ao mínimo esses elos intermediários, deixando-os apenas perceptíveis o começo e o fim do processo. Mas desde que precisamos, por um motivo qualquer, associar determinada representação à imagem que ela deve despertar, devemos necessariamente recorrer a esse encadeamento de representações intermediárias cuja coleção forma uma imagem. Tomemos, para começar, um exemplo tirado da vida corrente e muito próximo daquele que acabamos de analisar. Em Nova York, a maior parte das ruas não tem nome. Elas são designadas por números: Quinta Avenida, Rua Quarenta e Dois etc. Para os recém-chegados, esse modo de designação oferece, de início, problemas difíceis para a memória. Estamos habituados a dar nome às ruas, e isso facilita a tarefa, o nome logo evocando a imagem e o seu enunciado fazendo afluir, com a imagem, todo um grupo de sensações. Tive muita dificuldade para lembrar-me da imagem das ruas de Nova York e, por conseguinte, para conhecê-las. Designadas por números neutros 42 ou 45 elas não me evocavam a imagem, concentrando a sensação do aspecto característico de tal ou qual artéria. Para chegar a esse resultado foi-me necessário lembrar uma coleção de índices concretos característicos de tal ou qual rua, coleção que se apresentava a meu espírito em resposta ao sinal "quarenta e dois", o sinal "quarenta e cinco" suscitando outra. Para cada rua que eu queria reter, colecionava em minha memória os teatros, os cinemas, as lojas, os prédios característicos etc. a operação para os reter de cor se fazia por etapas. Pude distinguir duas. Na primeira, à designação verbal "Rua Quarenta e Dois", a memória reagia com grandes dificuldades, engrenando todo o rosário de elementos característicos daquela rua; mas não havia ainda a verdadeira sensação daquela rua, os elementos não combinavam, no momento, em imagem. Somente na segunda etapa é que eles se fundiam em uma imagem única; ao enunciado do número, levantava-se todo um conjunto de seus elementos constitutivos, não mais como um encadeamento, mas como um todo único, como uma visão integral da rua, como uma imagem integral. Somente a partir desse momento é que se pode dizer que a rua está verdadeiramente registrada pela memória. Sua imagem começa a surgir, a viver, no consciência e na sensibilidade, exatamente da mesma maneira que na obra de arte se destaca pouco a pouco, a partir de seus elementos, uma imagem una e total que nunca mais esquecemos. Nos dois casos, quer se trate do processo de registro pela memória ou de percepção estética, a mesma lei permanece verdadeira: a parte penetra na consciência e na sensibilidade por intermédio do todo e por intermédio da imagem. Essa imagem penetra na consciência e na sensibilidade e, por intermédio da soma, cada detalhe ali fica conservado nas sensações e na memória sem que se possa destacar do todo. Pode tratar-se de uma imagem sonora, de um quadro melódico e rítmico, ou pode tratar-se de uma imagem plástica onde os elementos da série registrada pela memória foram inseridos a título de representações. Num e noutro caso, a série de conceitos organiza-se na percepção, na consciência, numa imagem total onde vêm colocar-se os elementos fragmentários. O registro pela memória comporta, como já vimos, duas etapas essenciais: a primeira é a formação da imagem, a segunda, o resultado dessa formação e sua significação para a lembrança. Acresce o fato de que é importante para a memória oferecer o menos possível o resultado, franqueando o processo de formação. É o que distingue a prática da vida da prática da arte. Pois, se passamos ao domínio desta última, encontramos um claro deslocamento de acento. A obra de arte procura, evidentemente, atingir o resultado. Mas é no processo que ela orienta toda a sutileza de seus métodos. Encarada em seu dinamismo, a obra de arte é um processo de formação das imagens na sensibilidade e na inteligência do espectador. É nisso que consiste o aspecto característico de uma obra de arte verdadeiramente viva, o que a distingue das obras mortas, onde se leva ao conhecimento do espectador o resultado representado de um processo de criação que terminou o seu curso, em vez de o envolver no curso desse processo. Essa condição é confirmada, sempre e em toda parte, em qualquer setor de arte a que nos dedicarmos. Assim é que, para o ator, "representar vivendo" consiste não em representar o resultado copiado dos sentimentos, mas em fazer nascer esses sentimentos, fazer que eles se desenvolvam e se transformem, fazer que vivam diante do espectador. Eis por que a imagem de uma cena, de um episódio, de uma obra etc. não existe como um elemento dado, inteiramente fabricado, mas como algo que nasce e desabrocha. É também por isso que um personagem só dá a impressão de estar vivendo quando as suas características se formam no curso da ação, quando ele não é um boneco mecânico rotulado a priori. No drama, é particularmente importante que o curso dos acontecimentos não se limite a formar representações de tipo, mas que forme, que "dê efeito" ao próprio tipo. Em suma, o método de criação de imagens na obra de arte deve reproduzir o processo pelo qual, na vida, a consciência e a sensibilidade se enriquecem de imagens novas. Acabamos de ilustrá-lo com o exemplo da Rua Quarenta e Dois. E se baseia em que o artista, se deve exprimir uma certa imagem através da representação de um fato, recorre a um método do gênero daquele de que nos servimos para conhecer Nova York. Analisamos também o exemplo do mostrador e ele nos revelou o processo pelo qual a imagem do tempo surge nessa representação. Para criar a imagem, a obra de arte deverá criar um encadeamento de representações por um processo análogo. Voltemos ao exemplo do relógio. No caso de Vronski, a figura geométrica não evocou a imagem da hora. Mas há casos em que o que importa não á absolutamente perceber que é, astronomicamente, zero hora, mas, ao contrário, sentir meia-noite no conjunto de associações e estados afetivos a que o autor é levado a suscitar pelas necessidades do tema. Esta pode ser a hora em que se espera angustiosamente um encontro de meia-noite, pode ser a hora de uma morte à meia-noite, a fatídica meia-noite de uma evasão; em suma, uma coisa completamente diversa da representação da hora zero dos astrônomos. E, assim, o que deve sair da representação das doze badaladas é a imagem de meia-noite, "hora do destino", uma meia-noite revestida de um sentido especial. Ilustremos o caso com um exemplo. É o Maupassant do Bel Ami que nos vai inspirar. O exemplo é interessante porque é sonoro. E ainda é mais interessante porque é um modelo de montagem pela escolha judiciosa do método e porque o romance o apresenta como uma simples pintura de costumes. Bel Ami. A cena em que Georges Duroy, que já escreve seu nome como "du Roy", espera num fiacre, porque Susana prometeu fugir com ele à meia-noite. Meia-noite, aqui, nada tem de tempo astronômico. É essencialmente a hora em que se joga o seu vale-tudo ou quase. A hora em que o herói tem o direito de pensar: "Acabou-se. Fracassou. Ela não virá." Eis como Maupassant grava no espírito e na sensibilidade do leitor a imagem dessa hora, sua significação, em vez de limitar-se a descrever o instante da noite de que se trata. ...
Ele tornou a sair, por volta de onze horas, vagou durante
algum tempo, tomou um fiacre e mandou parar na praça de
la Concorde, ao longo das arcadas do Ministério da
Marinha. Maupassant, verifica-se, ao ter necessidade de oferecer a tonalidade afetiva de meia-noite, não se contentou em fazer soar um relógio doze vezes, depois uma. Ele nos faz reviver a sensação de meia-noite, fazendo soar essas doze batidas em diferentes lugares em instantes diferentes. À medida que se adicionam em nossa consciência, tais badaladas vão formando um sentimento global de meia-noite. As representações isoladas concorrem para formar uma imagem. E esse resultado é obtido através dos mais rigorosos processos de montagem. O exemplo em questão é um verdadeiro modelo de montagem refinada onde a sonoridade das doze badaladas bem inscrever-se sobre toda uma série de planos: "um relógio distante", "outro mais perto", "um último muito longe". É uma ressonância de relógios tomada em distâncias diversas, como fotografada em escalas diferentes e repetida numa série de três sequências, em plano geral, em plano americano e em plano panorâmico. Além do mais, a ressonância dos relógios, ou melhor, a dissonância deles, não é absolutamente apontada aqui como um detalhe naturalista de Paris noturno. Através dessa dissonância, o que volta como uma obsessão é a imagem afetiva de "meia-noite hora do Destino", e não o simples aviso: "Zero hora". Se ele tivesse querido somente nos fazer lembrar que era meia-noite, Maupassant não teria seguramente lançado mão dessa descrição rebuscada. E paralelamente, sem o processo de montagem que escolheu, jamais ele teria obtido um efeito de emoção tão intenso, com uma economia máxima de meios... |