as impaciências do saber, de marcos nunes
Uma
noção interessante dos limites da palavra, não apenas
enquanto literatura, que dizer, enquanto elemento
constitutivo de uma arte, sem se tratar de lingüística
e conhecimento, encontramos no escritor Hermann Broch,
não outro que não aquele que escreveu A MORTE DE
VIRGÍLIO, o melhor romance já escrito contra a
literatura sem perspectivas sociais, ou mais
simplesmente, um romance contra a noção da arte pela
arte, em função da beleza, da fruição estética
despegada da esfera política, das circunstâncias do ser
enquanto interagente e contemporâneo da própria
História, com esse agá maiúsculo mesmo. Não apenas ele, mas também Kafka, segundo ele mesmo referendado por Broch, abdicaram da arte literária enquanto forma capaz de lograr interseções existentes entre as consciências possíveis e os mitos fundadores dos valores sociais, mitos esses ainda subjacentes a todos os valores ainda subsistentes, aqueles que não submergiram simplesmente à imperatividade do lucro, em dado momento histórico tido como razão e álibi para qualquer ação humana, justificativa para o arbítrio e a violência, esta última como obstáculo ético sem qualquer consistência para o equilíbrio do mercado (digo, qualquer justificativa da negação de uma ação tipicamente empreendedora face negativas de seu caráter brutal passou a ser entendida como ingenuidade, considerando as necessidades de desenvolvimento do sistema). Para Broch, assim como para tantos outros, a literatura seria uma via que, em muitos pontos, lograria contato com a ciência, sem nunca atingir suas altitudes. Diríamos que a literatura seria uma atitude de quem persevera na teoria, mas não possui a paciência necessária para produzi-la de maneira consistente, de forma que a ficção atinge seus objetivos em parte, sem nunca compor o todo que representariam as idéias daqueles que, não distante da teoria, tivessem, contudo, extrema pressa quanto a atingir seus objetivos. Assim, no lugar do saber consistente, teórico, científico, escudado no experimento, na observação, na transcrição em caracteres legíveis daquilo que foi e é cientificamente comprovado, a literatura se esmeraria, tão somente, na expressão do gênio, o escritor, este provido de dados de caráter tão somente sociológicos, no sentido de que estes dados são compostos de observações colhidas em circunstâncias específicas e passíveis de alterações devido às contingências de tempo e espaço. O dado científico, indiscutível, é aquele que originou um enunciado a partir do momento em que ele mesmo se reproduziu, em momentos muitos variados, os mesmos resultados. Um dado pode ser científico enquanto resultante de condições específicas, mas não é compatível a um enunciado de caráter generalizante enquanto produto dessas mesmas circunstâncias, sendo mutável face alterações de conteúdo menos material que subjetivo, ou seja, tendo por origem as vontades ou necessidades humanas, extraídas as circunstâncias materiais sem as quais sequer os desejos poderiam se manifestar. Do que trata, enfim, a literatura ? A literatura impacienta-se. Ela quer dizer o que o senso comum quer dizer e não diz, fala pelos outros, produz um discurso que considera-se compatível aos desejos humanos, mas não se outorga poderes de cientificidades. A literatura é, antes de tudo, expressão de uma pressa de enunciar, mesmo sem os dados materiais necessários para fazê-lo; mais que isso, a literatura sequer pretende utilizar de dados materiais plausíveis, basta as apreensões subjetivas globais para que ela surja, com suas exigências, suas intenções e, sobretudo, com seus projetos de unir os caracteres míticos e científicos em um todo que atinja a sensibilidade daquele que lê, ou seja, sua razão passível de ser cooptada por um projeto incompleto de satisfação das necessidades do sujeito. Evidentemente, talvez até sem o saber, o que Broch faz é utilizar-se dos truques da logicidade humana, opondo uma razão construída de forma coerente a outra razão que lhe é oposta, compondo assim o velho cenário dicotômico que opõe a uma certeza um erro, a um sentimento amoroso a outro de ódio, mas tudo envolvido em um quê de metafísica que a tudo veste de espiritualidade, ocultando, sem querer, as misérias dos objetivos canhestramente materiais daqueles que articularam discursos acerca de éticas e ideais a serem considerados como transcendentes à prática meramente comercial, e devidamente abusiva, extrativista e exterminadora, das relações humanas. Porém, não podemos deixar de considerar sua, digamos, intuição, como certeira, se tratarmos de outra questão também de seu interesse, o kitsch, composto de noções de caráter simulador das circunstâncias, este elemento que se declara o último grito de nossas aspirações e nada mais é que o primeiro momento de nossas angústias transformado em modelo já composto de uma solução inquestionável. O que é a má literatura, senão uma expressão do conhecimento que impacienta-se e, assim, opera o enunciado esperado pela imediaticidade do que podemos chamar de mercado ou ainda de demanda social de verdades, necessárias à sobrevivência de um modelo social que exclui possibilidades outras ? Toda a literatura contemporânea, observando-se até de maneira bem descuidada, esmera-se em oferecer ao mercado aquilo que ele demanda, sem qualquer questionamento que vá além das prerrogativas das corporações que difundem a cultura como produto de indivíduos, cujos talentos não provém de nenhuma conectividade com outra sociedade senão aquela já inserida na rede dos interesses globalizantes. Talvez Broch não tenha percebido que, a literatura, ao invés de ser uma remendo de noções apressadas, pudesse ser uma ferramenta contra a proliferação dessas mesmas noções, mesmo em grau literário, mas principalmente em termos de divulgação publicitária, jornalística e, de maneira mais grave, inseridas em manuais para educação e formação cultural de geração após geração. Melhor ainda, Broch tivesse pressentido que, a literatura, nos tempos do valor-dinheiro sobre todo e qualquer valor-conhecimento, fosse reduzida àquilo que hoje dizem que ela é, mais um produto a ser lançado em feiras e importante enquanto constitutivo de operações lucrativas de empresas que disseminam, além das páginas impressas, valores intelectuais compatíveis à manutenção da ordem dominante. Podemos assim dizer que Broch não perpetrou equívocos disparatados, mas que apenas confundiu os valores sociais, talvez por contemplá-los às luzes variegadas da filosofia mais do que àquelas muito mais complexas do saber científico, posto que Broch envolvia-se com platonismos e fantasias acerca de absolutos e totalizações para as quais a literatura, certamente, não possui ferramentas para construir. Voltemos à Kafka, que abandonou a literatura após utilizá-la da maneira possível, como forma para exame a radicalização de uma crítica e compreensão das relações humanas como relações de poder, porém poder demasiado frágil para sobreviver às transformações materiais que fazem com que as ambições humanas sucumbam às suas ilusões. Para Kafka, os piores e os melhores (conforme cada um pode valores face formações culturais de classe bastante díspares) momentos da humanidade se equivalem, e a literatura que eles produziram não nos redimiria das frustrações eternas de nossa condição humana, prenhe de infinito e presa à morte, de tal forma que nossas realizações estariam para sempre condenadas ao malogro da não correspondência, em valores absolutos, dos desejos de cada subjetividade. A condenação de cada um é irrefutável, nenhum de nós há de escapar de viver e morrer como um animal, por mais e sofisticadas teorias que tenhamos construído para justificar nossas vidas e nossos padrões de sociabilidade. A literatura permanece como uma impaciência face ao destino, refutada toda noção de destino, ou aceita em parte, e mesmo integralmente. A literatura impacienta-se com os vagares da história, da filosofia, das ci6encias exatas, das ciências humanas. Esgueira-se entre conceitos químicos, físicos, biológicos, e reconhece-se ao zombar de si mesma. Daremos a volta em Hermann Broch, e diremos que a literatura não é um degrau inferior ou uma deficiência do saber, nem mesmo uma aspereza daquele que procura saber mas que impacienta-se e emite um valor acerca daquilo que não sabe, desconsiderando o que necessita saber como um percalço inútil às suas emoções apressadas. A literatura, sim, é o fim de todo o processo de conhecimento humano, ou de outra forma, que o conhecimento nela se desdobra, se debruça e expõe sua impaciência, sua pressa, ou numa palavra, seu desejo, de saber, de conhecer. A literatura é uma maneira de perguntar ao outro, o leitor, aquele que também não sabe, a resposta para as questões que não pode, em seus páginas resolver. A literatura participa, com a sociedade, desse busca impaciente de conhecer. Não produzi-la não é, decerto, uma demonstração de sanidade social (pois, se o fosse, seríamos hoje todos cientistas, vista a precariedade do que hoje se produz, em quantidade e qualidade), mas de uma pressa que toma outras direções, nem melhores nem piores, da ciência ou de outras artes que procuram o conhecimento explorando outros elementos que não os silábicos (ou não apenas os silábicos). Contudo, se não se faz mais literatura, como também nada mais se faz, sem delegar ao chamado mercado a forma do que interessa e é vendável, aí sim, podemos dizer, que nada mais temos que a deterioração da ânsia ética da humanidade, compungida pela razão absoluta não do conhecimento, mas do lucro, sendo essa a questão que nos totalizaria, qual seja: servir aos objetivos do mercado sendo cada sujeito não mais que um consumidor de valores que não ascendem a outra coisa senão que à rentabilidade de produtos-coisas ou produtos-pessoas. Com o que toda arte (e a que aqui tratamos é a literária) não pode sucumbir à forma sem as circunstâncias do meio, ou seja - a arte que se atém ao seu modo de produção como alheio àquele que politicamente é gerido por aquilo que chamamos de democracia, faz apenas a abstenção da crítica à democracia, não observando suas mazelas, reproduzindo-as e reproduzindo-se como produto necessário à perpetuação da generalidade, sem ater-se às suas noções e referir-se aos padrões éticos que lhe vão além. É arte engajada, mas engajada na conservação da imperatividade do lucro, sobre todas as circunstâncias. Arte a favor, arte kitsch. Arte sem o conhecimento apressado da impaciência daqueles que não possuem o conhecimento, mas que estão carregados de noções que visam transformar a realidade, em conexão com o que cientificamente se produz e observando os parâmetros da cultura que não pôde superar os mitos, esses tapa-buracos de nossa eterna ignorância. Como todos, Broch esteve certo e errado, produzindo literatura e teoria que, contestáveis, podem ter sua fruição ao lado de todas as idéias, norteamentos e possibilidades que não concluem a favor da multiplicação dos meios existentes, mas pelo perpétuo questionamento das razões que os promovem e os querem como absolutos. Não se trata, assim, de um vale-tudo literário e/ou teórico, mas de mais do que uma presunção de que, entre possíveis erros e acertos, estamos nos balizando por conceitos éticos que não coadunam com a opressão, a exploração e o engodo e que isso, mesmo sem atingir esferas do absoluto, nos faz caminhar entre os viventes neles se reconhecendo, porque como eles somos feitos de dúvidas acerca do que conhecemos, mas não de certezas quanto ao que queremos e que, portadores dessas certezas, temos que prezar nossas mentiras para atingir as metas que as satisfaçam. |