Balacobaco
Planeta Terra
Rio de Janeiro


Entrevista com Ademir Assunção
Nasci  em  um  vagão  de trem, em 1961, e fui  registrado  em
Araraquara,  interior  de  São Paulo,  antigo  território  de
índios  tamoios.  Araraquara vem do tupi-guarani  "Aracoara":
Toca  do  Dia.  Me  formei  em jornalismo  pela  Universidade
Estadual  de  Londrina.  Por paixão pelas  possibilidades  da
comunicação  de massas, trabalhei nos cadernos  culturais  de
vários  jornais  e revistas de São Paulo:  O  Estado  de  São
Paulo,  Folha  de São Paulo, Jornal da Tarde,  revista  Marie
Claire,  etc..  Publiquei  três  livros:  "Lsd  Nô"  (poesia,
Editora Iluminuras, 1994), "A Máquina Peluda" (prosa,  Ateliê
Editorial,  1997) e "Cinemitologias" (prosa poética,  Edições
Ciência  do  Acidente,  1998). Entrei  na  antologia  "Outras
Praias  -  Other  Shores", edição bilíngüe (português/inglês,
ed.  Iluminuras,  1998).Estou com um novo  volume  de  poesia
pronto,  aguardando publicação: "Zona Branca".  Tenho  poemas
musicados e gravados por Itamar Assumpção, Edvaldo Santana  e
Madan.  Sou  geminiano, torço para o Santos Futebol  Clube  e
acho o neoliberalismo de FHC e Malan uma bosta.
Balacobaco  - Como foi a sua trajetória até o primeiro  livro
“LSD Nô”?
AA  -   Bem simples: nasci em um vagão de trem (meu  pai  era
ferroviário).  Cresci  com enorme liberdade,  em  um  quintal
muito  grande, com todo tipo de frutas: mamão, goiaba, manga,
laranja,  uva.  Sofri o primeiro impacto  poético  assistindo
pela  televisão à chegada do homem na lua. O segundo: ouvindo
Caetano Veloso cantar "Alegria, alegria" no rádio. Eu tinha 7
anos  de  idade.  Fiquei impressionado com aquelas  palavras:
"coca-cola,  espaçonaves, guerrilhas, caras  de  presidentes,
brigitte bardot, dentes, pernas, bandeiras". Somente aos  17,
18   anos   passei  a  ler  poesia  —  Homero,  Ezra   Pound,
e.e.cummings,  Corbière,  Artaud, Rimbaud.  Na  mesma  época,
ouvia  muito  rock'n'roll  (falo de compositores  como  Frank
Zappa, Jim Morrison, Jimi Hendrix, Bob Dylan, Raul Seixas...)
Sou   um  cara  da  era  da  comunicação  de  massas.   Minha
sensibilidade  tem  mais a ver com poetas e  escritores  como
Paulo  Leminski,  Torquato  Neto, José  Agrippino  de  Paula,
William Burroughs, Arthur Rimbaud, Oswald de Andrade  do  que
com Drummond de Andrade, Mário de Andrade ou Manuel Bandeira.
Questão  de  escolhas,  que  posso  fazer?  Dessas  somas   e
subtrações todas surgiu "Lsd Nô".
B  -  "Um poeta precisa de palavras/o peixe nada”. Você bebeu
na fonte do poema piada?
     Palavras: palávoras: devoras-te ou
me decifro, forasteiro.
     Quem está fora mira de soslaio
quem está dentro. Dentro e fora: o
brilho da fera, a fuzarca da farra.
Ilusão de estética. Semi-ótica.
     Poesia: farra.
     Poesia: arranjo de palavras.
Precisas, como os galhos de um
ikebana.
     O que um poeta precisa?
     Necas de louros, nenhures de
trapos, fora ranço, se manda rixa,
pitibiriba de mágoa. Sem nódoa, sem
lenço, sem nada.
     Um poeta precisa de palavra.
     O peixe; nada.
AA -  Não, bebi na fonte do zen-budismo.
B  -  Em  “Escrito a sangue” você explora bastante a eufonia.
Qual a importância da sonoridade das palavras em seus poemas?

ESCRITO A SANGUE
ruas escuras
    atravessado
eu atravesso
    reviro o avesso
nele me meço
    olho de lince
encaro a face da fera
    espelhos se estilhaçam
rasgam minha cara
    cai a neblina do vazio
frio na barriga
    pago o preço
erva, bola, cogumelo
    volto ao começo
escapo com vida
    desconverso
verso escrito a sangue
    desapareço
quanto mais
    menos
me pareço
    eco de bicho homem
ego sem endereço

AA  - Não apenas em "Escrito a Sangue" mas em todo o "Lsd Nô"
eu  procurei trabalhar a sonoridade das palavras com o máximo
de  intensidade. Concordo com Pound: "a poesia  começa  a  se
atrofiar  quando  se  afasta muito da  música".  Procuro  uma
poesia ritual, como eram os cantos tribais de várias culturas
do   planeta.   A   musicalidade,   então,   é   fundamental.
Ultimamente,  porém,  tenho  procurado  desenvolver  mais  as
imagens. Estou muito interessado nos processos imagéticos que
desencadeamos  em nossa mente noite após noite,  através  dos
sonhos  ("Cinemitologias", meu terceiro livro, foi  um  passo
nessa  direção).  Mas  não me detenho  nas  imagens  como  um
pintor,  procurando nuances de luz e cores. Não. Meu processo
está  mais  para o cinema, para a velocidade das  imagens  em
movimento. Uma poesia mítica e alucinatória.
B  -No  poema  “A  lira no lixo” você afirma  que  “pensam  o
poeta/um ente otário”. Quem é verdadeiramente o poeta?
A LIRA NO LIXO
    para cazuza
pensam o poeta
um ente otário
doente, sem dinheiro
um falsário
profeta picareta
um prego enferrujado
espalmado
na mão direita
pensam o poeta
um junkie solitário
trama o poeta em seu nicho
palavras mágicas
sendas ocultas
senhas surdas
risca um risco no disco
cisca um cisco preto
no mármore preto
e cata iguarias no lixo
AA  -  O final do poema "A lira no lixo" diz assim: "sonha  o
poeta  em seu nicho/ palavras mágicas/ senhas surdas/  sendas
ocultas/  risca um risco no disco/ cisca um cisco  preto/  no
mármore  preto/ e cata iguarias no lixo". Eu procuro  extrair
minha  poesia do lixo da civilização industrial. Acho  que  a
melhor  parte da nossa cultura é aquela que está sendo jogada
no lixo. Quem é "verdadeiramente" o poeta? Sei lá. Nem sei se
"a verdade" existe.
B - Qual a importância de Mallarmé em sua poesia?
AA  -  Um lance de versos jamais abolirá a liberdade da minha
linguagem.
B  -  “Ilusão de acústica” fala de amor. Como é para um poeta
“camaleônico”, “experimentalista” reinventar a roda da lírica
amorosa?
ILUSÃO DE ACÚSTICA
no areal á brisa a mansa clara
quando despe a camisa
o sol desenha tatuagem em seu seio
nele vejo
clara
visão que amornafronta o breu
por não serem meus
os teus tão bons
íntimos sons
clara que alveja a roupa
aura
macia a boca
de sempre tão serena
gema
me chama ardendo dentro clara!
laura
quando me ama?
AA - "Ilusão de acústica" é uma mutação de "Ilusão de ótica".
É que no poema procuro passar a impressão de que o poeta está
apaixonado  por uma mulher chamada Clara.  E, no final,  quem
aparece é a persona de uma mulher chamada Laura. Com a  troca
de  uma  única  letra  —  "c" por "u",  que,  aliás,  juntas,
resultam em um obscuro objeto de desejo masculino —  cai  por
terra todo o castelo amoroso do poeta, dando uma rasteira  no
próprio leitor. Parece que o poeta tem Clara à mão. Mas  quem
ele  verdadeiramente  ama, é Laura. O experimentalismo,  para
mim,  está ligado a uma pulsão orgânica, visceral. Em vez  de
fazer  um  poema  sobre uma trepada, tento fazer  com  que  o
próprio  poema  seja  uma trepada. Repare  nesse  jogo  entre
"Clara" e "Laura". O "c" de "Clara" cai fora e entra  um  "u"
bem no meio do "Lara" que sobrou, tornando-se "Laura". Bem no
meio.  O sexo e o amor são coisas importantíssimas para minha
vida.  Portanto,  claro  que vão  estar  presentes  na  minha
poesia. Uma das coisas mais "experimentais" que um ser humano
pode fazer é "experimentar" o corpo de outra pessoa.
B  - Boa parte de sua obra dialoga com o concretismo e com  a
poesia visual. Quais as suas principais influências?
AA  - A poesia concreta teve um grande impacto sobre mim pela
liberdade que ela proporcionava — a abertura para a  dimensão
visual   da   palavra,  as  possibilidades   lingüística,   a
consciência  da  poesia  em  um contexto  de  comunicação  de
massas.  Mas  tenho quase certeza que Augusto  de  Campos  ou
Décio  Pignatari não considerariam "Lsd Nô" como um  conjunto
de  "poemas  concretos".  Creio que a  visualidade  nos  meus
poemas   iniciais  está  muito  mais  ligada  à   experiência
jornalística  —  trabalhei em alguns dos  grandes  jornais  e
revistas do Brasil, como O Estado de São Paulo, Folha de  São
Paulo, Revista Veja, etc... Embora tenha uma relação bastante
crítica  com a imprensa (hoje, no Brasil, ela está  cada  vez
mais  dominada por manipuladores), sei o impacto que tem  uma
palavra  em  corpo  10,  dentro de um  e-mail,  enviado  pela
internet,  e  o de uma mesma palavra escrita em corpo  72  na
capa  de um jornal que vai para a casa do leitor. Imagine  um
editorial  sobre a situação política e econômica  do  Brasil,
cujo  título seja a palavra MERDA escrita em corpo 60 na capa
de  um  jornal  como O Globo. O impacto é  enorme.  Meu  novo
livro,  "Zona  Branca",  porém, tem um  ou  dois  poemas  que
trabalham  com essa "visualidade" da palavra. Estou  seguindo
por  outros caminhos ultimamente. Pode ser que retome algumas
coisas  do  "Lsd Nô" mais pra frente. Mas sou muito inquieto.
Não   vou   ficar  me  repetindo  a  vida  toda.  Quanto   às
influências,  elas  são muitas. Não tenho aquela  neurose  da
"angústia da influência", que tanto preocupa um crítico  como
Harold  Bloom. Minha dentição é boa: mastigo tudo  o  que  me
interessa:  e  isto  vai de Dante Alighieri  à  histórias  em
quadrinhos.  Procuro também estar sempre de  olho  em  alguns
poetas da minha geração, com quem mantenho um diálogo crítico-
criativo  há mais de 10 anos: Rodrigo Garcia Lopes,  Maurício
Arruda  Mendonça,  Marcos  Losnak e  Mario  Bortolotto.  Mais
recentemente  vieram  se somar Ricardo Corona,  Joca  Reiners
Terron,   Cláudio   Daniel,   Elson   Fróes,   todos   poetas
contemporâneos, produzindo arte poética cheia de qualidade  e
inquietação.
B  -  “Essa  cara”, outro poema de "Lsd Nô" é o resultado  da
fusão  de  letra de música com poema. Como encara o pastiche?
Letra de música é poema?
ESSA CARA
eu sou apenas um homem
nel mezzo del cammin
uma pedra no meio do caminho
uma pedra no sapato
dedos ágeis de gato
no meio das pernas um saco
bandido de saco cheio
mas ela é quem quer
ela é a mulher
e eu sou apenas um homem
AA  -  Não  penso que letra de música seja algo  menor.  Como
dizer  que  não presta a poesia de Noel Rosa, Cartola,  Chico
Buarque  ou  Jim  Morrison?   Penso  que  há  diferenças   de
registros. Dificilmente seria possível cantar uma epopéia  de
550  páginas. Mas isso não a faz necessariamente  superior  à
obra de um Chico Buarque.
B  - Você tem poemas dedicados a roqueiros como Kurt Cobain e
Jim Morrison. Qual o lugar da música em sua vida?
AA  -  Para responder esta pergunta posso dizer que os poetas
contemporâneos, na minha opinião, têm muito  a  aprender  com
Arrigo Barnabé.
B  - Digamos que você é um poeta dionisíaco... É correta esta
visão? Fale sobre...
AA  - Um dos grandes métodos de aprendizado, para mim, foi  o
uso  de  cogumelos alucinógenos. Outro foi  o  zen.  Somadas,
essas  duas vias de conhecimento me mostraram claramente  que
existem outras dimensões de percepção e que nem tudo pode ser
apreendido pela via racional. O racional, na maior  parte  do
tempo,  não  passa  de ilusão. É o que os  hindus  chamam  de
"maya".  Por  conta disso, acho que tenho um lado  dionisíaco
forte, sim. Mas tenho um lado apolíneo também.
B  -  Simplificando... o pós-moderno é o resgate e o convívio
com  a pluralidade. É voltar ao passado e escrever, poemas  à
moda  antiga,  com as ferramentas atuais... Existe  novidade?
Quais os paradigmas da arte atual?
AA  - Deus me livre escrever sonetos achando que a "grande  e
nobre  arte" está nos séculos 18 e 19. Glauco Mattoso escreve
sonetos, mas com uma consciência cínica escancarada. Mete  um
monte  de  sujeira  naquela "estética nobre":  chulé,  bosta,
frieira. Aliás, Gregório de Matos já fazia isso, lá no século
17.  Para mim, o negócio é outro. Não estou convencido de que
o  tempo  da arte é um tempo linear, evolucionista. Talvez  a
gente sinta, diante do universo, a mesma perplexidade que  um
índio  de  1.000  anos  atrás sentia. Claro  que  o  ambiente
(inclusive cultural), as ferramentas, a maneira de viver, são
diferentes.  Agora, não penso que conceitos de  outras  áreas
possam  ser  transplantados mecanicamente  para  a  linguagem
artística. Entre um teco-teco e um avião supersônico,  claro,
existe  uma evolução tecnológica indiscutível. Mas um  haicai
de Issa, escrito no século 17 não é "artisticamente" inferior
ao  "Poema Sujo" de Ferreira Gullar. É outra coisa. Claro que
não  vou tentar escrever como Dante Alighieri. Minha época  é
outra,  o  contexto  em  que vivo, o imaginário,  enfim,  são
completamente diferentes. Essas idéias de "nobreza" da arte é
que  geram muita confusão. No mundo atual você pode apreender
um poema escrito com laser no céu com a mesma intensidade que
um  poema  de John Donne. Cada época, cada grupo de artistas,
reinventa  o  passado.  Por mais que Machado  de  Assis  seja
considerado  o  maior escritor brasileiro, ele  me  interessa
muito  menos que Agrippino de Paula ou Campos de Carvalho.  É
uma questão de escolhas. Para mim, então, o paradigma da arte
atual  é  produzir uma arte que consiga criar  mecanismos  de
compreensão da nossa época. Não escrevo para o passado.
B - Que uso faz da internet?
AA  -  A  internet  pode ser um poderoso  meio  de  guerrilha
cultural. Tento usá-la dessa forma.
B - "A Máquina Peluda" dá a impressão de que os textos contidos
ali  foram uma transposição quase que mediúnica para o papel.
Como  foi  o  processo  de  criação,  de  elaboração  de  uma
linguagem?
AA  -  Interessante essa observação: mediúnica. Quando estava
escrevendo  o  livro (e foram 4 anos de trabalho),  às  vezes
voltava  para  revisar  um texto escrito  algumas  madrugadas
antes  e  me  surpreendia: "caramba, de onde  eu  tirei  essa
loucura toda?" Muitas vezes me sentia uma espécie de "cavalo"
(aquele  que recebe o santo nos rituais afro). Talvez  porque
toda  a  arte  traz  muito do inconsciente, daquelas  regiões
cerebrais  que  conhecemos bem pouco. E claro, nessa  obscura
região das nossas personalidades estão armazenadas milhões de
experiências, de percepções, de leituras e, por que  não,  de
arquétipos ancestrais e intuições futuristas, que nem  sequer
suspeitamos que possuímos. Por outro lado, a linguagem ou  as
linguagens   d'Á   Máquina   Peluda   foram   conscientemente
trabalhadas, buscadas, almejadas. Não acredito em  "linguagem
automática". Todo o meu trabalho segue um esforço  contrário:
desautomatizar ao máximo a linguagem.
B  -   A metalinguagem é o futuro da poesia, como diz Haroldo
de Campos? E a intertextualidade também?
AA - Não acredito que o futuro aponte para uma única direção.
Seria  chatíssimo se todos os escritores e poetas do  planeta
se   pautassem  pelas  mesmas  idéias.  Mas   penso   que   a
intertextualidade,  principalmente,  vai  se   tornar   muito
presente  na  literatura urbana do próximo  milênio.  Estamos
sendo bombardeados por milhares de informações o tempo todo e
nossa mente funciona cada vez mais como uma ilha de edição.
B  -  "O  homem  carro" tem algo de Marinetti?  ou  Mário  de
Andrade?
AA  -  De  Mario  de  Andrade, certamente não  tem  nada.  De
Marinetti não sei dizer — li quase nada dele. O que existe em
"O  Homem Carro" é uma sátira da publicidade e do seu produto
direto:  o  consumismo. Meu trabalho não vai  no  sentido  de
despertar no leitor um incontrolável desejo de correr  até  o
supermercado mais perto e comprar uma coca-cola, ou  sacar  o
talão  de  cheques  toda vez que vê  o  anúncio  de  um  novo
produto.  Publicidade e totalitarismo estão  muito  próximos.
Não   podemos  esquecer  que  a  publicidade  se  desenvolveu
enormemente com Goebells, o ministro de Hitler.
B  -  O  que emprestou de si ao construir o Caminha, do texto
"Cartas do Escriba ao Rei"?
AA  -  De mim, talvez, só a imaginação. O Pero Vaz de Caminha
das   "Cartas  do  Escriba  ao  Rei"  cumpre  uma  trajetória
cultural,  não pessoal. Parti da carta original do "Achamento
do  Brasil"  e fui deturpando os fatos. Sob o efeito  de  uma
erva misteriosa que os índios oferecem à esquadra portuguesa,
Caminha ganha uma estranha capacidade de se deslocar no tempo
e  no  espaço. Com isso, vai saltando por vários períodos  da
história  brasileira, encontra-se com Gregório de  Matos,  no
século 17, depois com Oswald de Andrade e Dorival Caymmi,  no
século  20, em seguida retrocede alguns séculos e vai  cruzar
com  Marcgrave  nas  ruas de Recife, e assim  por  diante.  O
contato com a erva e com o "novo mundo" faz com que o escriba
da   Corte  vá  perdendo  suas  raízes  culturais  lusitanas,
brancas,  católicas. Rapidamente ele se  torna  um  mameluco,
pansexual e depravado. A cada carta que envia ao rei, percebe-
se  que  ele  está  mais  pirado. E a linguagem  vai  pirando
também.  Ele  passa  por  um  processo  de  desterritorização
cultural  e  adquire uma nova cultura, mais  inusitada,  mais
surpreendente,   menos  cartesiana.  Esse   é   o   esqueleto
conceitual das "Cartas do Escriba ao Rei". No fundo, o  texto
mostra,  de  maneira  exagerada e esculhambada,  o  quanto  a
História pode ser manipulável.
B  -   Há  como definir as narrativas contidas em "A  Máquina
Peluda"?  são  contos, fábulas, parábolas ou é um  mix  disso
tudo?
AA  -  Um  mix  disso  tudo.  Como  já  disse,  estou  sempre
interessado  em  revirar  a  linguagem,  não  para   torná-la
agradável  ao leitor, mas para explorar outras possibilidades
que não as já automatizadas. Por exemplo:
na  última  parte do livro, explorei muito os  diálogos,  que
muitos  críticos  afirmam  ser a maneira  mais  fácil  de  se
escrever. Textos como "Natureza Morta", "Anestesia Geral"  ou
"Lero  a  Zero", quase não possuem nenhuma descrição externa,
fora  dos  diálogos. Você vai percebendo onde os  personagens
estão,  quem  são eles, o que fazem, o que está  acontecendo,
através  do que eles vão falando. Não é muito fácil  escrever
assim.  Optei por essa maneira por um motivo simples:  é  que
acho  os  diálogos  da maioria dos filmes  brasileiros  muito
ruins.  Queria  desenvolver  um jeito  de  escrever  diálogos
rápidos,  intensos, sem muita enrolação. Gostaria  que  esses
textos se transformassem em filmes.
B  -  O que são a sexualidade e o humor para Ademir Assunção,
em "A Máquina Peluda"?
AA  -  Sexualidade e humor são duas formas poderosas de abrir
os olhos das pessoas. Com o humor você pode mostrar o absurdo
de   uma   realidade  que  todo  mundo  pode  estar   achando
absolutamente normal, natural. Mas veja: o humor  que  existe
n'A  Máquina Peluda é bastante crítico, incômodo.  Está  mais
para  o  humor negro de Samuel Beckett ou para a  crítica  de
costumes de Gregório de Matos. Dificilmente seria incorporado
em   um   programa  humorístico  da  Rede  Globo.  Eles   não
suportariam.  E  o  sexo, para mim, é  uma  das  formas  mais
sofisticadas  de comunicação humana. É a grande vertigem  dos
sentidos.

 

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