bizarria, de fabiano moreira

 

"Não, amor, isto não é literatura."
Ana Cristina César

-- Mas que calor...
-- Ela queria assim.
-- Como?
-- É o que andam falando por a&í. Dizem que ela sempre quis ser enterrada no verão. O que você era dela?
-- Conversamos algumas vezes por teleffone.
-- Ta chegando muita gente, hein? N&attilde;o imaginava que uma personagem tão bizarra tinha tantos amigos.
-- E você, a conhece de onde? -- Foi um acidente.
-- Como?
-- Um acidente. Estou dizendo que nos conhecemos por acaso, sabe? Foi numa loja de armas. Tava comprando uma espingarda das boas, gosto muito dessas coisas. Ela procurava um daqueles sprays pra mulheres e minha namorada, que é muambeira tem anos, por acaso tinha trazido alguns frasquinhos da Venezuela.
-- Então você a levou praa casa?
-- Sim.
-- E aí transaram?
-- Mais ou menos. Não deu tempoo, sabe. Luana chegou bem na hora agá. A menina me lambia todo, Luana ficou puta. Foi bizarro.
-- Vocês se viram de novo?
-- Não. Nunca mais nos vimos deepois disso.
-- Então como você soube que ela faleceu?
--...
-- Hein?
-- E você, então, como sooube se só conversaram poucas vezes e por telefone?
-- Ta, ta, vou começar do princcípio. Tava escutando Black Sabath no bem bom com uma garota. Era uma mulher comprometida, disso eu sei, mas gostávamos de boa música, e estávamos lá, curtindo o som na maior inocência. Quando tocou o telefone pensei que seu noivo ou sei lá o que o cara era dela, poderia ter finalmente nos encontrado. Sabe como são os paranóicos. De nervosismo ela saiu correndo, até esqueceu suas velas pretas e seu guarda chuva.
-- Garota estranha.
-- Pois é.
-- O telefone continuava tocando quanddo ela bateu com força o portão da rua. Atendi ao telefone. Foi aí que fiquei puto. "Alô" disse aquela voz meio rouca com um sotaque que eu não consegui decifrar. "Que foi" respondi. "O Lucas ta aí?" "Lucas?" "Quem ta falando?" "Meu nome é Jonas, aqui não tem nenhum Lucas não"."Estou te incomodando?" "Está, você não sabe o quanto!!" "Pra mim você não significa nada, Jonas, você pra mim é uma reles titica."
-- Não entendi nada.
-- O que ela curtia mesmo era dar uns bons trotes. No início eu ficava puto e desligava toda vez que era ela. Aí ela começou a lotar minha secretária eletrônica de porras, caralhos, filhos-da-puta e alguns palavrões estrangeiros dos quais nunca tinha ouvido falar. Isso foi gerando um tipo de intimidade negativa com o tempo. Até que resolvi não usar mais telefone e isso acabou me rendendo frutos.
-- Como assim? Vocês ficaram amiigos?
-- Sem os outros me ligando e me encheendo o saco comecei a escrever mais do que já escrevia. Hoje sou um escritor de verdade, sabe, não fico mais mandando textinhos pra zines porqueiras.

Os dois se calaram então. As pessoas iam chegando e se ajeitando pra ver o corpo arrumado no caixão. O sol machucava a todos, menos a ela, que ia sendo sem reclamar cada vez mais assada. Uma japonesa vestida de preto jogara uma rosa branca que por pouco não atingira os olhos abertos. Sabia-se que era desejo da falecida ser enterrada de olhos abertos. Os olhos doados foram substituídos por bolotas de vidro quase convincentes. Houve quem achasse aquilo uma ofensa.

-- Onde já se viu arremessar uma rosa espinhuda daquele jeito bem nos olhos da pobrezinha. Disse a senhora que segurava um guarda sol.
-- Uff, está quente... Deixa prra lá, mãe, ela ta morta mesmo.
-- Cadê o respeito, menino?
-- Mas pra que respeito, mamãe,, que que ela trouxe de bom pra gente?
-- Ora, ora, como todo ser humano ela merece respeito. Morreu tão nova, coitada, será que viveu direitinho? Talvez se não tivesse me dado o spray tivesse sobrevivido. Pobre coitada. Tão prestativa me dando o sprayzinho. Usei no cachorro e funcionou supimpa mesmo!! Mas que diabos...
-- Que foi agora, mãe?
-- Por que não arrumaram umas rroupas mais adequadas. Que coisa mais... bizarra...
-- A idéia era essa, senhora. DDisse chegando perto a mesma japonesa que havia jogado a rosa.
-- Quem é você?
-- Não sabe quem sou? Nã;o conhece minha grife? Foi um trabalhão costurar esse vestido coberto de cascas de ovo. Não é sofisticado?
-- Achei de um extraordinário mmau gosto!! Disse a velha.
-- Era sua filha?
O menino sussurrou uma risadinha.
-- Fica quieto, menino. Não souu mãe dela e nem de ninguém.
-- Mãe... Disse o menino.
-- Cale essa boca e mantenha o respeitto. Garotinho mal criado.

Do outro lado Luana sorriu para a japonesa. Mexeu com os lábios sutilmente pra dizer "t e a m o s a d a". A japonesa pareceu não entender, mas sorriu assim mesmo. As três mulheres do canto começaram a gargalhar enquanto sacodiam, como se fosse champagne, garrafas de cachaça. Pérolas foram arremessadas por alguém que estava próximo á cova. Um sujeito pálido se aproximou sorrateiro e tocou a mão morta da menina vestida de ovo que descansava pra valer.

-- Maldito!! Disseram alguns, desaprovando o ato do sujeito.

O padre se aproximou, de cabelos longos e óculos, mais jovem do que se esperava. Um cachorrinho o acompanhava, alegre, e rosnara quando passou perto da senhora com o menino. O único menino que do outro lado observava começou a sorrir. A mãe mandou que continuasse solene. Com olhar confuso, o sacerdote cochichou alguma coisa com uma das três excêntricas. Alguém mordera um pêssego e rompeu o silêncio. Um tapa bem dado estremecera a respeitosa posição do padre que olhava agora ainda mais confuso para toda aquela gente.

-- Que pouca-vergonha, disse a mais velha das três bêbadas, por acaso não sabe nem o nome da garota por quem veio rezar?
-- A senhora poderia ser um pouco maiss delicada e não bater com tanta força num homem de deus, como eu, veja bem, não sei direito o que está acontecendo, chamaram-me ás pressas, mas nem sei ao certo como vim parar aqui, como é que vou saber o nome desta bizarrona aí? Peraí, por que falei deus com d minúsculo?

As três velhas se puseram a gargalhar. A multidão se alvoroçava. O menino pegara o cão que não parava de latir e o levou ás pressas pra detrás de um sepulcro, gargalhando como um cramundonguezinho. Sada se aproximou de Luana quase como uma gata, roçando-a quase discreta. Lucas olhava com raiva a japonesa que dava em cima de sua ex-namorada, "malditas japonesas" pensava. Enquanto Luana dava uma piscadela para Jonas, que desviava seu olhar para outra direção e assim dava de cara com os olhos emudecidos do maldito, que se agachava para pegar algo no chão. O sol, em seu ápice, fazia luzir os olhos da morta e as três davam ainda mais risadas.

-- Gente, mas que loucura, hein? Disse a mãe do menino enquanto saia em sua busca.
-- Acalmem-se, acalmem-se que tenho dee fazer meu trabalho. Vamos rezar. POFT. Uma pedra o derrubara.
-- Rezar é para os fracos. Disssera o autor da agressão se levantando.

As três saíram pra ajudar a mãe do menino e repetiam incessantemente que o cachorro seria delas, ou então o menino. Na confusão as duas amantes correram para uma cova aberta que estava longe da visão de todos e se beijaram como se jamais fosse pra sempre. Jonas dera uma cusparada no rosto da morta enquanto que Lucas lhe espirrava nos olhos um jato do spray que levava consigo. Jonas gritava que seus olhos ardiam. O restante da multidão prosseguia no espancamento do padre que gritava pelo amor de Deus que cessassem esta grandiosa falta de respeito. O maldito acendeu seu último cigarro. Os olhos da morta transluziam-se, generosos.