nos tempos de portinari
depoimento de carlos drummond de andrade

  "Pouco depois que vim para o Rio, tive a oportunidade de conhecer Portinari. Não me lembro quem foi que nos aproximou dele, a mim e ao ministro Capanema, de quem eu era secretário. O fato é que logo se estabeleceu uma relação muito duradoura, muito forte. Portinari foi o primeiro artista com quem eu convivi. Até então eu tinha tido contatos mais superficiais com pintores que iam fazer exposições em Minas Gerais e, no Rio de Janeiro, com pintores que frequentavam o gabinete do ministro. Mas essa gente não me causava impressão.

O contato com Portinari foi o que me deu de fato a possibilidade de conhecer um grande artista e também de assistir ao desenvolvimento de sua ação criadora, porque Portinari não fazia mistério do seu trabalho. É claro que precisava de solidão, de recolhimento, mas a todo momento que se chegava à casa de Portinari ele tinha um quadro a mostrar, que fora pintado naquele dia, quase naquela hora. Portinari foi mais companheiro dos poetas do que de outros artistas. Basta dizer que pintou o retrato de Manuel Bandeira, de Mário de Andrade, de Murilo Mendes, de Jorge Lima, de Dante Milano, de Filipe d`Oliveira, de Augusto Meyer, de Adalgisa Nery e o meu. Nenhum de nós tinha condições econômicas de encomendar um retrato ao Portinari. Éramos uns pobres-diabos. Ele não se limitava ao retrato. Costumava nos doar outras obras dele. Tenho, por exemplo, um retrato de negro, que é uma das obras mais apreciadas de Portinari, sucesso em exposições internacionais, que ele me deu como se dá um copo d’água. Dos pintores brasileiros ele foi talvez aquele que mais se interessou pelo trabalho literário dos poetas. Portinari não gostava muito da crítica dos artistas, mesmo porque essa crítica não raro era tendenciosa, mas trocava idéia com os poetas. Bem, havia também um problema: é que o prestígio de Portinari, a importância que ele foi assumindo, doía um pouco nos outros pintores.

Chamavam Portinari de fascista porque ele fez o retrato da embaixatriz italiana. Só mesmo no Brasil. O pessoal se irritava muito porque Portinari deformava as figuras. Todos os pintores brasileiros antigos pintavam todo mundo direitinho. Então o pessoal dizia: ‘Pois é. Quando chegava a pintar a mãe dele, ele pintava direitinho. As outras ele pintava com pé de elefante.’ Uma coisa tão ridícula, não é? O fato é que Portinari conhecia profundamente o metiê. Tinha autoridade para deformar, porque sabia manter a estrutura básica da figura. E o mais era liberdade de criação.

O final da vida dele, pelo que eu soube, foi bastante melancólico. É uma saudade grande que tenho de Portinari. Depois dele, não conheci ninguém à sua altura, nenhum artista que me impressionasse tanto. Foi um fenômeno realmente diferente no Brasil, acima de comparação. O falecido Mário Pedrosa endeusava Portinari. Depois, por capricho intelectual, resolveu negá-lo terminantemente. Mas o Pedrosa era um sujeito muito injusto – muito talentoso, mas muito político quando lançava uma moda artística e as pessoas o seguiam fielmente como carneiros. Ele tem um livro que começa com um estudo sobre Kathe Köllwitz, artista de esquerda, revolucionária. No mesmo livro, há uma apologia da arte abstrata, que é o contrário. Os jovens pintores brasileiros seguiam o Mário Pedrosa como se fosse um messias. De vez em quando ele mudava – ‘isso não se usa mais’ – e o pessoal toda mudava. O que caracterizou esses últimos anos do Brasil, aliás, foi uma grande falta de continuidade (na arte). É conhecido o caso das pessoas que admiram o quadro que está de cabeça para baixo, então o autor corrige, e finalmente essas coisas que vemos hoje nas bienais. Lá em Belo Horizonte, uma mulher deitou-se como morta, acendeu quatro velas numa exposição. Era uma... como se chama? Proposta. Um sujeito comeu um leitão assado em Brasília e era a obra de arte devorada. Não é sério, é? As pessoas parecem que chegaram à impotência de criar. Meu Deus, o mundo é tão rico de formas, de aspectos, de cor, de luz, cada dia a natureza é diferente. A maior parte não sabe desenhar. Abusam das pinceladas ao deus-dará, porque aquilo os faz esquecer que eles não sabem desenho. E o Portinari era um desenhista extraordinário. No momento em que o abstracionismo começou a tomar conta da arte, ele se ressentiu muito, foi muito atacado. Realmente é uma calamidade (...)."