ENTREVISTA COM JOSÉ CASTELLO |
1.O
que Inventário das sombras revela sobre a personalidade dos
escritores que estão no livro? Nas entrevistas, em geral, os jornalistas se detêm
naquilo que os entrevistados lhes dizem. Pode-se forçar uma entrevista,
quase torturar o entrevistado, mas quase sempre se fica nas palavras. Em
Inventário das Sombras, procurei ir além disso. Como? Primeiro,
relacionando diretamente, e com o mesmo peso, a vida (as respostas) e a
obra do entrevistado. Dando à obra o peso de respostas, tanto valor
quanto à palavra do criador. Entre vida, palavra e obra fica, em geral,
uma zona de sombras, que escapa ao jornalismo, mesmo ao melhor jornalismo.
O que fiz, certamente, não é jornalismo. O que é? Não sei que nome
dar, pois também não é crítica literária. Chamei de “retratos”.
Gosto da palavra pelo que ela guarda de íntimo, de pessoal. Eu tentei
trabalhar com essa zona mais pessoal, e também, sem me preocupar com gêneros
ou cânones, procurei traçar uma visão mais pessoal dos artista que
escolhi. 2.Bispo
do Rosário é tão fascinante assim? O que a loucura tem de intrigante a
ponto de equiparar um louco a outros escritores “racionais”? Não
existe essa divisão, loucos de um lado, racionais de outro. Todos, em
nossa vida diária, lidamos um pouco com nossa “loucura” (isto é, com
nossos aspectos irracionais, que ficam numa zona de sombra que não
podemos alcançar). Ocorre que um “louco” de carteirinha, como era o
Bispo, é em geral um sujeito no qual essas fronteiras ficam mais
expostas, mais visíveis. O “louco” não tem satisfações sociais a
dar, ele faz apenas aquilo que deseja. Não estou fazendo uma defesa da
loucura, ou idealizando-a, a loucura inclui também muito sofrimento e
solidão. Mas ela expõe mais claramente algumas coisas que nós, por hábito,
tentamos camuflar. É verdade, não é que o louco exponha, ele é
dominado por essas coisas, mas, de todo modo, elas estão ali. 3.Você
fez o perfil de João Cabral de Melo Neto, Vinícius, Ruben Braga. Há
dois livros sobre Vinicius, o de Moraes e o de Morais. Qual
a diferença? Em
O Poeta da Paixão tentei fazer uma biografia no modelo clássico. A
biografia clássica tenta contar “toda a vida” do biografado. É um
projeto um pouco paranóico, hoje me parece. O biógrafo, se não brinca
de Napoleão, brinca de deus. Um projeto que inclui, por isso, muitos
impasses e que, em geral, fracassa em grande parte. Não foi por outra razão
que o abandonei. Os livros seguintes, incluindo o segundo livro sobre o
Vinicius, são tentativas mais pessoais, de esboçar retratos parciais,
fragmentários, arbitrários até, os personagens que escolhi. 4.Qual
a importância da teoria literária para um jornalista desta área? Creio que existe uma importância, mas ela não é
decisiva. Eu, por exemplo, raramente leio teoria literária, e cada vez me
interesso menos por ela. Tenho dois livros diante de mim: um de teoria
literária, outro de um Kafka, um Dostoievski, um Machado. Escolho sempre,
imediatamente, o livro de ficção. Por isso me considero, no máximo, um
leitor especializado, não um crítico. Tenho todo o respeito pela crítica,
temos grandes críticos no Brasil (Antonio Cândido, Silviano Santiago,
Flora Sussekind, Wilson Martins, etc). Mas não sou crítico, e nunca
pretendi ser crítico, embora às vezes me considerem, só porque escrevo
resenhas literárias (e resenha, mesmo quando contém alguma opinião crítica,
não é crítica). 5.O
que deve ter/fazer um jornalista para atuar no jornalismo literário? Ler. Ler sem parar. Ler de tudo, sem preconceitos.
Ler até o que não gosta. Mas ler sempre. 6.Será
que o curso de jornalismo é necessário para a formação de jornalistas?
Não seria melhor fazer letras e depois, em um ano, fazer uma pós-graduação
em jornalismo? Não creio que o curso de jornalismo deva ser obrigatório
para o jornalista. A defesa esse curso é, me parece, uma atitude
corporativista. Um jornalista de economia, por exemplo, será bem mais
competente se estudar economia. Agora, o que o jornalista deve saber,
obrigatoriamente, é escrever. Escrever bem. Qualquer jornalista tem que
saber. Mas isso faculdade de jornalismo também não ensina. 7.Há
necessidade de se cobrar uma postura excessivamente crítica dos
jornalistas que trabalham com cultura? Ex: Veja. Crítica é uma coisa, sarcasmo, ironia, má vontade,
histeria, outra. A crítica de arte faz muito essa confusão. Pensa
criticamente é refletir, é saber ver os vários lados em questão, é
saber pensar. A crítica sarcástica (que, na área de livros, predomina
hoje em alguns jornais e revistas) é, ao contrário, preconceituosa,
parcial, burra. E grosseira, repulsiva. Ela me causa repulsa. 8.Bruno
Tolentino não esconde de ninguém que era parte da banca do Prêmio Cruz
e Sousa, quando não tendo para quem conceder o prêmio, saiu da banca
examinadora e inscreveu um livro de autoria dele mesmo. Como bom poeta que
é, ele ganhou o prêmio. Muita gente o critica por isso. Como encara o
fato? É mais um ataque, de Tolentino, à hipocrisia? Não conhecia os detalhes do caso. O Tolentino, que
é um bom sujeito, além de muito inteligente, e excelente poeta, tem um
espírito anarquista. Vejo
isso de duas maneiras. Por um lado, é muito bom que tenha aparecido alguém
como ele, que diz as coisas frontalmente, diz aquilo que muitos de nós
pensamos entre quatro paredes, sem coragem de dizer. Respeito muito a
coragem do Bruno. Por outro lado, ele diz muitas barbaridades, que me
chocam muito também. Mas, se não forem grosserias, ou mentiras
deslavadas, mesmo que eu fique chocado, defenderei sempre seu direito de
dizer essas barbaridades. O Tolentino erra freqüentemente o tom de suas
críticas. Tem, além disso, um espírito conservador (ligado ao
catolicismo papista) que me arrepia os cabelos, que me dá até medo.
Quando é grosseiro, me choca, me chateia, não posso aceitar. Ele é na
verdade uma espécie de grande agitador cultural, aquele sujeito que atira
para todos os lados, meio irresponsavelmente. Paga um alto preço pessoal
por isso, devemos registrar. Imola-se até – e parece tirar certo prazer
disso. É uma figura paradoxal. Insisto: discordo frontalmente de muitas
coisas que ele diz, mas por outro lado acho saudável que existam
intelectuais como ele, sem rabo preso, sem papas na língua. Paulo
Francis, de outro modo, foi um pouco assim e até hoje, mesmo depois de
morto, paga um preço alto por isso também. 9.Sobre
a antologia de Heloisa Buarque de Holanda você apresentou argumentos
convincentes e que embasam as suas afirmativas, a principal delas, a de
que os poetas de hoje escrevem para outros poetas. A poesia tem futuro? Ë
preciso escrever para o povo? Qual literatura pode ser pop? Não se trata de fazer poesia pop. Nem de “escrever
para o povo”, já que não sei quem é o povo. Trata-se de escrever boa
poesia, e hoje se escreve muita poesia ruim, e, o que é mais grave,
poesia ruim apresentada como boa poesia, graças à força coercitiva dos
grupos literários que, num país vazio e idéias, acabam impondo suas idéias.
Acho a poesia muito importante. Ela não vai morrer, nem deve se preocupar
em ser pop ou qualquer outra coisa. Mas a verdade é que a poesia
brasileira não anda em boa fase. Depois da geração de Drummond,
Bandeira, Cabral, Vinicius, ficamos com um grande vazio. Temos grandes
poetas isolados: Manoel de Barros, Adélia Prado, Hilda Hilst. Mas só. A
nova geração faz uma espécie de “poesia de professor”. Como é da
universidade que vem importante parte da crítica, ela é muito elogiada,
o que não quer dizer que seja boa. É péssima em geral e é preciso ter
a coragem de dizer isso. Mas
vigora um uníssono tão cerrado que, se você diz isso, parece que está
querendo aparecer, ou causar escândalo, ou de má vontade. 10.Caso
uma editora lhe pedisse para fazer uma antologia com os escritores mais
ilustres da atualidade, qual seria a sua lista?
Prefiro não fazer essa lista. Mas posso me arriscar
a dizer que considero João Gilberto Noll o mais importante prosador vivo
do país. E, depois da morte de Cabral,
Manoel de Barros nosso poeta mais importante. 11.Conversando
com um amigo escritor, ele assinalava a falta de projeto literário dos
novos escritores. Qual falta
faz um projeto literário ao escritor? Acho que isso não é verdade. Basta ler os
escritores mais jovens. Os mais importantes deles, todos têm projetos
literários bastante nítidos. Nítidos, me parece, até demais. Porque
acredito que, para escrever bem, é preciso trabalhar num estado de alguma
inconsciência. Trabalhar no escuro. E os jovens escritores, em geral,
trabalham com as mãos armadas de lanternas bem fortes. Daí às vezes
certa arrogância. 12.Hoje
é mais importante quem do que o que.
Quando o conteúdo vai ser mais importante do que quem escreveu a
obra? Você está certo, deveria ser sempre mais
importante. Mas estamos na época das griffes, hoje importa a griffe de um
vestido, e não o vestido. A assinatura deveria ser um efeito de
qualidade, e não uma causa de qualidade. 13.O
e-mail ressuscitou a carta. A internet é a panacéia vendida pela
TV? Qual uso faz da internet? Leio e passo emails, sobretudo. Consulto os jornais.
Leio sempre o caderno cultural do El Pais, por exemplo. Poucas coisas
mais. 14.Escritor
sempre diz que lê nas horas vagas, além de ler o que faz? Eu? Caminho no Jardim Botânico, ouço música
(Mozart, Bach, Beethoven, Madredeus), vejo filmes franceses, espanhóis e
italianos no Eurochannel (meu canal de TV favorito), como em restaurantes
vegetarianos, faço alongamento, passeio com meu cachorro pelo bairro. 15.Tem
alguma epígrafe? Gosto muito de uma frase célebre de Clarice: “Há
pessoas que escrevem para fora. Eu escrevo para dentro”. 16.Qual
o papel do escritor na sociedade? Escrever. Escrever o melhor que puder. E, como
escrever é pensar, ajudar o mundo a pensar. Nada mais que isso, eu acho. sobre o autor
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