razão e preconceito em amélia, ou brasil, que era um país de verdade, de Marcos Nunes
Alguns filmes optam pela defesa de
algumas idéias centrais; fixando-se nelas não há
garantia de qualidade da película, mas existem filmes
bons baseados em idéias tolas, como também filmes ruins
carregados de boas intenções ideológicas. O cinema
brasileiro desperdiçou grandes idéias em péssimas
realizações, talvez mesmo seja essa a principal marca
da cinematografia nacional, a profusão de idéias na
cabeça e a carência de recursos com a câmera na mão. Um das últimas estréias nacionais, AMÉLIA, de Ana Carolina, conta com a simpatia do público, uma atriz francesa, temática explosiva filtrada pela comédia, a mesma carência de recursos cenográficos típica de uma realização que não conta com grandes aportes de capital. O último item, a falta de dinheiro, na verdade, prejudica pouco o filme. Improvisando aqui e ali nas locações, vestuário e cenários, o resultado plástico soa convincente, principalmente para quem não conhece o Rio de Janeiro e não sabe a localização de alguns prédios utilizados, e ainda o mal aproveitamento de algumas regiões arquiteturalmente e ecologicamente preservadas que poderiam servir mais adequadamente, propiciando melhores soluções visuais, ou mesmo mais ousadia na captação das imagens que, diante das dificuldades, resultam mais simples, não por opção, mas por restrição. O que então prejudica o filme ? A insistência. A caracterização do Brasil como um país rústico, cuja nobreza teria origem não na cultura européia, mas nas variedades propiciadas pela "mistura de raças", que nos teria privilegiada com uma favorável fusão de culturas, destinada a suplantar a decadente madrasta Europa. Herança de Gilberto Freyre e mas alguns que não reconhecem as fraturas sociais que opõe uma ampla gama de culturas que, miscigenadas à força, vivem se desentendendo e multiplicando desentendimentos. A caracterização da Europa como mãe da cultura, porém imersa em seu decadentismo e afetação, incapaz de olhar para além de seu envelhecido umbigo e que, quando reconhece no colonizado alguma grandeza, a filtra de forma caricatural, expondo-a como exotismo de uma terra condenada a uma felicidade "natural" que soa como selvagem. Foi anotado por um crítico que a piada do filme, que é mesmo "a" piada, por ser mesmo uma só, com o tempo cansa. De fato, a impossibilidade de comunicação entre a atriz francesa Sarah Bernhard, um monstro de vaidade e pura afetação, e as costureiras de Minas, três criaturas estereotipadamente interioranas, rende bons momentos, mas que se repetem, se sucedem até cansar. Depois de um tempo, não há mais como tirar água da pedra, e só mais tarde o conflito que leva ao acidente quase fatal é que nos livra, momentaneamente, do tédio. Voltemos, porém, às idéias do filme. À completa falta de refinamento, o Brasil responde com a luxúria de sua natureza e de seu povo. Isso impressiona o colonizador, não o bastante para que ele reconheça o valor de uma cultura, mas apenas um caminho para aprofundar sua exploração, que deixa de ser apenas mercantil para ser também cultural, com a única finalidade de espanar um pouco o pó de uma realiza sem reis, perdida entre repúblicas que ainda sonham com as grandezas de um passado que não se coloca em questão. A mitologia indígena serve para a montagem do espetáculo kitsch que encerra o filme, alusão divertida à exploração quase que só turística de uma cultura cujos sentidos são objeto de uma idolatria tacanha, principalmente porque se assemelham ao triunfo de um passado cujos sinais partilham com os europeus. Demonstração de força que, estéril, é diluída em teatro ordinário. Temos um país forte em si mesmo, por sua natureza e também por sua gente, embora essa última, conforme CASA GRANDE E SENZALA, seja um tanto indolente, incapaz de empreender, transformar e criar no sentido de um desenvolvimento material, daí porque a francesa, ao mesmo tempo em que é odiada, é também servida, porque ele conduz, como o colonizador, um processo de desenvolvimento que alavanca o país ao futuro. As costureiras são um microcosmo desse país, incapaz de usar a própria força para ir além de sua condição primitiva, com o que se colocam à disposição de uma mulher que odeiam e amam tanto quanto são amadas e odiadas. A simbiose impossível entre elas é o assunto único do filme, um assunto e tanto, que foi explorada dentro dos limites de linhas teóricas bastante contestáveis, como são as de Gilberto Freyre. A Europa é impositiva como a atriz, mas passa a maior parte do tempo falando sozinha e estimulando suas próprias fantasias, sem qualquer relação com a realidade que a cerca. Perdidos os parâmetros do real, passeia no seu próprio passado de sonho, no seu presente intocado, no seu futuro de artificial glória, que necessita que mantidas sejam as relações que a privilegiam, que a permita explorar sem qualquer escrúpulo a força e a ignorância alheia. Existem ainda os trânsfugas, aqueles que intermediam as relações entre os opressores e oprimidos, tirando daí as vantagens que os capacitam à luta por um lugar entre os opressores. No filme, eles são desempenhados por dois portugueses, mantendo a percepção de Portugal como a nação negra da Europa, e por "brasileiros" que se distinguem pela oficialidade (militares, funcionários públicos, chefes de governo). Temos, assim, um quadro modelar, que toma estereótipos como uma necessidade de comunicação e da arte, talvez para fomentar discussões não acerca da validade desses estereótipos, mas das idéias que são debatidas no filme, que suplantariam os esquematismos forçados pelas limitações cinematográficas. Infelizmente, isso não ocorre. Os esquematismos são, na verdade, o cerne das idéias que se discutem. O filme fica preso a eles, os atores mantém seus registros interpretativos, presos às caricaturas, do início ao fim, impondo a distorção como regra. À cultura local, miscigenada, opõe-se uma cultura metropolitana, pura, porém decadente. À rusticidade das costureiras, autêntica, opõe-se o refinamento de Sarah, vago e artificial. São dois pólos que se atraem por necessidade mútua, mas que também se refutam, um não satisfazendo inteiramente o outro. Estamos, assim, a investigar os possíveis "males de origem" de nosso país, terra invadida, colonizada à força, violentada e logo incorporada aos costumes do colonizador, transformando-os, enriquecendo-os e singularizando-os, mas também impossibilitando-nos de um verdadeiro progresso material, o que levou ao Império, e depois à República, a intentar o "branqueamento" do povo brasileiro, importando europeus para suplantar a influência negra e indígena. Esses brancos que, em contato com a nossa terra e nossa gente, humilha ao mesmo tempo em que se sente humilhado, e é marcado eternamente pela diferença de um mundo que, na Europa, sequer poderia supor. Tal é a infelicidade : reconhece-se como legítimo um discurso que impõe a uma mixórdia de interesses um viés racial preponderante, colocando nas costas dos oprimidos de sempre toda a responsabilidade histórica pelo nosso atraso. A suposta indolência de negros e índios, a incapacidade genética de lidar com as complexas generalidades culturais européias. Estamos, assim, forçoso dizer, diante de um filme que, de maneira cordial, corrobora o racismo, reconhece a superioridade cultural européia, e nos concede, como colonizados, uma certa identidade, não despida de força, mas por completo de coerência e capacidade organizativa. É preciso que Sarah venha ao Brasil para representar, em Paris, a força de nosso povo, como algo que teria se perdido na Europa depois do sepultamento de todos os deuses. O povo brasileiro estaria ali, no palco, como as três costureiras, representando constrangidas papéis que já não são os seus, mas aqueles que a visão do colonizador concede e obriga. À dupla patetice, brasileira e européia, impõe-se ainda a voz do colonizador, capaz de, ao menos, resgatar, mesmo que de maneira rudimentar e caricatural, a força de um povo. Condenados pelos patetas europeus a seguir suas orientações, os patetas brasileiros reconhecem também a força de uma cultura. Estes pensamentos, feitos de dicotomias fáceis, é que vitimam nossa cultura e a mantém prisioneira de um ordem dominante que não lhe dá espaço para manifestação de sua possível força. As diferenças são álibis para a opressão, não servem ao reconhecimento da igualdade entre os seres humanos, que não são divididos por raça, mas por condição de poder, poder esse construído sobre atos de violência que não podemos legitimar sob pena de professarmos, pura e simplesmente, a barbárie. Civilização é reconhecer, nas diferenças, a manifestação da pluralidade existente, para construir espaços de ação pública e privada com direitos e deveres iguais, sem distinção fundamentada em quaisquer diferenças. Caso contrário, faremos das singularidades razão para opor um ser humano a outro, tornando um servidor e outro servido, tornando o frágil aquele que, necessariamente, tem que ser cuidado, manipulado e ordenado, posto que incapaz de realizar plenamente os projetos da humanidade, a cargo dos mais capazes, mais competitivos, mais vitoriosos. Diz Roberto Campos que um empresário, um empreendedor, é criatura rara, deve ser bem cuidada, bem alimentada. Então tá, mil vivas à classe dirigente, essa que, tão civil e cordialmente tem às suas mãos o destino de todos, por legítimo direito, quase divino, de descender daqueles que ainda podem nos dar lições e apontar nossos caminhos, e por isso merecem, é claro, mais direitos que os outros. Mas também já disse um poeta: não sei por onde vou, só sei que não vou por ali. Razões para a subordinação temos muitas, todas ruins. Para a insubordinação, mais ainda, quase todas boas. Explanar sobre supostos princípios de nossa condição subdesenvolvida é a tarefa de AMÉLIA (não por acaso a mulher que se submete, de acordo com a canção, e que no filme é o nome dado à personagem de Marília Pêra, a camareira submissa de Sarah Bernhard). Não sobrou muito espaço para insubordinações menos juvenis e pateticamente heróicas como as mostradas no filme. Pena. Por opção, o filme ficou incompleto, preferindo o recheio dos gracejos preconceituosos de sempre. Ainda bem que, no Brasil, outros filmes são feitos, como o AÇÃO ENTRE AMIGOS, de Beto Brant. Senão, perigava a gente ficar à mercê desses discursos que aprisionam nosso futuro nas mãos daqueles que até hoje se demonstraram ineptos. E, engraçado, qual deles, algum deles, sequer um deles, de fato, ao menos representou, ao menos isso, algo assim como o tipificado "povo brasileiro"? |