espaço da ausência, de fabiano moreira
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Onde cada partícula do viver é saudade. A percepção pura e ajustada de que estamos escorrendo pelas bocas-de-lobo. (É a morte quem toca a campainha?) Quem terá coragem de contemplar o olhar que nos olha de fora (pelo olho mágico)? Pois naquela casa reinava absoluto o entardecer do sigilo. Não, nada de brisa, nem grilos de roça, nem cheiro de cabras, nem sombra das frutas, nem infâmias, nem ternura, nem acidentes domésticos. Tudo saqueado no que antes havia sido (o coração) um sítio. Como aquilo poderia ter acontecido? (Não) não se podia contar. Não restou quem pudesse dizer (não). Só restaram evidências. No lado oposto ao espelho que se sobressaia no leste: O outro quadrante da sala, onde a lareira aconchegava pequeninos torrões de cinzas, alguns fragmentos de madeira úmida, no emaranhado de gravetos pretos, alguns bonecos de palha descabelados, semigrelhados por chamas recentes. Sobre a lareira uma cabeça de boi enfeita o ininfeitável. Seus olhos murchos se fitavam no outro lado, abrangendo. Também outros cantos da sala abrangiam estes perscrutáveis olhos. Um vazo e uma flor (de plástico). Uma mesinha de pedra, as pernas viradas para o teto, onde parecia haver um grande candelabro, desses que acrescentam encanto a todos os tipos de festas. A ausência da luz deslustrava o que sobrara das pratarias. Colherinhas, dessas de mexer chá (de campim-da-lapa), distribuídas irregularmente, do centro á lareira. O que estariam fazendo ali? Na cozinha estavam mais colheres. Uma faca melada de geléia, ao sabor de cinco formigas encrencadas. Uma panela, onde cabia o Atlas, moldada para um clã inteiro, exibia sua vaziêz. Pela quantidade de pratos quebrados a comida ali devia ter sido farta e saborosa. O (imenso) armário de bebidas estava destituído de alegrias. Um livro de contos de fada se esparramava sobre o que fora a cama de uma menina. Nas páginas 12 e 13 podia-se ver um castelo nas nuvens, destes que já não existem mais (nem mesmo nos sonhos dos bebês mais fofos). Logo abaixo na página: "A imperatriz Diáboa se debruçava na janela a ver nuvens. Entristecia-se por estar escondida a glória de Parádeisos. O castelo parecia se mover para o oeste, o que jamais havia acontecido. Rezava á todas as luas por um príncipe herói ou encantada madrinha que viesse lhe trazer esclarecimento, socorro e um pouco de alento. À medida que a noite se aproximava daquele velho sítio morto, mais difícil ficava ver o desenho, quanto mais as letras do volume. O vento podia mudar as páginas, mas não mudava. Sem ninguém para lê-las o livro não funcionava e se enguiçara. Seus adjetivos já não enfeitavam mais, seus substantivos jaziam paralisados no intervalo comercial do limbo. Rolos de tricô que há muito desistiram exibiam a última saia. Inacabada e vermelha, abundante de girassóis bordados, em potencial. O jornal nacional passaria nesse horário. A tv estava morta. Então, o escuro tomou o lugar do barulho e fez da casa uma festa de sombras imóveis. Os retratos na parede estavam sem nome, os perfis apagados. Só restavam montanhas através das janelas abertas, mais parecendo gordos cavalos doentes (capados), deitados (chapados) sob o céu das estrelas: seu delírio incessante de todas as noites. O Buda de jade meditava necessariamente nessa direção, decapitado sobre a estante. A cabeça largava-se (estatelada) perto de uma (abandonada) bota. Então a quietude chorou expectativas. Os aplausos do nada eram erudição. O jeans estendido sobre a cadeira... (Movia-se) (A perna esquerda da calça) Ensaiava um reflexo... Silêncio (de novo)... "Shhhhhhh" desdizia a mudez... A calça parou novamente, a ilusão tropeçou. Até que da boca, surgiu. Da boca da calça sorriram dois vitoriosos olhos. A casa sentiu seu arrastar e a escuridão (exausta) lhe envolveu em carícias de paz. A serpente cruza a sala sem deixar rastros, resolvendo fazer seu ninho bem aqui, na desértica abundância deste espaço. Aqui fará sua cultura (esta serpente). |
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