os velhos e os livros, de marcos nunes
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Demos uma sorte danada; no prédio prestes a desabar, percorremos uma seqüência enorme de salas, salões, corredores e dependências sem encontrar uma tira de madeira, nenhum batente de porta, sequer um rodapé; tudo cimento, concreto, vergalhão, pó, poeira, mármore, nada que servisse para queimar, nada combustível. Andávamos bem devagar, subíamos as escadas de pedra com parcimônia, como se elas estivessem recobertas de tapetes de veludo vermelho; percorremos todos os aposentos dos cinco andares e nada, até que encontramos uma passagem para o sótão, que ficava não sob um telhado de cerâmica sobre estrados de madeira, mas sob uma armação de ferro que sustentava ardósias repletas de teias de aranhas. Neste sótão, não dezenas nem centenas, mas milhares de livros, centenas de milhares deles, tantos que não podíamos supor quantos, muito menos levá-los em uma só viagem. Retornamos ao bairro trazendo algumas dezenas de volumes, e logo constituímos uma força-tarefa composta de dezenas de pessoas, as mais fortes, para ver se conseguíamos trazer todo o material em apenas uma semana, o que se comprovou impossível; na verdade, levamos um mês e meio para transferir todos os volumes do sótão, depositando-os em várias casas onde não havia risco de incêndio. Os velhos, no entanto, não quiseram nos ajudar. Pareciam até sentirem-se traídos; alguns levantaram a hipótese de que, na verdade, os livros que lá se encontravam estavam sob cuidados e vigilância daquelas pessoas, o que é bem possível, mesmo porque recolhemos sinais disto. No passado, muitas vezes preparávamos expedições àquela região, e éramos demovidos pelos velhos, que asseveravam que uma viagem a tais paragens acarretavam riscos imensos, face a fragilidade das construções e os iminentes riscos de desabamento. Muitos homens ágeis e fortes ali se perderiam. De fato, os riscos existiam, mas foram exagerados, tanto que pudemos visitar a região, achar o tesouro, recolhê-lo inteiramente sem qualquer incidente grave, somente pequenas quedas e escorregões que resultaram em pequenos danos físicos; nenhum osso quebrado, apenas luxações, e alguns livros avariados, o que não constituía problema algum. Combustível só não pode estar molhado. Assim que conseguimos amontoar os volumes em diversos locais, veio o tal conselho dos velhos com uma proposta absurda de separar os volumes, querendo instituir valores e qualidades para todos nós estranhos. Considerávamos apenas o peso, o volume, a porosidade do papel, o fato de apresentar umidade ou não. Quanto mais seco e volumoso, mas eficiente, mais combustível, mais durável e, portanto, melhor. Eles vieram com classificações absurdas como ano de edição, nome do autor, nome da obra, editora, qualidade da encadernação, tipologia, tipo de papel e outras sutilezas para todos ininteligíveis. Numa assembléia, tomamos classificações que nos pareceram mais corretas, ou ao menos mais pragmáticas: inicialmente, separaríamos todos os volumes que contivessem ilustrações, destes privilegiaríamos aqueles cujas gravuras fossem mais coloridas e profusas, desses ainda os que não possuíssem muito texto, e dos textos escolheríamos os tipos maiores, com uma quantidade inferior de palavras. Todos os livros que fossem excepcionalmente grossos, com letras pequenas e espaçamento mínimo entre as linhas automaticamente destinariam-se às funções combustíveis. Não poderíamos perder tempo com filigranas. Contudo, para nossa decepção, pouquíssimos livros eram ilustrados, e desses menos ainda eram coloridos; mesmo os coloridos eram compostos com poucas gravuras entre massas de textos imensas; encontramos diversos livros denominados bíblias sagradas com bonitas ilustrações em cores, mas com quantidades tão grandes de versos que só podemos considerá-los na categoria A, que era a dos livros que iriam para as primeiras queimas. Muitos livros com ilustrações em preto e branco continham desenhos que consideramos lindíssimos, mas que também se enquadravam na mesma categoria, como três volumes de curiosas divinas comédias, ou ainda dez do que parecia ser uma história muito comprida sobre grandes reis, denominada como Gargantua e Pantagruel. Quanto aos velhos, eles nada mais faziam do que chorar, lendo inúmeras passagens de livros que foram destinados às fogueiras e enquadrados na categoria A, enquanto concedíamos o favor de incluir muitos livros ilustrados de um autor chamado Shakespeare na categoria B, primeiro por causa das figuras, segundo porque os velhos contavam aquelas histórias repletas de diálogos curiosos às crianças, que ficaram como que maravilhadas mas, principalmente, quietas, silenciosas, paradas, com o que todas as mães exigiram a inclusão de tais livros na categoria B. Na categoria C ficaram os livros que, mesmo sem ilustrações, eram finos e queimavam demasiadamente rápido, podendo servir para funções imediatas, mas não para necessidades que exigiam maior durabilidade do fogo. Livros com capas demasiadamente grossas também foram incluídos nessa categoria, porque o material dessas capas resistia ao fogo, e mesmo incinerado não atingia níveis aceitáveis de queima. Na categoria D, a última, todos os livros fartamente ilustrados, e mais aqueles muito pequenos, além das folhas avulsas que foram guardadas para necessidades menores. Além disso, por insistência dos velhos, constituímos uma biblioteca básica, que não foi além de quarenta volumes, e para isso tivemos que nos comprometer a preservá-los sob quaisquer circunstâncias, mesmo na total carência de combustíveis. Esses volumes seriam escolhidos criteriosamente por eles, separados, guardados e limpos, organizando-se a partir da data da guarda sessões diárias de leitura, onde poderiam participar todos, mas que se destinariam basicamente às novas e analfabetas gerações. Eu, por exemplo, sabia ler, além de reconhecer a qualidade de muito daquilo que destinávamos ao fogo. Porém, essa qualidade era relativa. Afinal, apesar de tanto cultivo, de tanta inteligência, de tanta sofisticação intelectual, estávamos ali naquelas condições; pensava que não havia porque preservar do passado nada, porque de nada aquilo nos serviu, mesmo os poemas mais bonitos, a prosa mais calculada, a ciência mais perspicaz. Voltamos à Idade das Trevas mais rápido do que dominamos a eletricidade e dela partimos para novas tecnologias, todas elas sepultadas pelas ações que pretendiam, mais que tudo, preservar as ordens existentes; mas todas elas (as ordens) ruíram e ficamos nós na mais absoluta carência. Portanto, ao inferno a verdade e o conhecimento, e nada mais simbólico e ao mesmo tempo simples do que usar todo esse cânone para queimar para aquecimento e alimentação de corpos destituídos de qualquer sinal de inteligência pregressa. Mas quem disse que podemos confiar nos velhos?... Na primeira queima, resolvemos organizar uma festa, cujo centro seria uma fogueira no centro do bairro, onde poderíamos, além de nos resguardar do frio, cozinhar algumas batatas. Para isso, escolhemos cinco mil volumes dos mais substanciosos e secos, e toda comunidade aguardava ansiosa e quase feliz. Os velhos, é claro, foram um entrave desde o primeiro momento, interrompendo os recolhimentos, fazendo discursos sobre volumes que estavam sendo destinados ao fogo, abraçando-se a eles e impedindo a juntada; com isso, os tais quarenta volumes da biblioteca básica, suspeitamos, estavam para mais de cem, o que podíamos conceder a eles naqueles primeiros dias, depois da imensa alegria do achado. Haviam os delirantes, como um que colocou sobre a cabeça algo que fazia o papel de coroa (e, na verdade, era uma coroa de papel...), não deixando de recitar num só momento diálogos extravagantes de vários personagens de peças teatrais como Rei Lear ou Ricardo III. Sempre a mesma e absurda fascinação sobre Shakespeare, autor de muito prestígio em várias épocas, mas que não impediu que seus cultores naufragassem em todos os horrores do sentimento e da razão humana; porque não foi por desconhecimento de nenhuma dessas obras que quase todos eles perpetraram os atos da mais flagrante desumanidade, condenando milhões de pessoa à morte em suas guerras ou pelas fomes cíclicas que resultavam de um sistema de controle abusivo dos recursos até então existentes. Os mais jovens e as crianças divertiam-se com eles, enquanto nós, os mais maduros, que tinham alguma recordação do passado recente, recomendávamos a todos distância daqueles fenômenos de saudade doentia. Infelizmente, no mesmo dia da grande festa, tivemos que enterrar um de nossos velhos; contudo, não foi um daqueles enlouquecidos ou melancólicos amantes das letras, mas um velho quieto, ensimesmado, que nada mais fazia do resto de sua vida do que murmurar ódios e vaticinar horrores inutilmente, porque considerávamos impossível imaginar um futuro pior do que o presente que já vivíamos. Mesmo que esgotássemos os livros, sobreviveríamos, como tínhamos conseguido até ali, mesmo depois de passar por tantos meses de completa carência de fogo, e mesmo de alimento. Na verdade, tínhamos o hábito de comer os nossos mortos, que para nós não eram mais que fonte inestimável de proteínas. Mas o velho era tão macilento, suas poucas carnes tão sem atrativo que não houve alguém que se apresentasse para desossar a criatura e preparar o assado. Cheios de asco, preferimos simplesmente enterrá-lo, um costume antigo que poderia nos propiciar, quem sabe, alguma boa colheita, razão pela qual retalhamos o homem em várias partes, que foram enterradas em vários pontos do pomar coletivo, onde as poucas árvores frutíferas que resistiam não davam bons frutos, e estavam num desmazelo só. Enquanto enterrávamos as partes à pouca sombra das pobres copas ulceradas, tínhamos que ouvir intermináveis orações que um deles fez questão de esclarecer do que se tratava: kaddish, algo que se recita na cerimônia fúnebre de um gênero de povo devotado a uma religião específica. Como não havia entre nós, nem mesmo entre os velhos, nenhum religioso, estranhamos a citação, e mais ainda a língua indecifrável em que se lamentava a partida de um sujeito que, certamente para nenhum de nós, deixaria qualquer recordação terna. Nenhum elogio nessas circunstâncias poderia ser sincero, nenhum elogio digno de respeito. Contudo, eles agiram conforme o protocolo, e conseguiram impor um certo silêncio, diria até um temor face as circunstâncias inauditas de uma morte celebrada, mesmo que em pedaços, expostos a todos e enterrados sem qualquer cerimônia proximamente às raízes que serviriam para alimentar, aqueles pobres restos putrefatos. Enfim chegou a noite e a festa, maior ainda porque seria vivida nas horas mais temíveis, as noturnas, quando não havia nenhuma proteção à invisibilidade de assassinos e comedores de gente, não poucos entre nós. Às claras, nenhum deles poderia agir, o que denotava uma noite tranqüila, sem ataques de famintos por carne humana. Era lamentável como não podíamos confiar em nenhum de nossos semelhantes, como comprovamos com algumas capturas de alguns atacantes frustrados, cujos rostos revelaram amigos e familiares a quem devotávamos extrema confiança. Revelados, continuarão a se revelar dóceis; mortos, suas carnes eram as piores, as mais duras, fibrosas e até intragáveis. Detestávamos essas condenações à morte, que rendiam péssimas refeições. Éramos, porém, obrigados a cumpri-las, porque alguns de nós, inclusive eu, eram juízes e não podiam ser contestados, porque entendemos desde o primeiro instante que o equilíbrio mínimo de nossas relações só poderia ser pautado no arbítrio privilegiado de alguns que, para isso, contavam com defensores fortes e bem alimentados mas que, broncos, não eram respeitados por ninguém. Sob nossas ordens, suas ações não eram contestadas, o que até levou a alguns deles, por um esforço de raciocínio imprevisível, por conta própria decidir questões importantes que redundaram em conflitos territoriais, impondo a necessidade de uma corregedoria pública. Toda essa ordem política reproduzia muito do que resultou em nossa quase total aniquilação, mas não conseguíamos contornar a formação de grupos em nossa pequena sociedade, de forma que até mesmo os velhos impunham a própria posição que, hierarquicamente, era reconhecida como superior às nossas próprias, estabelecidas por critérios cujo assentimento não foi contestado em nenhum momento, embora não houvesse qualquer coerção ou imposição pelo medo para funcionamento das mínimas instituições que norteavam as decisões coletivas. Assim, fazíamos vista grossa às manifestações dos pobres velhos, agarrados às suas últimas crenças, cujos ridículos papéis tratávamos com condescendência, tolerância e, principalmente, muita paciência. Mas um deles postou-se à frente da fogueira recém acesa, com os olhos escancarados, as sobrancelhas arqueadas ao extremo, os ralos cabelos brancos enrodilhados, e com uma voz potente começou a declamar um texto desconhecido, não sem antes aquietar-se e olhar para mim como se estivesse a contemplar caridosamente o último dos demônios: "Que obra-prima é o homem... como é nobre em sua razão, quão infinita sua capacidade! Como é bem-feito, como é preciso em sua forma e seus movimentos... um semideus em suas atitudes, mas um deus no seu entendimento, na sua razão! Paradigma dos animais, maravilha do mundo!" E depois, ainda mais melancolicamente: "Contudo, para mim, é apenas a quintessência do pó. O homem não me é satisfatório, e muito menos a mulher, ainda mais se sorri por causa disso". Ficou olhando para mim, desalentado, mas logo virou para os livros e, enlouquecido, passou a pular e a dançar em torno da fogueira que lançava labaredas cada vez mais altas, iluminando o descampado e as fisionomias humanas tomadas por um vago terror, diante daquela aparição com ares de profeta. Hesitei por um momento, mas não pude deixar de tomar uma decisão diante daquela clara violação das regras, mesmo que, no caso, as regras ainda não existissem, porque aquela fogueira fora a primeira que presenciara depois de muitos anos, sendo que a última que vi não foi objeto de festa, mas de medo, porque involuntária, que acabou destruindo centenas de casas, pelo fogo destelhadas e transformadas em paredes inúteis que cercavam aposentos abertos ao céu. "Lancem essa criatura medonha na fogueira. Já!" Os guardas foram menos hesitantes que eu. Diante da curiosidade aterrorizada dos espectadores, dois deles bastaram para segurar o velho e lançá-lo sem qualquer dificuldade às chamas. O sujeito não protestou, não rugiu nem mugiu; simplesmente abriu seus braços como se pudesse com eles salvar os livros, ou mais rapidamente virar cinzas inseparáveis àquelas que resultariam daquele auto-da-fé completamente involuntário, por não objetivar o fim de uma cultura, mas a preservação das poucas vidas humanas que resistiram à cultura que encarregou-se de fundamentar o próprio apocalipse. Não foi sem sorrir que compreendi uma coisa naquele instante, uma coisa de valor inestimável: que o corpo humano, por inteiro, em contato com as chamas, é mais inflamável que o papel. |
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