literofagia, de Roberta Azambuja

  Augusto se encontrava atônito diante daquela folha de papel com trinta e cinco linhas arroxeadas e duas margens. A caneta inerte pendendo em sua mão, os olhos quase que arregalados em direção à vista urbana que a janela lhe mostrava. Em baixo de sua escrivaninha, a lixeira com várias folhas amassadas indicando que nada estava bem, como nunca tinha sido quando o assunto era literatura.

Não sei ao certo quando começou seu problema com os textos; na verdade, apesar de ser "literófago", se permitem o termo, sempre se perdia e se encontrava e posteriormente se perdia quando o assunto era interpretação. Não que fosse incapaz de compreender os exemplares que lia; pelo contrário, Augusto ao ler filosofava sobre cada termo, cada palavra que cada autor acrescia em sua obra e, na busca do porquê de tudo, se perdia em si mesmo. Talvez essa obsessão por desvendar o significado de cada letrinha, de cada vírgula que se posicionava nas folhas, tenha começado quando tinha sete anos. Seu pai, naquela época, chegara-se a ele e com voz solene proclamou: "Filho, eu e sua mãe estamos nos separando... por motivo de força maior...". Augusto ficou dias tentando descobrir o que aquela expressão significava. Só depois de algum tempo desvendou o significado daquele palavrão: uma mulher, com a metade da idade de sua mãe, era a força maior de que seu pai falava... e para ele, seu pai deveria ter usado a expressão mais coerente "força melhor". A partir de então ficou nessa angustiosa busca de palavras, sentidos, que pudessem aliviar, ao menos levemente, a ânsia que tinha de entender o significado de tudo, talvez também a si mesmo.

Mesmo na escola já era alvo de risadas e comentários. Sempre sentava no fundo da sala e ficava a ler. Somente prestava atenção às aulas de literatura e gramática, durante as quais trocava de lugar com uma menina que odiava aquelas aborrecidas aulas. Controlava-se quase que bravamente para não fazer muitas perguntas ao professor, pois sempre que exteriorizava uma de suas dúvidas fatais e o professor empolgava na busca da resposta, toda a sala o encarava com fúria pela proximidade do recreio e a possibilidade de ficarem presos por sua causa.

Sua vida era quase que um cárcere eterno; preso estava ao sentido de tudo. Tentou uma solução para aliviar sua aflição. Conseguiu uma bolsa de latim. No começo, vislumbrou um pequeno alívio, que quase o fez passear tranqüilamente entre as árvores ou mesmo se interessar pela professora que ministrava aquela disciplina. Mas este antídoto, esta vacina que lhe aliviou em um primeiro momento consideravelmente, não foi competente ou suficiente para lhe corrigir a alma.

Mas nenhum tormento tinha sido tão complexo como aquele que por hora lhe consumia. Aquela folha em branco, branco, branco, vazia, era como uma faca afiada penetrando em seu fígado... tinha, durante toda a sua vida, duelado com vários textos, duelos que atravessavam noites e dias, meses... sempre tentando vencer. Possivelmente lutas mais complexas já havia vencido, poucas vezes. Mas o oponente, naquele momento, era como a muralha da china... intransponível. Mesmo o desvendar do sentido de força maior parecia romance para criança. O dever de casa que consumia o seu espírito era como traduzir o intraduzível, ou falar o "infalável". Considerou seu jovem professor um ingênuo ao estabelecer o tema do texto sendo a metalinguagem. Mesmo ele, um menino com capacidade mediana, sabia que escrever um texto sobre o texto, era como se deparar com a cavalhice do cavalo que Platão, por presunçoso, cuspira no mundo e tirara a noite de sono de zilhões de leitores, como ele, zilhões de anos depois de sua morte.

Escrever sobre o texto era como escrever em uma folha, como aquela que lhe atormentava, a essência, o mistério e o óbvio da natureza humana e da natureza literária concomitantemente, se bem que óbvio era a maior mentira inventada pelo intelecto da raça humana; somente um depravado mental acreditaria no óbvio.

De repente, tudo ao seu redor começou a se desmaterializar. Tudo ficou branco... branco, branco, branco... branco como aquela folha de papel... seu quarto era um universo branco... e ele parado de pé olhando para o branco, e olhando para cima, somente escrito a calúnia "metalinguagem", metalinguagem...

Uma de suas primeiras tentativas, frustrada é claro, e que se encontrava com outras no cesto de lixo ao seu pé, foi de desvendar o "indesvendável" através do significado de "metalinguagem". Discorreu sobre a origem do palavrão, seu sufixo e prefixo. Sem sucesso, quase que rindo de sua "insabedoria" foi ler em outros autores algo sobre o impossível. Chegava a perceber colocações interessantes de alguns escritores narcísicos que pareciam ter certeza do que colocavam. Escrever sobre aquele tema era como fazer a autobiografia de Deus, mas o que é Deus??

Começou a odiar aquele professor hipócrita tanto quanto odiava os autores de dicionário, que diminuíam, destruíam, cometiam verdadeiro genocídio ao, por ignorância, tentar desvendar o "indesvendável".

Não encontrando nenhuma solução, pois mostrava-se claro que solução não havia (se bem que solução poderia ser inúmeras coisas), pensou primeiramente em um ato de heroísmo e altruísmo: a morte pelo bem das palavras e seus sentidos. Mas a carta de suicídio apresentou-se também um problema para ele. E como ainda estava averiguando um texto muito extravagante, pois para ele nenhum texto era agradável visto que nunca se sentia à vontade diante de um, desistiu do intuito. Mas muito pior do que tirar a sua própria vida, pior que matar inúmeros seres humanos, fez um ato pelo qual se condena até hoje. Fez algo que o atormenta tanto quanto deve ter atormentado Platão – pensava. Pegou aquela caneta e na página em branco escreveu: "Metalinguagem: 1) auto referência da arte; 2) explicitação de seu código ou estrutura; 3) intertextualidade."