ENTREVISTA COM ARTHUR DAPIEVE |
Toda
a sexta-feira o jornalista Arthur Dapieve lança luz sobre os cotidianos
ocos. A sua coluna, no O Globo, é um point certo de atualização, sem
deixar que a saudade acabe sendo a “saudade que eu sinto do que ainda não
vi”. Ali é dado ao leitor doses homeopáticas de década de oitenta.
Assim a juventude que não viveu a época pode se deliciar e saber coisas
que só quem viveu sabe. Portanto ninguém melhor do que ele para escrever
um perfil sobre Renato Russo. O livro se chama RENATO RUSSO - O trovador
solitário. É uma Co-edição Prefeitura do Rio de Janeiro, Secretaria
Municipal deCultura/RioArte e Relume Dumará.
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Havia condições propícias para o surgimento do rock na década de
oitenta? _ Sim. Duas condições
fundamentais e complementares. Uma, o impacto (um pouco) retardado do
movimento punk, com sua filosofia do faça-você-mesmo. Outra, a abertura
política (lenta, segura e gradual), que ia afrouxando a censura e
permitindo que as pessoas realmente conseguissem fazer-elas-mesmas. O que foi a rádio
Fluminense para o rock brasileiro? _ Foi a mãe do rock brasileiro
dos anos 80. O Circo Voador foi o pai. Sem esses dois pólos, mesmo bandas
de outros estados não teriam conseguido despontar. Muita gente pensa que
o rock sumiu das paradas apenas aqui no Brasil. Mas o
rock da época, o inglês, também sumiu do mapa. Foi alguma mudança na
estratégia de marketing das gravadoras? O Cult, Cure, Alarm, Dexis,
Echo
sumiram? _ Acho que o rock como
linguagem se esgotou. Por que o punk demorou
tanto a chegar no Brasil? _ Falta de informação.
Imagina o que era importar discos ou revistas estrangeiras naquela época.
De qualquer forma, o disco dos Sex Pistols e o primeiro Clash saíram aqui
relativamente cedo, em 1978, creio. Além disso, o movimento punk sempre
teve muito a pecha de ser subversivo e de esquerda... Logo, ainda sob
regime militar, e sob tudo o que ele implica em termos de mentalidade,
ouvir ou fazer punk rock era ainda mais "perigoso" para o
establishment do que fazer, por exemplo, hard rock. Você escreveu um
perfil aobre
Renato Russo. Ele é a figura mais importante
do chamado rock Brasil? _ Ele é a figura mais popular.
É também a figura que eu mais aprecio. Mas acho que, a rigor, ele divide
com outras pessoas a responsabilidade por ter tornado esse rock feito nos
anos 80 um sucesso de público e de crítica. São eles, Cazuza, Arnaldo
Antunes, Lobão, Lulu Santos, Paulo Ricardo Medeiros... E talvez eu ainda
esteja esquecendo de alguém. Havia algo de messiânico
no Renato. Ele tinha a consciência disso? Até que _ Tinha consciência. E tanto
se envaidecia quanto se preocupava com isso. Ele alimentava nos palcos,
dando conselhos, fazendo as pessoas atenderem aos seus getos etc, mas no
que descia de lá, ele entrava em crise de consciência, sabendo da grande
responsabilidade que é fazer cabeças. A Legião Urbana era
Renato Russo? _ Não. Claro que o Renato era
um gênio, mas o trabalho dos outros costuma ser subestimado. As letras
eram dele mas as melodias eram divididas quase por igual. Não existiria
Renato Russo sem Legião, assim como não existiria Legião sem Brasília. Por que o Negrete saiu
da banda? Foi mesmo indisciplina como nos diz o
Dado? Os outros músicos da Legião faziam figuração? _ Indisciplina em relação ao
rígido método de trabalho que a Legião adotou, isso mesmo. Ele era (e
ainda é) um roqueiro romântico, pouco pragmático. Quanto à figuração,
creio ter respondido acima. Por
que o Renato demorou tanto para assumir publicamente a sua homossexualidade?
_ Medo de influenciar as
pessoas com seu próprio posicionamento. Ele sabia da força que tinha a
sua palavra. Qual era a ligação
do Renato com o Menudo? _ Não sei, imagino apenas que,
como ele escutava de tudo, tenha escutado os Menudos também. E gostado da
música que gerou "Hoje a noite não tem luar". Como vê o trabalho de
Jerry Adriani interpretando os clássicos da Legião? _ Gosto muito do disco. Acho
que ele nos ajuda a entender a força daquelas canções, mesmo quando
vertidas para outra língua. Há alguma revelação
“bombástica” no seu livro? Algo novo sobre o líder da
Legião? _ Bombástica, não. Nova sim.
Conto, por exemplo, quando e em que circunstâncias o Renato descobriu que
era soropositivo. Ele estava internado para desintoxicação numa clínica
de Botafogo no final de 1990. Além disso, para poder passar o Natal com a
família, em Brasília, ele tacou fogo na clínica, pressionando-a. Depois dos três
primeiros discos houve uma mudança na carreira da Legião.
Do punk rock passaram para a fase das baladas. Deu certo. Tudo que o
Renato
bolava virava sucesso? Ele fracassou em algo? _ Profissionalmente, não, ele
é o cara mais bem-sucedido do Rock Brasil. Mas existencialmente acho que
ele não levou adiante todos os projetos que tinha. Ter contraído o vírus
da Aids talvez tenha sido o seu grande fracasso. Como vê a retomada do
rock dos anos oitenta? _ Acho natural. À distância
fica mais fácil separar o joio do trigo, e há bastante trigo. Fico feliz
quando vejo, por exemplo, o Plebe Rude voltar a lançar disco e a fazer
show. Como Renato lidou com
a fatalidade? )))) eu não consigo ouvir o último
disco, é tão triste)))) O The Who dizia que queria morrer antes de
ficar
velho? Renato tinha esta consciência? _ Ele lidou como seria de se
esperar de qualquer um: primeiro, desesperou-se, depois mergulhou numa
distração, o trabalho. Pelos nossos papos, imagino que o Renato teria
gostado de ficar velhinho ao lado de um namorado, cuidar do filho, fazer
cinema, ser escritor etc. Mas o instinto autodestrutivo dele sabotou esse
plano. O que Russo leu, ouviu
e o influenciou como artista? _ Muita coisa... Ele leu muita
filosofia, por exemplo. Russo vem, dentre outras fontes, de Bertrand
Russell, filósofo inglês, e de Jean-Jacques Rousseau, filósofo francês.
Além disso, lia muita poesia: Pessoa, Drummond, Auden, Rimbaud... Ouvir,
então, ele ouviu de tudo, tinha um conhecimento enciclopédico da história
do rock. Mas talvez ele tenha gostado _e se deixado influenciar _ mais dos
_ pelos _ Beatles. Fora isso, ouviu muito rock progressivo e punk rock,
muito Bob Dylan. Há outra coisa importante: o que ele viu? Renato era
tarado por cinema, quase tanto do que por música. Adorava Godard, por
exemplo. Há quem diga que
ninguém é insubstituível. Não, não? _ Não, eu acho é que todos nós somos insubstituíveis. Sendo
o Renato ainda mais impossível de substituir do que quase todo mundo...
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