ENTREVISTA
COM ALBERTO PUCHEU Alberto Pucheu nasceu no Rio de Janeiro em 1966. Poeta dos livros: Na cidade aberta, Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 1993; Escritos da freqüentação, Rio de Janeiro: Ed. Paignion, 1995; A Fronteira desguarnecida, Rio de Janeiro: Ed. Sette Letras, 1997 (com esse, recebeu, em 1996, o prêmio de poesia da Fundação Biblioteca Nacional/INL para obra em curso); Ecometria do silêncio, Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999. Organizou o livro Poesia(e)filosofia; por poetas-filósofos em atuação no Brasil, Rio de Janeiro: Ed. Sette Letras, 1998, que contou com a participação de Adélia Prado, Antonio Cicero, Fernando Santoro, Marco Lucchesi, MD Magno, Orides Fontela e Rubens Rodrigues Torres Filho, além da do próprio organizador. 1.Seu
último livro se chama ECOMETRIA DO SILÊNCIO. O que o título esconde? É
possível encontrar ecos no silêncio? -
É saudável que, em poesia, alguns dos esconderijos se mantenham
esconderijos, lugares em que podemos nos refugiar. Acho mesmo necessário
que isso aconteça. Tenho esperanças de que o título seja um lugar de
refúgio. Lembro-me que, entre os mais antigos gregos, lançava-se um
enigma antes mesmo de se saber a resposta para ele. Isso é
verdadeiramente poesia: habitação de enigmas, de mistérios, de
esconderijos, refúgio em uma ambiência enigmática da própria vida, que
se mistura com a clareza de tudo o que vivemos. Poesia não é a resposta
para nossas perguntas, mas as perplexidades que nos obrigam, dentre outras
coisas, a formular, inclusive, as perguntas. Toda interrogação é
resultado de uma exclamação anterior. Em relação
aos "ecos do silêncio", escuto-os tanto quanto os motores dos
ônibus. Costuma-se achar que o silêncio é o oposto da linguagem, dos
barulhos e, portanto, sem "ecos". Para mim, as próprias
palavras e seus arranjos já manifestam o silêncio. Serão as palavras
ecos do silêncio ou o silêncio é que é eco das palavras? As duas
possibilidades moram na mesma encruzilhada, na qual repouso meus
despachos. Impossível escaparmos do silêncio que é imanente à
linguagem, seres dela que somos. Antonio Cicero, em "Travessia da
morada do silêncio, travessia da linguagem", texto incluído em
"Ecometria do silêncio", percebeu o que está em jogo na
articulação entre o título e o livro com uma precisão inventiva
imensa, como só um pensador de seu calibre sabe fazer, acolhendo as latências
de uma poética para manifestar ainda mais as intensidades que a
atravessam. Sugiro a leitura de seu texto para quem quiser entrar com mais
cuidado em tais recintos. 2.“Já
não há cais no horizonte do olhar. Nem ao menos/ podem responder para
onde vou.” Os olhos são mapas precisos? - Nem mapas, nem precisos. Tudo é
impreciso nessa vida, tudo é indefinível. Acontece que, às vezes,
acredita-se mapear o imapeável, ancorar no cais apenas para, logo
adiante, descobrir-se mais uma vez sem rumo. Navegar, sim, é necessário...
necessário e impreciso. Estamos todo o tempo em mar aberto. O cais? Mero
instante de descanso, que, em algum momento, sai do horizonte de nossas
possibilidades, à nossa revelia. E, na tormenta, para onde vamos, para
onde nos levará o vento, para onde as correntezas nos arrastarão? As pálpebras,
pesadas de nuvens e maresia. Estar na linguagem é estar sempre em alto
mar, à deriva, pensando o que ninguém pensa, sentindo o que não se
sente, e, para o bem e para o mal, sendo conduzido para o mistério que
estala em cada peito extraviado. 3.“Aqui
jaz ninguém” é mesmo o primeiro epitáfio que se tem notícia? -
Essas coisas de datação, de cronologia, trazem dificuldades científicas.
Às vezes, as descobertas arqueológicas se fazem controversas. Li,
entretanto, um livro, "Ecometria do silêncio", de um escritor
chamado Alberto Pucheu, que dizia ser esse o primeiro epitáfio de que se
tem notícia. Não vejo motivo para duvidar. Pareceu-me ser não só o
primeiro mas o único epitáfio que se escreve até hoje. Penso que todos
os outros são sempre secundários em relação a ele. Sendo assim,
resolvi me apropriar do escritor mencionado.
- Há em meus escritos uma
forte base intertextual, como uma vez escreveu Marco Lucchesi. Algumas
palavras de muitos escritores atravessam as minhas. Thomas Mann, Fernando
Ferreira de Loanda, Maiakóvski, Juan Luis Panero, Dogen Zengi, José
Severiano de Rezende, Parmênides, Machado de Assis e Aristóteles
quiseram caminhar pelas páginas desse último livro. Sou levado também a
exercer diálogos com outros poemas ou livros ou quadros. Necessito de
frases alheias, de obras alheias, como de comida... e elas vão deixando
de ser alheias... vão sendo minhas... e eu vou deixando de me ser... vou
sendo elas... as frases ganham o cheiro de minha carne, o percurso de meus
intestinos e o pensamento que me quer escrever... eu apreendo cheiros
alheios, não experimentados até então. São como membros que me ampliam
para o mundo, as frases. Utilizo os outros apenas quando não podem deixar
de ser um terceiro entre eles e mim. Criamos juntos um terceiro corpo, em
cuja invenção me descubro, mais do que sozinho. Assim, como em Rimbaud,
e para sempre: Eu é um outro.
-
Fôrma parece-me ser para bolos, tortas, coisas de cozinha. Quando faço,
por exemplo, torta de sardinha ou musse de aspargos ou de cupuaçu, uso
uma fôrma, que é necessária para realizar o que quero. Consigo até
bons resultados, com elas. Já a forma, nos escritos, na arte, é uma
energia de sustentação indiscernível do próprio conteúdo. Seria
melhor, inclusive, abandonar esses termos dicotômicos (forma e coneteúdo),
inventar outros que os ultrapassassem, pois não consigo pensar neles
separadamente. A inquietação é da intensidade da vida me atravessando e
do esforço de descoberta de uma fala própria, que me é necessária,
pois sem ela não sei viver. 6.A
sua poesia em ECOMETRIA DO SILÊNCIO invade o mar da prosa, o resultado é
harmonioso, diferente, intenso. Aonde acaba a poesia e começa a prosa? -
Normalmente, nos manuais de literatura. Não em "O livro do
desassossego". Não em "Monsieur Teste". Não em
"Notas do subterrâneo". Não em "Fome". Não em
"Grande sertão". Não em "Kuala Lumpur", de Fernando
Ferreira de Loanda, nem em "Argumentos invisíveis", de Leonardo
Fróes, para citar uns poucos. Mas, ao invés de querer saber "aonde
acaba a poesia e começa a prosa", prefiro colocar sua pergunta de
uma outra maneira: onde poesia e prosa são indiscerníveis? Onde aqueles
que procuram classificações têm de gaguejar? Acho que assim podemos
avançar melhor, buscar fluências no lugar estagnações. Não sou uma
pessoa de fronteiras, mas do desguarnecimento delas. Entretanto, ainda que
meu trabalho tenha uma posição muito clara e uma reflexão sobre o
assunto, penso que o que importa não é exatamente (ou pelo menos em
primeiro plano) a mescla entre gêneros: seria uma questão demasiadamente
"literária". Pergunto-me, agora, então: que
necessidade é essa que para se manifestar tem de desguarnecer
fronteiras? O que me importa é o nevrálgico entrelaçado ao pensamento,
o que tem de utilizar o "literário" para poder descobrir-se e
ultrapassá-lo. Mas não acaba sendo o ultrapassamento do "literário",
justamente seu ápice? - um dos inúmeros paradoxos que a escrita nos
coloca. Fico contente com os seus adjetivos "harmonioso",
"diferente", "intenso"; algumas das exigências de uma
escrita como a minha já estão presentes em seus adjetivos, em sua
observação.
- Li, em Vicente Guedes, a frase que
demarcarva a indiferença demasiado
experiente do imperador Severo: "omnia fui, nihil expedit",
ou "fui tudo, nada vale a pena". É uma dessas frases
definitivas, de um tipo de pensamento que atravessa o mundo em todas as
suas épocas. Sileno, entre os gregos, o citado entre os latinos, Cioran,
entre os romenos, e entre os portugueses... bem, entre os portugueses então
nem se conta. Lembro-me de uma romancista portuguesa dizendo que
literatura é "consolação"... achei sofrido... e belo, apesar
de não assinar embaixo dessa definição, no que diz respeito ao que faço.
Guedes, na frase acima,
traduzia do latim a alma portuguesa. Lembrei-me de vários brasileiros que
conheci no interior e nas grandes cidades, brasileiros desconhecidos com
os quais sempre aprendemos inúmeras coisas. É impressionante o tanto que
temos a aprender quando entramos em contato com o popular que ainda
resiste nesse mundo de massificação. Assim, resolvi traduzir a frase
latina, àquela altura, portuguesa, em brasileiro. Penso haver em
"alguém que não foi nada na vida me disse que tudo valeu a
pena" algo do ser brasileiro, algo do popular brasileiro. Algo com
que eu mesmo, apesar de brasileiro, ainda tenho muito a aprender. Sem dúvida alguma,
para pegar sua deixa via o próprio Fernando Pessoa, "tudo vale a
pena quando a alma não é pequena". E a poesia é essa luta contra a
pequenez de nossas almas. 8.“É
sempre um outro que escreve por mim...” Você concebe o fazer poético
como algo mediúnico? O poeta é apenas um transmissor? Agora em outro
livro, ESCRITOS DA FREQÜENTAÇÃO, há um verso: “Começando sempre por
onde nunca/se sabe” Aonde nasce o poema? Como é o seu processo
criativo? - Intimamente, não tenho a menor dúvida
de que o escritor é um meio, um intermediário. Mas gostaria de tirar
qualquer carga religiosa que essa palavra possa ter. Corremos o risco de,
mantendo a dimensão espírita da palavra, subjugarmos a poesia ao
religioso, o que eu, particularmente, não gostaria de fazer. Não por não
ser possível, mas por subjugá-la a algo que lhe seria exterior em nossos
dias. Aliás, entenda isso como observação e não como provocação,
toda religião tem por fundamento um grande livro de poesia. Deus,
os deuses, ou o quer que seja, são
uma manifestação poética para indicar uma experiência só possível
aos seres determinados pela linguagem. A poesia, tal qual a penso, tal
qual a vivo, não é o caminho para algo além dela mesma: ela é o próprio
caminho... e nós, aqueles que o percorrem, transformando-se, abrindo-se
para a dimensão poética da realidade. Agora, se o escritor é um meio, se é
um médium, o que ele está intermediando? Tenho uma percepção muito
forte de que somos nós que pertencemos à linguagem, de que ela existe
quase que externamente a nós, inumanamente, obrigando-nos a movimentos
involuntários, que passamos a ter de acatar. É apenas por uma ambição
cosmogônica que as palavras necessitam de nós. A palavra, quando
comprometida com a criação, com a sua essência, e não com a mera
comunicação, leva-nos a caminhos inteiramente inesperados, obrigando o
escritor a um espanto constante e, conseqüentemente, a um encontro com o
desconhecido, o que fascina e angustia a um só tempo. O escritor é alguém
que tem por maior intimidade a estranheza. Somos íntimos daquilo que nos
é estranho; o que nos é estranho, torna-se, de nós, o mais íntimo. A
palavra "poesia" vem de um verbo que significa: fazer aparecer o
que não havia antes, de modo que, no aparecer, ainda resguarde o campo de
forças do não aparecimento; pois é isso que o poeta está
intermediando, esse processo de articulação entre ser, não-ser,
linguagem, e pessoa. Mas essa própria articulação já é uma criação
de linguagem, já é fazer aparecer, já é poesia. Daí, a poética ser,
antes de tudo, uma instauração cosmogônica.
9.Na
Cidade Aberta, Escritos é a primeira parte de seu livro ESCRITOS DA FREQÜENTAÇÃO.
Trata-se de uma genealogia poética de uma cidade e suas palavras. As
palavras são cidades? As cidades são palavras? Tudo é palavra? Tudo é
cidade? -A
cidade atravessa os escritos. Do primeiro ao último. "Na cidade
aberta" é o título do primeiro livro, de uma das partes de
"Escritos da freqüentação" e de outra de "A fronteira
desguarnecida". Mesmo em "Ecometria do silêncio", se não
há diretamente esse título, há poemas trabalhando a cidade, por ela
sendo trabalhados, como "Sebastianópolis" e "P.S. para um
poema inacabado", para citar poucos exemplos. Vivencio constantemente
a luta entre a conquista de intimidade com a cidade e sua impossibilidade.
A cidade, nos livros, se apresenta com elementos do Rio de Janeiro, cidade
que habito e que me habita. Cidade que obriga uma desordem no corpo e nas
coisas, que berimbola toda e qualquer fronteira, que implanta uns membros
errantes em outros membros errantes. Cidade de convívios, de esbarros, de
adesões. Cidade que é, sobretudo, a própria conjuntura de articulação
poética da realidade. A cidade, para mim, é a possibilidade de superação
das dicotomias, caducas, através de uma "genealogia poética",
como você bem viu, ou de uma instauração cosmogônica, como havia dito.
A cidade é a tentativa de confluência de todos os elementos da realidade
(inclusive a irrealidade), acionada pela aventura da linguagem. Suas
perguntas indicam o que os escritos pensam, e poderia transformá-las em
afirmações: "as palavras são cidades"; "as cidades são
palavras"; "tudo é palavra"; "tudo é cidade"...
E há reticências por todos os lados. 10.“Escrever
para inventar uma/vida que se apaga” A eternidade é a busca maior do
poeta? -Não,
não me parece ser a busca maior. Parece-me ser a tentação maior, o
perigo maior de deslocar o escritor da força de desubjetivação que uma
obra implica para a força narcísica que também faz parte de nós. É
possível ver atitudes caricaturais tendo por fundo essa busca de
eternidade, que de nada adianta depois que morremos. E enquanto estamos
vivos, parece-me muito presunçoso buscar a eternidade, pelo menos nessa
acepção de uma imortalidade literária, de um querer que a obra perdure
para sempre, já que isso independe totalmente do escritor e, mesmo, de
seu tempo. A
busca maior do poeta parece-me ser aquela que é a mais simples, a mais óbvia,
à qual todo o cotidiano de quem escreve está submetido; nas palavras da
frase que você citou, aparece simplesmente como: "escrever".
"Escrever". "Escrever" é a busca maior do poeta.
"Escrever"... não para representar uma vida em busca de
imortalidade, mas "escrever" acolhendo uma vida que se apaga,
acolhendo a extinção, sendo inventado por uma intensidade única, poética,
que nos quer atravessar... que nos quer - inventar. Para o poeta, inventar
e ser inventado é a mesma experiência. Assim, escrever é ser inventado,
no mesmo movimento do que está sendo extinguido.
11.“Um
fim nasce abortado. Nenhum ponto/é final.” O poeta vive escrevendo e
reescrevendo o mesmo poema? -Assim
como a cidade é sem começo (todo começo já está na cidade), uma
cidade é sem fim, todo fim já estando, também, na cidade. Uma cidade é
puro movimento simultâneo (e tensivo) de nascimento e morte, de geração
e aniquilamento, de caos e ordenamento das multiplicidades, das
individualidades. Não consigo pensar em um ponto final desse
movimento-cidade, mas apenas em um possível término (e geração) de
individualidades que compõem a cidade. Mas a cidade é... desde sempre...
e para sempre... essa articulação entre o mesmo e a diferença. Nela,
acontece cidade, acontece criação, acontece obra. Como se manter na
medida dessa tensão, no mínimo ponto de equilíbrio (beirando
perigosamente o desequilíbrio) dessa junção? Vários poemas, então,
são reescritos ao longo dos livros que escrevo; não com o intuito de
substituição do anterior e sim como descoberta de uma nova
possibilidade, de uma nova singularidade, inteiramente autônoma em relação
à anterior, mas com ela também se articulando com grande intimidade,
tratando-se, sempre, da cidade. O que estou querendo dizer, sucintamente,
é: o poeta reescreve o mesmo pela diferença. Mas é apenas pela diferença
que ele pode recriar o mesmo e recriar-se pelo encontro da diferença com
o mesmo. 12.Qual
o papel do escritor na sociedade? -O
papel do caderno. O papel da máquina de escrever. O papel do guardanapo
ou o do pão ou o do cigarro. O papel da nota fiscal pode servir ao
escritor. Às vezes, chega a ser um papelote. Outras, até um papelão.
Pode ser um papelejo, um papelucho, um papelório. O branco papel da tela
do computador saindo pela impressora. Para mim, vai ser sempre o papel do
esquecimento ganhando ares de memória, de invenção, de descoberta. Como
disse um transeunte a outro, no momento em que eu, comovido, passava por
eles, na Glória: "assim, na bucha, eu não falo não, mas deixa eu
me esquecer que, de repente, eu falo". O papel do escritor é, em
todos os acima mencionados e ainda em todos os outros possíveis,
escrever, escrever, escrever, recolhendo do inaudito uns tiros de
espanto... balas ferindo para fazer viver.
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