william wilson: juízo final
de marcos nunes

  Toda a trajetória atormentada de Edgar Allan Poe é o cerne de sua própria formação; mais que isso, que a formação conflitada de seu próprio país, de sua própria geração, das imaginações puritanas que, em delírio, criaram o que se convencionou chamar de literatura gótica, textos que emergem de um mundo sombrio, marcado por espectros que trazem em seu bojo o maior deles, que é o espectro da culpa, uma culpa cristianizada.

A doutrina protestante, dominante nos EUA, apesar de toda dedicação, não conseguiu erradicar do território do país, bem como das práticas cotidianas, o pecado, a ação dominada pelo satânico; o martírio protestante desce mais fundo do que o martírio católico-apostólico-romano; mais que condenar a alma do pecador ao inferno, ele remói em fel toda a vida, tudo que é vivo, tudo que é vida. Espíritos endemoniados saltam de tumbas, de árvores, das sombras e também, e até, da própria luz.

William Wilson, o personagem do conto homônimo, e seu duplo, são a síntese do burlador estadunidense, que difere do mais famoso, o Don Juan, mais picaresco e dotado de humor, apesar da trafegar nas mesmas ruínas de um poder que também será a fonte de seu desespero final.

Desde criança, Wilson tem consciência de sua classe, de sua casta, de seus privilégios, e da força que tem a representação para a construção de um caráter dominador, que se sobrepõe ao cotidiano porque perverte suas leis, observando-as sob um prisma meramente funcionalista. É hipócrita e prepotente, sendo característico de sua classe a hipocrisia e a prepotência. Sua posição é de ascendência com relação a seus pares e ele, julga, também é superior ao seu duplo, o outro William Wilson, o bastardo. Este, porém, longe do estigma que o condena à existência marginal, é na verdade o depósito moral do primeiro William, e sua existência é um estorvo tão monumental quanto impossível é superá-lo.

O tema do vigarista é caro à época em que Poe escreveu seu conto; Hermann Melville escreveu o tratado do gênero, denominado pura e simplesmente O Vigarista, onde são examinadas diversas burlas que são um franco demonstrativo do lodo moral que, para Melville, é a base de toda a sociedade, e não apenas: para o escritor, há algo no que poderíamos chamar de natureza humana de intrinsicamente mal, que denota a estirpe decaída da humanidade, desde a expulsão do Éden até a dominação das ilhas do Taiti, para ele o local correto para o nascimento de Jesus, pela beleza local e pureza que vislumbrava nos seus habitantes, apesar de seus hábitos sexuais nada ortodoxos. Ou talvez até por causa deles mesmos...

O que observamos, em William Wilson, é a radicalização da proposta do burlador, do vigarista, do manipulador que, novamente como Don Juan, terá seu destino encerrado no confronto final com suas grandes culpas. O inferno de Wilson é sua própria consciência, sua própria lógica que, perversa, reconhece a versão ética e moral de seu duplo, não resistindo sucumbir a ele; quando o elimina, o personagem dá a palavra final a si mesmo, é um condenado, é o homem em sua inteireza, cuja culpa pesa-lhe até no momento da morte, que ele teme como revelação de sua própria condição de mísera humanidade, incapaz de sobrepujar seus males de origens e toda a formação que lhe decorre. A degenerescência é a sua marca, mas a consciência guarda-lhe vestígios de uma força moral que mantém sua fragilidade, mesmo sob a aparência mais potente e irrestrita.

Sabemos que, como William Wilson, o personagem, Poe também viveu entre muitos drinques a mais e rodas de baralho; sabemos o quanto ele mentiu para preservar seu modo de vida, e o quanto ele também trabalhou para mantê-lo, tudo sob o manto do mais irredutível desespero. A alegria, em Poe, é fruto raro, talvez mesmo inecontrável; tudo que lhe parece desejável e nobre é inatingível, todas suas ambições resultam frustradas. Filho abandonado, enjeitado, tendente à melancolia e às idealizações sombrias, Poe sucumbiu aos seus sonhos, à sua busca perpétua por um sentido que o permitisse superar sua quase bastardia, sua patente subcondição social, mesmo depois que foi acolhido por uma família de algumas posses. Como William, Poe dispendeu fortunas, andou entre jogos, trapaças e empreendimentos mais ou menos idôneos sem nunca libertar-se da nódoa que trazia em si, como um duplo, a lhe indicar a certeza do fracasso, a inevitabilidade da morte como submissão a uma vergonha que está bordada em seu peito como uma Letra Escarlate, título de um outro romance chamado de gótico, de autoria de Nathaniel Hawthorne.

Sobre todos os discursos puritanos encontra-se a culpa, a culpa primordial, a culpa nunca perdoada, a culpa que só se elimina com a ventura de uma graça recebida pelo seu deus. Mas como tornar-se digno dessa graça ? Não há como: por mais que respeite as leis das escrituras sagradas, a graça só alcança o homem por um acaso, um acaso que está nas mãos desse deus. Ações que observem as prescrições bíblicas são bem vindas, mas podem ser inúteis, porque a consciência divina alcança e contém a humana, e sabe o quanto está um homem a charfurdar na imundície adâmica; do mesmo modo, mesmo praticante contumaz de crimes, um homem pode ser tocado pela graça porque sua consciência é pura, e todas suas más ações provém de razões humanas, que não conspurcam a consciência divinizada.

Mesmo muito além do fundamentalismo protestante, e ciente da arquitetura kantiana, Poe dá vazão aos elementos que encontra, às preocupações de seus contemporâneos, que também são as suas, e compõe William Wilson como demonstrativo do alcance moral de uma superconsciência, de uma supraconsciência que, se não redime o personagem, assevera-lhe o quanto o domínio da fraude é ilusório, o quanto as manchas morais vão liquefazendo as perversões para revelar os fundamentos morais inextirpáveis, mesmo de uma criatura que urde um programa permanente para ludibriar e contestar os valores que não servem às suas ambições e domínios.

Impõe-se a William o juízo, a razão, os princípios que ele viola contumazmente; impõe-se a William a literatura de sua época, que fez dele personagem de um conto inteiramente ambientado nas sombras de um universo cuja culpa aguarda julgamento; para os que crêem, um juízo final conforme expõe-se no Apocalipse; para todos, um juízo mortal que não pode ser destruído senão pela devastação de toda humanidade e de seus valores que, no final, sob o gelo incandescente da forma literária, chocam-se com o que se afigura como transcendente, dando nascitura à culpa, um espectro cortante como a espada que decepa a cabeça de Wilson, condenando-o por sua incapacidade de não ser mais que ele mesmo, o seu duplo.