passagem pelo centro de degustação literária, ensaio de Marcos Nunes
Em um livro denominado POR QUE LER OS
CLÁSSICOS, Ítalo Calvino faz considerações
interessantes acerca da classificação de um livro como
tal, um clássico. A literatura contemporânea não produz mais clássicos. A classificação de uma bibliotecária, ao arranjar estantes apenas para a literatura contemporânea, deveria ser: LIVROS NÃO ESCRITOS MAS JÁ LIDOS. Assim, sem mais, a estante vazia, sem destinação, sem ser ocupada pelos novos romances, novos contos, nova poesia. Porque são coisas que praticamente não existem. Sim, existem ainda alguns poucos bons escritores, alguns poucos bons livros, páginas que percorremos com ansiedade e que parecem captar, através das palavras, o cerne da matéria que tratam, revelando-a desde a raiz, a nascente, o disparo do neurônio que percutiu a imagem extrapolada em signos lingüísticos. Mas existe o demônio do rótulo, do chavão, a caracterização, a teorização e a denominação: pós-moderno. Este autor é um autor pós-moderno. E o que caracteriza o autor pós-moderno? A re-revitalização do concretismo, da linguagem cifrada, do trocadilho, da citação, da imersão da literatura nas artes plásticas para criação de um híbrido semelhante ao texto publicitário, ao anúncio de televisão, à seqüência de suspense de um filme. Temos a repetição de fórmulas consagradas ditas com ironia, o jeito blasé com que são coligidas passagens alheias, para impressionar aqueles que ainda se impressionam quando um autor esgrime seu repertório, procurando tão somente a cumplicidade do leitor, parecendo dizer: sim, nós dois somos espertos, nesse mundo decadente, oh, como poderemos gozar nossos prazeres? LIVROS NÃO ESCRITOS MAS JÁ LIDOS, livros que inventaram o umbilical literário, vivem de paráfrases e alusões, perseguindo o ritmo não literário, mas cinematográfico e publicitário. Livros que alardeiam suas influências, que pagam o preço da notoriedade transformando o autor em figurinha fácil do jet-set, eterno candidato à imortalidade na ABL ou ao esquecimento no Nobel. Não mais um Livro de Areia, mas um Livro de Poeira, um Livro Etéreo, evanescente. Bolha de sabão, perfume de cidra barata. Refém do mercado, a literatura também alimenta rivalidades, vaidades sem fim e com preço marcado. Às vezes mais vale um livro quanto mais ele trata de destruir reputações alheias. Saltam biografias não-autorizadas, romances que mal disfarçam, através de nomes trocados mas semelhantes, sua dedicada "inspiração" em vidas alheias, mas necessariamente famosas. Teorias que desbancam a teoria imediatamente anterior, que será desbancada pela imediatamente posterior, ad infinitum. Não ficam sequer sem voz os despossuídos. Eles também publicam, são resenhados, criticados, até elogiados. Há mercado para a literatura que vai às fontes podres da vida. Para a literatura que não é literária, que procura transcrever o mais secamente possível vidas que nada valeriam. Nada contra o trato com as relações sociais que escravizam a maior parte das pessoas. Mas será que se tratam dessas relações sociais ou apenas de um gemido que rende alguns dividendos? Quebrados os ovos, farão omeletes ou tentarão colar as cascas? Onde está a verdadeira "literatura desagradável"? Em lugar nenhum, ou quando muito emerge acompanhada de um manual de instruções, um aviso: "Cuidado, esse livro contém extravasamentos classistas. Não é recomendável a pessoas sensíveis". Mas acompanhamos a literatura e lemos esses livros, livros escritos desde sempre, livros que tantas vezes passeiam pela única paisagem criada pela própria literatura, que se quer mais contemporânea mas que consegue, se tanto, dar-nos uma pálida idéia do que criaram um dia Laurence Sterne, François Rabelais, Miguel de Cervantes e tantos outros, clássicos que ocupam inúmeras estantes empoeiradas. Como sabemos nós da existência deles? Verniz adquirido de forma simples: lendo resenhas, pequenos ensaios, trechos selecionados. A revista Veja já ensinou a seu público: impressione a sua audiência citando Freud, Dostoiévski, Machado de Assis, sem nunca tê-los lido. Selecione passagens, é batata, prestígio imediato. Aguardamos pelos novos livros, os ainda não escritos, que apesar disso já possuem sua estante. Uma séria bibliotecária aguarda o momento de abrir sua sala e nos propiciar a oportunidade de lê-los. Talvez até diga o nome de um autor ou de outro, assim: "Aqui estará o próximo livro do Rubem Fonseca". Pronto, já o lemos. Quando vamos embora, o que resta é a lembrança da contemplação de uma estante vazia, de livros que nunca serão ali guardados. Livros não escritos, mas já lidos, que carregam lembranças de outros, citações que se perdem em frases curtas, digestivas. O que vamos comer agora? |