manga com leite

 

n. 7 – multiplicidade do real

Sabe quantos livros tive de absorver para os meus dois simplórios? Mais de 1500!.
Flaubert

"Entre os valores que gostaria fossem transferidos para o próximo milênio está principalmente este: o de uma literatura que tome para si o gosto da ordem intelectual e da exatidão, a inteligência da poesia juntamente com a da ciência e da filosofia...", Italo Calvino vai mais além e diz em sua conferência sobre a multiplicidade que "a excessiva ambição de propósitos pode ser reprovada em muitos campos da atividade humana, mas não na literatura. A literatura só pode viver se se propõe a objetivos desmesurados, até mesmo para além de suas possibilidades de realização. Só se poetas e escritores se lançarem a empresas que ninguém mais ousaria imaginar é que a literatura continuará a ter uma função". Assim, Calvino aponta que "o grande desafio para a literatura é o de saber tecer em conjunto os diversos saberes e os diversos códigos numa visão pluralística e multifacetada do mundo."

Percorrer todos os caminhos e retratar a essência de cada passo dado, sem limitar suas possibilidades, este é o papel heróico destinado ao escritor. Somente um poeta tem a coragem, o dever, de se lançar a uma odisséia sem fim como esta, abarcar o infinito, moldá-lo e depois nos apresentar sua obra.

Calvino defende o romance como uma "enciclopédia aberta", pois afirma que a única totalidade pensável atualmente é uma totalidade que seja potencial, conjectural, multíplice. Neste sentido, o autor lista alguns exemplos de multiplicidade: "o texto unitário que se desenvolve como o discurso de uma única voz, mas que se revela interpretável a vários níveis"; "o texto multíplice, que substitui a unicidade de um eu pensante pela multiplicidade de sujeitos, vozes, olhares sobre o mundo"; "a obra que, no anseio de conter todo o possível, não consegue dar a si mesma uma forma nem desenhar seus contornos, permanecendo inconclusa por vocação"; e "a obra que corresponde em literatura ao que em filosofia é o pensamento não sistemático, que procede por aforismos, por relâmpagos punctiformes e descontínuos".

Calvino fecha esta conferência expressando um desejo: "quem nos dera fosse possível uma obra concebida fora do self, uma obra que nos permitisse sair da perspectiva limitada do eu individual, não só para entrar em outros eus semelhantes ao nosso, mas para fazer falar o que não tem palavra, o pássaro que pousa no beiral, a árvore na primavera e a árvore no outono, a pedra, o cimento, o plástico..."

Compartilhar deste desejo é a grande contribuição que o escritor pode dar ao mundo, compartilhá-lo e buscá-lo com toda sua força, com toda sua alma, transcendendo o eu para conectar-se ao mundo e depois retornando de sua viagem para nos ensinar o caminho, através de suas palavras, de suas imagens, de sua poesia.

Daniel Gomes
Editor de Bizarrona