histórias de cronópios e de famas, de Julio Cortázar

  Manual de Instruções

Instruções-exemplos sobre a forma de sentir medo

Numa aldeia da Escócia vendem-se livros com uma página em branco perdida em algum lugar do volume. Se o leitor desembocar nessa página ao soarem as três da tarde, morre.

Na praça do Quirinal, em Roma, há um lugar conhecido pelos iniciados até o século XIX e do qual, em noites de lua cheia, vêem-se mexer lentamente as estátuas dos Dioscuros que lutam com seus cavalos empinados.

Em Amalfi, no fim da zona costeira, há um dique que penetra pelo mar e pela noite. Ouve-se um cão latir para além do último farol.

Um senhor está pondo pasta de dentes na escova. De repente, vê, deitada de costas, uma diminuta imagem de mulher, feita de coral ou talvez de miolo de pão pintado.

Ao abrir o armário para apanhar uma camisa, cai um antigo calendário que se desmancha, se desfolha, cobre a roupa-branca com milhares de sujas traças de papel.

Sabe-se de um caixeiro viajante que começou a sentir dor no pulso esquerdo, justo debaixo do relógio de pulso. Ao arrancar o relógio, o sangue jorrou: a ferida mostrava os sinais de uns dentes muito finos.

O médico acaba de nos examinar e nos tranquiliza. Sua voz grave e cordial precede os remédios, cuja receita ele escreve agora sentado à mesa. De vez em quando levanta a cabeça e sorri, animando-nos. Não é nada de mais e daqui a uma semana estaremos passando bem. nos refestelamos no sofá, felizes, e olhamos distraidamente em volta. De repente, na penumbra debaixo da mesa, vemos as pernas do médico. Ele arregaçou as calças até as coxas e veste meias de mulher.

 

Instruções para subir uma escada

Ninguém terá deixado de observar que frequentemente o chão se dobra de tal maneira que uma parte sobe em ângulo reto com o plano do chão, e logo a parte seguinte se coloca paralela a esse plano, para dar passagem a uma nova perpendicular, comportamento que se repete em espiral ou em linha quebrada até alturas extremamente variáveis. Abaixando-se e pondo a mão esquerda numa das partes verticais, e a direita na horizontal correspondente, fica-se na posse momentânea de um degrau ou escalão. Cada um desses degraus, formados, como se vê, por dois elementos, situa-se um pouco mais acima e mais adiante do anterior, princípio que dá sentido à escada, já que qualquer outra combinação produziria formas talvez mais bonitas ou pitorescas, mas incapazes de transportar as pessoas do térreo ao primeiro andar.

As escadas se sobem de frente, pois de costas ou de lado tornam-se particularmente incômodas. A atitude natural consiste em manter-se em pé, os braços dependurados sem esforço, a cabeça erguida, embora não tanto que os olhos deixem de ver os degraus imediatamente superiores ao que se está pisando, a respiração lenta e regular. Para subir uma escada começa-se por levantar aquela parte do corpo situada embaixo à direita, quase sempre envolvida em couro ou camurça, e que salvo algumas exceções cabe exatamente no degrau. Colocando no primeiro degrau essa parte, que para simplificar chamaremos de pé, recolhe-se a parte correspondente do lado esquerdo (também chamada pé, mas que não se deve confundir com o pé já mencionado), e levando-se à altura do pé faz-se que ela continue até colocá-la no segundo degrau, com o que neste descansará o pé, e no primeiro descansará o pé. (Os primeiros degraus são os mais difíceis, até se adquirir a coordenação necessária. A coincidência de nomes entre o pé e o pé torna difícil a explicação. Deve-se ter um cuidado especial em não levantar ao mesmo tempo o pé e o pé.)

Chegando dessa maneira ao segundo degrau, será suficiente repetir alternadamente os movimentos até chegar ao fim da escada. Pode-se sair dela com facilidade, com um ligeiro golpe de calcanhar que a fixa em seu lugar, do qual não se moverá até o momento da descida.

 

Estranhas Ocupações

Simulacros

Somos uma família estranha. Neste país onde as coisas se fazem por obrigação ou fanfarrona, gostamos das ocupações livres, das tarefas sem importância, dos simulacros que de nada adiantam.

Temos um defeito: a falta de originalidade. Quase tudo o que resolvemos fazer foi inspirado – digamos francamente, copiado – de modelos célebres. Se contribuímos com alguma novidade é sempre inevitável: os anacronismos ou as surpresas, os escândalos. Meu tio mais velho diz que nós somos como as cópias de papel-carbono, idênticas ao original, salvo que de outra cor, outro papel, outra finalidade. Minha terceira irmã se compara ao rouxinol mecânico de Andersen; seu romantismo dá náuseas.

Somos muitos e moramos na Calle Humboldt.

Fazemos coisas, mas contar é difícil porque falta o mais importante, a ansiedade e a expectativa de estar fazendo coisas, as surpresas tão mais importantes que os resultados, os fracassos em que toda família cai no chão feito um castelo de cartas e durante dias e dias não se escuta mais do que lamentações e gargalhadas. Contar o que fazemos é apenas uma forma de preencher os vazios inevitáveis, porque às vezes estamos pobres ou presos ou doentes, às vezes morre alguém ou (custa dizê-lo) alguém trai, renuncia, ou entra para a Direção do Imposto de Renda. Mas disto não se deve deduzir que vamos mal ou que somos melancólicos. Moramos no bairro de Pacífico e fazemos as coisas toda vez que podemos. Somos muitos a ter idéias e vontade de levá-las à prática. Por exemplo o patíbulo, até hoje ninguém chegou a acordo sobre a origem da idéia, minha quinta irmã afirma que foi um de meus primos irmãos que são muito filósofos, mas meu tio mais velho sustenta que lhe ocorreu depois de ler um romance de capa e espada. No fundo pouco nos importa, o negócio é fazer as coisas, e por isso eu as conto quase sem vontade, só para não sentir tão de perto a chuva desta tarde vazia.

A casa tem um jardim na frente, coisa rara na Calle Humboldt. Não é maior que um pátio, mas fica três degraus acima da calçada, o que lhe dá um vistoso aspecto de plataforma, localização ideal para um patíbulo. Como o muro é de alvenaria com grade de ferro, pode-se trabalhar sem que os transeuntes estejam por assim dizer metidos dentro da casa: eles podem se encostar no muro e assim permanecer durante horas, que isso não incomoda. "Começaremos na lua cheia", disse meu pai. Durante o dia íamos pegar madeiras e ferros nos depósitos de demolições da Avenida Juan B. Justo, mas minha irmãs ficavam na sala treinando o uivar dos lobos, depois que minha tia mais moça garantiu que os patíbulos atraem os lobos e os incitam a uivar para a lua. O suprimento de pregos e ferramentas corria por conta de meus primos; meu tio mais velho desenhava os planos, discutia com minha mãe e meu segundo tio a variedade e a qualidade dos instrumentos de suplício. Lembro-me do fim da discussão: decidiram-se severamente por uma plataforma bastante alta, sobre a qual levantariam uma forca e uma roda com um espaço livre destinado a torturar ou decapitar, conforme o caso. Meu tio mais velho achava isto muito mais pobre e mesquinho do que sua idéia original, mas as dimensões do jardim da frente e o custo dos materiais sempre limitam as ambições da família.

Começamos a construção num domingo à tarde, depois de comer raviólis. Embora nunca nos haja preocupado o que possam pensar os vizinhos, era evidente que alguns curiosos supunham que íamos construir um ou dois quartos para aumentar a casa. O primeiro a surpreender-se foi Dom Cresta, o velhinho de defronte, que veio perguntar para que instalávamos semelhante plataforma. Minhas irmãs se reuniram num canto do jardim e soltaram alguns uivos de lobo. Juntou bastante gente, mas nós continuamos trabalhando até a noite, conseguindo acabar a plataforma e as duas escadinhas (uma para o sacerdote e outra para o condenado, que não devem subir juntos). Na segunda-feira, parte da família foi para seus respectivos empregos e ocupações, já que é preciso morrer de alguma coisa, e o resto começou a levantar a forca, enquanto meu tio mais velho consultava antigos desenhos para a roda. Sua idéia consistia em colocar a roda o mais alto possível sobre uma base ligeiramente irregular, por exemplo, um tronco de álamo bem desbastado. Para lhe ser agradável, meu segundo irmão e meus primos foram buscar um álamo na camioneta; enquanto isso, meu tio mais velho e minha mãe encaixavam os raios da roda no cubo e eu preparava um reforço de ferro. Nesses momentos nós nos divertíamos enormemente porque de toda parte se ouviam pancadas do martelo, minhas irmãs uivavam na sala, os vizinhos se amontoavam na grade trocando impressões, e entro o solferino e o malva do entardecer surgia o perfil da forca e via-se meu tio mais moço, a cavalo, fixando no travessão o gancho e preparando o nó corrediço.

A essa altura dos acontecimentos as pessoas da rua não podiam deixar de perceber o que estávamos fazendo, e um coro de protestos e ameaças nos estimulou agradavelmente a encerrar a jornada com a montagem da roda. Vários atrevidos pretenderam impedir que meu segundo irmão e meus primos pusessem para dentro de casa o magnífico tronco de álamo que traziam na camioneta. Foi feito um esforço tremendo pela família toda, que, puxando disciplinadamente o tronco, introduziu-o no jardim juntamente com uma criancinha agarra às raízes. Meu pai em pessoa devolveu a criança a seus exasperados pais, passando-a cortesmente pela grade, e enquanto a atenção se concentrava nessas alternativas sentimentais, meu tio mais velho, ajudado por meus primos irmãos, calçava a roda no extremo do tronco e começava a levantá-la. A polícia chegou no momento em que a família, reunida na plataforma, comentava favoravelmente o bom aspecto do patíbulo. Só minha terceira irmã estava junto da porta, e a ela é que coube dialogar pessoalmente com o subcomissário; não foi difícil convencê-lo de que estávamos trabalhando dentro de nossa propriedade, numa obra a que só o uso poderia conferir um caráter inconstitucional, e que os comentários da vizinhança eram produto do ódio e fruto da inveja. A queda da noite nos salvou de perder mais tempo.

Jantamos à luz de um lampião de querosene na plataforma, espionados por uma centena de vizinhos rancorosos; nunca o leitão temperado nos pareceu mais delicioso e mais negra e doce a morcela. Uma brisa do norte balançava suavemente a corda da forca; a roda rangeu uma ou duas vezes, como se já os urubus tivessem pousado nela para comer. Os curiosos começaram a ir embora, resmungando vagas ameaças; ficaram umas vinte ou trinta pessoas coladas à grade, parecendo esperar por alguma coisa. Depois do café apagamos o lampião para dar vez à lua, que subia pelas balaustradas do terraço; minhas irmãs uivaram e meus primos e tios percorreram lentamente a plataforma, fazendo com seus passos tremer os alicerces. No silêncio que se seguiu, a lua ficou à altura do nó corrediço, e na roda pareceu estender-se uma nuvem de bordas prateadas. Nós olhávamos contentes que dava gosto, mas os vizinhos murmuravam na grade, como à beira de uma decepção. Acenderam cigarros e foram indo embora, uns de pijama e outros mais devagar. Ficou a rua, um apito de guarda-noturno ao longe, e o ônibus 108, que passava de tanto em tanto tempo; nós já tínhamos ido dormir e sonhávamos com festas, elefantes e vestidos de seda.

 

Os pousa-tigres

Muito antes de levar à prática nossa idéia, sabíamos que o pouso dos tigres nos colocava diante de um duplo problema, sentimental e moral. O primeiro não se referia tanto ao pouso como ao próprio tigre, na medida em que esses felinos não gostam que a gente os hospede, e recorrem a todas as suas energias, que são enormes, para resistir. Caberia nessas circunstâncias enfrentar o temperamento desses animais? Mas a pergunta nos transferiria ao plano moral, onde toda ação pode ser causa ou efeito de esplendor ou de infâmia. À noite, em nossa casinha da Calle Humboldt, meditávamos diante das terrinas de arroz-doce, esquecidos de polvilhá-las com canela e açúcar. Não estávamos verdadeiramente certos de poder pousar um tigre, e o lamentávamos.

Decidiu-se afinal que pousaríamos um, com o único objetivo de ver funcionar o mecanismo em toda sua complexidade, e que mais tarde avaliaríamos os resultados. Não falarei aqui da obtenção do primeiro tigre; foi um trabalho sutil e penoso, um corre-corre por consulados e drogarias, uma complicada trama de passagens, cartas aéreas e trabalho de dicionário. Certa noite, meus primos chegaram cobertos de tintura de iodo: era o sucesso. Bebemos tanto vinho que minha irmã mais moça acabou tirando a mesa com o ancinho. Nessa época éramos mais moços.

Agora que a experiência deu os resultados conhecidos, posso facilitar detalhes do pouso. Talvez o mais difícil seja o que se refere ao ambiente, pois se requer um quarto com o mínimo de móveis, coisa difícil na Calle Humboldt. Coloca-se o dispositivo no centro: duas tábuas atravessadas, um jogo de varetas elásticas e alguns potes com leite e água. Pousar o tigre não é muito difícil, embora a operação possa fracassar e seja necessário repeti-la; a verdadeira dificuldade começa no momento em que, já pousado, o tigre recupera a liberdade e opta – de diversas maneiras possíveis – por exercê-la. Nessa etapa, que chamarei intermediária, as reações de minha família são fundamentais; tudo depende de como se comportem minhas irmãs, da habilidade com que meu pai torne a pousar o tigre, utilizando-o ao máximo como um oleiro o seu barro. A menor falha levaria à catástrofe, os fusíveis queimados, o leite derramado no chão, o horror de uns olhos fosforescentes riscando as trevas, os jatos mornos a cada patada; recuso-me sequer a imaginá-lo, visto que até agora temos pousado o tigre sem consequências perigosas. Tento o dispositivo como as diferentes funções que todos devemos desempenhar, do tigre até meus primos segundos, parecem eficazes e se articulam harmoniosamente. Para nós o fato em si de pousar o tigre não é importante, e sim que a cerimônia se realize até o fim sem erros. É necessário que o tigre concorde em ser pousado, ou que o seja de forma tal que seu assentimento ou sua recusa careçam de importância. Nos instantes que somos tentados a chamar cruciais – talvez pelas duas tábuas, talvez por um simples lugar-comum –, a família sente-se possuída de uma exaltação extraordinária; minha mãe não consegue disfarçar as lágrimas, e minhas primas irmãs trançam e destrançam convulsivamente os dedos. Pousar o tigre tem algo de encontro total, de alienação perante um absoluto; o equilíbrio depende de tão pouco e pagamos um preço tão alto, que os breves instantes que se sucedem ao pousar e que decidem sua perfeição nos arrebatam de nós mesmos, arrasam com a tigridade e com a humanidade num só movimento imóvel que é vertigem, pausa e chegada. Não há tigre, não há família, não há pouso. É impossível saber o que há: um tremor que não é desta carne, um tempo central, uma coluna de contato. E depois saímos todos para o pátio coberto, e nossas tias trazem a sopa como se algo cantasse, como se fôssemos a um batizado.

 

Matéria Plástica

Fim do mundo do fim

Como os escribas continuarão, os poucos leitores que no mundo havia vão mudar de profissão e adotar também a de escriba. Cada vez mais os países serão compostos por escribas e por fábricas de papel e de tinta, os escribas de dia e as máquinas de noite para imprimir o trabalho dos escribas. Primeiro, as bibliotecas transbordarão para fora das casas; então, as prefeituras resolvem (já estamos vendo tudo) sacrificar as áreas de recreação infantil para ampliar as bibliotecas. Depois sucumbem os teatros, as maternidades, os matadouros, as cantinas, os hospitais. Os pobres aproveitam os livros com tijolos, grudam-nos com cimento e constroem paredes de livros e moram em casebres de livros. Então acontece que os livros transbordam das cidades e entram nos campos, vão esmagando os trigais e os campos de girassóis, o Ministério da Viação mal consegue que os caminhos fiquem desimpedidos entre duas paredes altíssimas de livros. Às vezes uma parede cede e há espantosas catástrofes automobilísticas. Os escribas trabalham sem trégua porque a humanidade respeita as vocações e os impressos já chegam à beira do mar. O presidente da república telefona para os presidentes das repúblicas e propõe inteligentemente jogar no mar o excedente de livros, o que se faz ao mesmo tempo em todas as costas do mundo. Assim os escribas siberianos vêem seus impressos jogados no oceano glacial e os escribas indonésios, etc. Isso permite aos escribas aumentarem sua produção, porque volta a haver espaço na terra para armazenar livros. Não pensam que o mar tem fundo, e que no fundo do mar começam a amontoar-se os impressos, primeiro em forma de pasta aglutinante, depois em forma de pasta consolidante, e finalmente como um chão resistente embora viscoso, que sobe diariamente alguns metros e acabará por chegar à superfície. Então, muitas águas invadem muitas terras, produz-se uma nova distribuição de continentes e oceanos, e presidentes de diversas repúblicas são substituídos por lagos e penínsulas, presidentes de outras repúblicas vêem abrir-se imensos territórios a suas ambições, etc. A água do mar, tão violentamente obrigada a espalhar-se, evapora-se mais do que antes, ou procura repouso misturando-se aos impressos para formar a pasta aglutinante, a tal ponto que um dia os capitães-de-longo-curso percebem que seus navios avançam lentamente, de trinta nós descem para vinte, para quinze, e os motores arquejam e as hélices se deformam. Afinal, todos os navios param em diferentes pontos dos mares, encalhados na pasta, e os escribas do mundo inteiro escrevem milhares de impressos explicando o fenômeno, cheios de uma grande alegria. Os presidentes e os capitães resolvem transformar os navios em ilhas e cassinos, o público vai a pé, por cima dos mares de papelão, para as ilhas e os cassinos onde orquestras de música típica argentina e de música local amenizam o ambiente refrigerado e se dança até altas horas da madrugada. Novos impressos se amontoam à beira do mar, mas é impossível metê-los na pasta, e assim crescem muralhas de impressos e nascem montanhas à beira dos antigos mares. Os escribas percebem que as fábricas de papel e de tinta vão falir e escrevem com uma letra cada vez menor, aproveitando até os cantos mais imperceptíveis de cada papel. Quando a tinta acaba, escrevem a lápis, etc.; ao acabar o papel, escrevem em tábuas e ladrilhos, etc. Começa a difundir-se o hábito de intercalar um texto em outro para aproveitar as entrelinhas, ou se apagam com lâminas de barbear as letras impressas, para utilizar novamente o papel. Os escribas trabalham devagar, mas são em tal quantidade que os impressos já estabelecem uma nítida separação entre as terras e os leitos dos antigos mares. Na terra vive precariamente a raça dos escribas, condenada a extinguir-se, e no mar estão as ilhas e os cassinos, isto é, os transatlânticos onde se refugiaram os presidentes das repúblicas, e onde se celebram grandes festas e se trocam mensagens de ilha a ilha, de presidente a presidente, e de capitão a capitão.

 

Progresso e retrocesso

Inventaram um vidro que deixava passar as moscas. A mosca chegava, empurrava um pouco com a cabeça e pop, já estava do outro lado. Enorme, a alegria da mosca.

Tudo foi estragado por um sábio húngaro, quando descobriu que a mosca podia entrar mas não podia sair, ou vice-versa, por causa de quem sabe lá que besteira na flexibilidade das fibras daquele vidro que era muito fibroso. Em seguida inventaram o caça-moscas com um torrão de açúcar dentro, e muitas moscas morriam desesperadas. Assim acabou toda confraternização possível com estes animais dignos de melhor sorte.

 

O esmagamento das gotas

Eu não sei, olhe, é terrível como chove. Chove o tempo todo, lá fora fechado e cinza, aqui contra a sacada com gotões coalhados e duros que fazem plaf e se esmagam como bofetadas um atrás do outro, que tédio. Agora aparece a gotinha no alto da esquadria da janela, fica tremelicando contra o céu que a esmigalha em mil brilhos apagados, vai crescendo e balouça, já vai cair e não cai, não cai ainda. Está segura com todas as unhas, não quer cair e se vê que ela se agarra com os dentes enquanto lhe cresce a barriga, já é uma gotona que pende majestosa e de repente zup, lá vai ela, plaf, desmanchada, nada, uma viscosidade no mármore.

Mas há as que se suicidam e logo se entregam, brotam na esquadria e de lá mesmo se jogam, parece-me ver a vibração do salto, suas perninhas desprendendo-se e o grito que as embriaga nesse nada de cair e aniquilar-se. Tristes gotas, redondas inocentes gotas. Adeus gotas. Adeus.

 

Histórias de Cronópios e de Famas

O almoço

Com muito trabalho um cronópio conseguiu construir um termômetro de vidas. Alguma coisa entre termômetro e topômetro, entre fichário e curriculum vitae.

Por exemplo, o cronópio recebia em casa um fama, uma esperança e um professor de línguas. Aplicando suas descobertas, estabeleceu que o fama era infravida, a esperança paravida e o professor de línguas intervida. Quanto a si próprio, considerava-se ligeiramente supervida, mais por poesia que por verdade.

Na hora do almoço esse cronópio se divertia ouvindo os seus convidados falarem, porque todos achavam que estavam se referindo às mesmas coisas e não era assim. A intervida manejava abstrações tais como espírito e consciência, que a paravida ouvia como quem ouve chover – tarefa delicada. É evidente que a infravida pedia a todo momento queijo ralado, e a supervida trinchava o frango em quarenta e dois movimentos, método Stanley Fitzsimmons.

Na sobremesa, as vidas se cumprimentavam e iam às suas ocupações, e na mesa ficavam apenas pedacinhos soltos da morte.

 

História

Um cronópio pequenininho procurava a chave da porta da rua na mesa-de-cabeceira, a mesa-de-cabeceira no quarto de dormir, o quarto de dormir na casa, a casa na rua. Por aqui parava o cronópio, pois para sair à rua precisava da chave da porta.

 

Faça como se estivesse em casa

Um esperança construiu uma casa e colocou-lhe um azulejo que dizia: Bem-vindos os que chegam a este lar.

Um fama construiu uma casa e não colocou azulejo nenhum.

Um cronópio construiu uma casa e seguindo o hábito colocou no vestíbulo diversos azulejos que comprou ou mandou fabricar. Os azulejos eram dispostos de maneira a que se pudesse lê-los em ordem. O primeiro dizia: Bem-vindos os que chegam a este lar. O segundo dizia: A casa é pequena, mas o coração é grande. O terceiro dizia: A presença do hóspede é suave como a relva. O quarto dizia: Somos pobres de verdade, mas não de vontade. O quinto dizia: Este cartaz anula todos os anteriores. Se manda, cachorro.

 

Terapias

Um cronópio se forma em medicina e abre um consultório na Calle Santiago del Estero. Logo chega um doente e lhe conto como há coisas que doem e como de noite não dorme e de dia não come.

– Compre um buquê grande de rosas – diz o cronópio.

O doente se retira surpreso, mas compra o buquê e fica bom instantaneamente. Cheio de gratidão corre para o cronópio e, além de pagar a consulta, lhe dá de presente, fino testemunho, um belo buquê de rosas. Apenas ele sai, o cronópio cai doente, sente dores por todo lado, de noite não dorme e de dia não come.

 

Telegramas

Uma esperança trocou com sua irmã os seguintes telegramas, de Ramos Mejía a Viedma:

VOCÊ ESQUECEU AMARELO CANÁRIO. IDIOTA. INÉS.

IDIOTA VOCÊ. TENHO SOBRESSALENTE. EMMA.

Três telegramas de cronópios:

INESPERADAMENTE ENGANADO DE TREM EM VEZ 7.12 PEGUEI 8.24 ESTOU EM TERRA ESTRANHA. HOMENS SINISTROS CONTAM SELOS. LUGAR EXTREMAMENTE LÚGUBRE. NÃO ACREDITO APROVEM TELEGRAMA. PROVAVELMENTE FICAREI DOENTE. FALEI QUE DEVIA TRAZER SACO ÁGUA QUENTE. MUITO DEPRIMIDO SENTO-ME DEGRAU ESPERAR TREM VOLTA. ARTURO.

NÃO. QUATRO PESOS E SESSENTA OU NADA. SE DEIXAREM POR MENOS, COMPRE DOIS PARES, UM LISO E OUTRO LISTRADO.

ENCONTREI TIA ESTHER CHORANDO, TARTARUGA DOENTE. RAIZ VENENOSA, PARECE, OU QUEIJO MÁS CONDIÇÕES. TARTARUGAS ANIMAIS DELICADOS. MEIO BOBOS, NÃO DISTINGUEM. UMA PENA.