Entrevista com Claudio Daniel
       

                                
       
       Claudio  Daniel nasceu na cidade de  São  Paulo,
       em  1962. Estudou Jornalismo na Faculdade Cásper
       Líbero,  e  trabalhou como  repórter  e  redator
       free-lancer  na Folha de S. Paulo. Atuou  também
       na  Editora Abril e na Nova Cultural.  Em  1989,
       criou  com  um  grupo de amigos a revista  Gaia,
       dedicada  a  assuntos culturais.  Publicou  dois
       livros de poemas: Sutra (edição do autor,  1992)
       e  Yumê  (Ciência  do Acidente, 1999).  Traduziu
       autores  como Rimbaud, Quevedo, Huidobro,  entre
       outros,  e  publicou  ensaios  sobre  a   poesia
       latino-americana  do  século  XX.  Colaborou  em
       diversas  revistas e jornais literários:  Cavalo
       Azul  (SP),  34 Letras (RJ), Bric a  Brac  (DF),
       Dimensão  (MG),  CULT (SP),  Medusa  (PR)  e  no
       Suplemento  Literário de Minas Gerais.  Publicou
       também  em  várias revistas estrangeiras,  entre
       elas Tercer Milenio (EUA), Serta (Espanha), Tsé-
       tsé (Argentina) e Doc(k)s a lire (França).
       Na  Internet, seus poemas podem ser acessados no
       site    Popbox,    http://users.sti.com.br/efres
       Atualmente,  Claudio  está trabalhando  em  dois
       livros:  A  sombra  do  leopardo,  sua  terceira
       coletânea  poética,  e Geometria  da  água,  com
       traduções de José Kozer. O autor reside  em  São
       Paulo  com sua mulher, Regina, com quem vive  há
       dez anos.
       
       
       Quando   você  começou  a  se  interessar   pela
       poesia?  Quais foram as sensações  do  primeiros
       contato?
       —  A poesia vem das palavras, mas é alguma coisa
       além  de sons e conceitos. Talvez venha  de  uma
       zona  escura  entre a sensação e  o  pensamento.
       Algo  que  se nutre dos nomes e das formas,  dos
       ritmos e das cores. Só posso dizer que por  trás
       de  toda  definição  está um  gozo  animal,  uma
       música  estranha,  um sabor  de  massala  e  uma
       ascese.  Não  sei  dizer  quando  começou,   com
       quantos  anos  corri atrás do coelho  de  Alice.
       Sei   que,   quando  criança,  uma   de   minhas
       aventuras secretas era a de entrar, sozinho,  na
       biblioteca  de  meu  pai: eu trancava  a  porta,
       acendia  o  seu cachimbo italiano e folheava  os
       volumes  de  capa dura. Foi assim  que  descobri
       esse  rosebud que é O corvo, de Edgar Allan Poe.
       A  leitura desse texto nervoso, metálico, foi um
       choque.   As   palavras  tinham   música.   Elas
       cantavam: “... quem te trouxe a meus umbrais,  /
       A  este luto e este degredo, e esta noite e este
       segredo  /  A  esta casa de ânsia e medo...”.  O
       poema provocou reações físicas em mim, algo  que
       não  sei descrever. Depois, li as Flores do mal,
       de Baudelaire: “Uma ilha preguiçosa e molenga  e
       sem  dono  / Em que há árvores ideais  e  frutos
       saborosos;  /  Homens  de corpos  nus,  finos  e
       vigorosos,  / Mulheres cujo olhar tem  franqueza
       e   abandono”.  Aquilo  eram  palavras.  Mas  eu
       sentia  o  sabor,  o cheiro, o calor  táctil  de
       cada  sílaba,  lendo em voz alta, com  pausas  e
       ênfases.    Depois,   vieram   outros   demônios
       familiares: Rimbaud, Mallarmé, Valéry.  Descobri
       com  fervor  William Blake, com suas Canções  da
       experiência;  Trakl,  com  Sebastião  em  sonho;
       Rilke,   com  os  Novos  poemas.  Vieram  também
       Hopkins,  Yeats,  Celan...  a  Semana  de   Arte
       Moderna,  Murilo e Cabral. Eu já estava  tomando
       chá  com o Chapeleiro Maluco, e em breve jogaria
       críquete  com  a Rainha, em seu jardim.  Escrevi
       poemas  antes  dos quinze anos,  mas  não  tenho
       registro deles; o senso crítico falou mais  alto
       que  a vaidade. Aos trinta, publiquei o primeiro
       livro,  Sutra, que já apresentava temas  que  eu
       iria   retrabalhar  em  Yumê:  o   tempo   e   a
       eternidade,  a memória, o silêncio,  o  sexo,  a
       aniquilação.   Assim,  por   exemplo,   em    As
       dádivas:
       
                       os dons
                       da água e do vento
                       silêncio de tigres
                       — o branco
                       areais
                       a areia sem tempo
                       — o branco
                       primícias
                       da sublime
                       desmemória:
                       vôo de borboletas
       
         Hoje,  trabalho em um novo livro de poemas,  A
         sombra do leopardo, em que o tecido poético  é
         costurado  como um jorro de breves  metáforas.
         Gostaria de destacar, dessa coletânea o  poema
         Tocar os poros do verde:
       
       
                       O
                       verde,
                       sua pele
                       ácida. Tocar
                       os poros
                       do verde, florir
                       metálico. Ouvir
                       sua voz de asa
                       e sombra.
                       Olhos, faisões
                       de cegueira.
                       Jóias de irada
                       divindade.
                       Abelhas e lagostas
                       amam-se, odeiam-se,
                       tulipas caem
                       na goela
                       do tempo.
                       Tuas mãos tateiam
                       a nervura imprecisa
                       da cicatriz
                       e não há mar,
                       nem pão, nem página.
                       Alucino-te
                       ao mirar-me
                       no silêncio
                       de uma laranja
                       quadrada.
                       Aqui, nada mais viceja.
                       Lacraias afogam-me
                       em tua lágrima
                       e se fecha a porta
                       esquerda. Toda palavra
                       me fere com sua cor.
                       Quando cessa
                       o canto, calados,
                       ouvimo-nos
                       em um corte
                       azul.
                      
       
       Este  é  um poema com versos breves. A  concisão
       permite  grande  agilidade  rítmica.  Qual  é  a
       importância  do ritmo, para você? A peça  inicia
       com  “O verde” e termina em “azul”, o que não  é
       coincidência. O que é a cor na sua poesia?
       
       
       —    Tudo é um jogo entre o claro e o escuro, o som e a idéia. A
       música dá sentido ao mistério, torna concreto o que é abstrato —
       essa é a função do ritmo. Não se trata de ornamento, mas de um
       princípio construtivo. A tensão no poema, o choque entre luz e
       sombra, alto e baixo, não se resolve na anarquia, no aleatório
       que dissolve todo o efeito estético. É preciso haver unidade
       dentro da variedade de ritmos, dentro da dissonância. Isso é o
       que eu procuro em meus poemas. Tocar os poros do verde é uma peça
       construída a partir de relações entre os sons e as cores, que
       representam estados psicológicos: “Toda palavra / me fere com sua
       cor. / Quando cessa / o canto, calados, / ouvimo-nos / em um
       corte / azul”. A concisão dos versos, além de dar movimento e
       agilidade ao poema, concentra a expressão das metáforas. A
       elipse, por sua vez, cumpre uma função sonora e de sentido:
       ocultar o objeto, para revelar a dúvida. Esse vazio desejado por
       mim, essa ausência de uma figura de contornos nítidos, não é
       apenas um recurso de estilo: forma e fundo são o mesmo, “amam-se,
       odeiam-se, tulipas caem / na goela / do tempo”. Outro poema de
       meu novo livro que gostaria de citar é O poeta pedólatra:
       
       
                       Até
                       a última carícia
                       do prazer atípico, longe
                       dos seios estéreis —
                       plumas ou punhais, não
                       músculos enrijecidos
                       de basalto, suor de metal
                       libidinoso — assim os jaguares
                       mastigam iguanas de poliéster
                       sob o sol. Porém, a lenta
                       desaparição do olhar
                       (estranha metamorfose)
                       faz o tempo esférico
                       ser menos do que o espaço
                       indefinido pelo tato
                       — diálogo mudo
                       entre as mãos e o vazio.
                       (Fica o consolo das narinas
                       o odor — para ele —
                       tão sweet love, sweet honey
                       de pés fortes, grandes e sujos
                       e a voz das palavras, o mar
                       interminável das vogais.)
       
       
       O  contraponto  entre o jaguar e as  iguanas  de
       poliéster produz uma antítese entre o real  e  o
       falso.  Qual  o  lugar  da  realidade  em   seus
       poemas? Qual a importância da realidade  para  o
       poeta?
       
       
       —  O  tempo  é  algo  abstrato,  concebido  pela
       mente.  O  espaço é percebido pela visão  e,  em
       menor  grau,  pela audição e pelo  tato.  Tempo,
       espaço  e movimento formam aquilo que imaginamos
       ser  a  realidade. Para quem sofre de  cegueira,
       no  entanto,  as  percepções são  diferentes:  o
       tempo  é  quase irreal, e as distâncias  só  são
       compreendidas  com o auxílio dos ouvidos  e  das
       mãos. Quando dormimos, esquecemos quem somos,  e
       o  que  é  o mundo; algo similar ocorre, talvez,
       na  loucura. No sono profundo, não há  percepção
       de  formas;  não há altura, largura,  volume  ou
       profundidade. E é provável que, na  morte,  tais
       noções   se   desarticulem   por   completo.   A
       realidade,  assim,  é uma construção  subjetiva,
       pois  depende da ação dos sentidos e  da  mente.
       Em   nossa  própria  consciência  cotidiana,  as
       coisas   não  são  o  que  aparentam:   nada   é
       estático, nada permanece igual a si mesmo,  tudo
       se   altera,   se  transforma  em  outro,   numa
       contínua metamorfose. O que nos faz recordar,  é
       claro,  de  Ovídio e dos disfarces de Zeus,  que
       se  fez de cisne para seduzir Leda e de chuva de
       ouro   para  amar  Dânae.  Também  nos   relatos
       indianos, no Mahabharata, no Ramáyana,  temos  a
       transfiguração   dos   heróis   divinos,    como
       Krishna,  que  assume a forma do universo.  Tudo
       isso  parece  fantástico, mas  acontece  conosco
       todo  o  tempo — com o nosso corpo, por exemplo.
       As   células   nascem  e  morrem,  a  compleição
       muscular  se altera ao longo dos anos, e  também
       a  ossatura, a vitalidade dos órgãos e a textura
       da  pele. Até os nossos pensamentos mudam.  Essa
       constante    mutação,   ou    vir-a-ser,    fogo
       heraclítico,  é a única coisa que não  muda,  na
       matéria;   é   o   único  “real”   que   podemos
       apreender.  E  os  meus poemas, claro,  refletem
       essa eterna metamorfose, como em Até cinzas:
       
       
                        Talvez
                        pétala, bailado
                        mudo, ardência:
                        aqui
                        é onde a seda
                        inflama o azul
                        em amarelo
                        (fosse tingida
                        em volátil púrpura,
                        cicatriz esculpida
                        em outra voz).
                        Algo de felina,
                        ruidosa volúpia
                        em seu desejo,
                        que se consome
                        até cinzas.
       
       
       O  tempo  esférico é o que acaba com a concepção
       de progresso?
       
       
       —    Sem dúvida. No Ocidente, desde o cristianismo, firmou-se a
       idéia de que a história é uma linha reta, evolutiva, da Gênese
       até o Apocalipse. Depois, tal princípio perdeu o sentido bíblico,
       de história da salvação, e ganhou outro significado, o de avanço
       econômico e tecnológico. Prefiro pensar no tempo como esfera, não
       linha reta; como um sonho (yumê) ou jogo cíclico. Nesse sentido,
       não acredito em evolução ou progresso, mas em sucessivas
       mutações; porém, como as possibilidades combinatórias são quase
       infinitas, nesse I Ching ou caleidoscópio ilimitado, temos uma
       variedade de resultados que não pode ser calculada. A matemática
       não seria possível sem as noções de zero e de infinito; a
       filosofia também não, e a poesia dialoga com a idéia e o número.
       Em meu poema Nagarjuna, digo:
       
                       Olho
                       peixe flor
                       tão falange
                       pelicano
                       — pedra até
                       morder
                       o verde
                       leopardo:
                       cego espaço
                       para um galo
                       acender o chá
                       de manteiga
                       e a sopa
                       de cevada.
                       Disse
                       Nagarjuna:
                       por trás
                       das treliças,
                       o avesso
                       do sonho
                       (impalpável),
                       que não cessa.
       
       
       O que a poesia tem em comum com a filosofia?
       —  A poesia é uma forma de pensamento. Quando  o
       poeta   muda  a  linguagem,  ele  age  sobre   a
       consciência:   mudar  as   relações   entre   as
       palavras  é  alterar a nossa  atitude  junto  às
       pessoas  e ao mundo. Por que é assim? O  idioma,
       regido  pela gramática, tem uma lógica  própria,
       que  define não apenas a nossa forma  de  ler  e
       escrever,  mas  também o nosso modo  de  sentir,
       pensar  e  agir.  Todos nós somos aristotélicos,
       pelo  uso que fazemos do idioma. Porém, ao criar
       outra  lógica verbal, outra sintaxe, diluindo  e
       alterando  as  funções normais de sujeito,  ação
       verbal e objeto, o poeta cria uma nova visão  de
       mundo.  Dos pensadores que tenho lido  ao  longo
       dos  anos,  poucos me impressionaram tanto  como
       Schopenhauer,  autor  de obras  maravilhosas:  O
       mundo  como vontade e representação,  Parerga  e
       Paralipomena, entre outras. Dediquei  a  ele  um
       poema, que leva o seu nome por título:
                   
                   
                   Breve,
                   a jornada
                   — água de nenhuma
                   fonte, gema
                   de extinta  mina —
                   não mais que o fulgor
                   de vidros (cristaleira)
                   e o viço de madeira nova,
                   lua líquida. O tempo
                   lacera o verde
                   nos olhos do gato,
                   lepra das flores, ácido
                   que corrói toda cor ou pele
                   em escuro miasma,
                   peixes do nada.
                   Sim, você sempre soube:
                   este é um ofício doloroso,
                   uma ópera ruidosa.
                   Porém, tu foste o tigre.
       
       
       A  existência  da morte, um fato  que  hoje  não
       preocupa  tanto  a  filosofia,  sempre  foi  uma
       questão  central  em Platão, Sêneca,  Descartes,
       Montaigne,  Schopenhauer,  porque  ela  põe   em
       xeque   todas  as  nossas  certezas.  Em   nosso
       íntimo,   mesmo  se  formos  ateus,   existe   a
       esperança  de  uma vida infinita,  de  algo  que
       sobreviva  às mutações. Esse algo  pode  ou  não
       ser  um  Deus interior (Atman); talvez seja  uma
       Vacuidade,  Nirvana budista, ou algo que  jamais
       saberemos, ou sempre soubemos. De todo modo,  se
       “la  vida  es  sueño”, tem de haver  Aquele  que
       sonha este sonho.
       
       
       Você  é  um poeta dionisíaco? Como lida  com  as
       sensações  e  as percepções? Como  vê  o  mundo?
       Como é o mundo no filtro que é o poema?
          
       —  Tudo  o  que sabemos e sentimos vem de  nosso
       contato  com  as  palavras  e  as  coisas.  Quer
       dizer,  da  experiência sensorial e intelectual.
       O  poema reflete tudo isso, nama-rupa. Porém,  o
       texto  poético não é um simples reflexo  ou  eco
       do  “real”,  mas um ente em si, uma  coisa,  com
       sua  lógica interna, estrutural. O poema tem sua
       própria  fauna  e  flora, como queria  Huidobro.
       Não  acredito  na  inspiração, nem  na  “escrita
       automática”  dos  surrealistas,  para  mim   uma
       desculpa   psicológica  para   justificar   maus
       versos.  Concordo com Poe, que em seu  ensaio  O
       princípio  poético  afirma que  a  imaginação  é
       combinatória:  ela faz permutas e simbioses  com
       os  elementos  de nossa memória, que  vieram  de
       leituras  e  vivências. O trabalho  do  poeta  é
       coisificar  as  impressões que vêm  desse  vasto
       repositário de lembranças e obsessões. Ou,  como
       diz  Poe, nessa memorável sentença: poesia  é  a
       “construção    precisa   do   impreciso”.    Com
       Mallarmé, aprendi a buscar "o  verso   que,   de
       diversos   vocábulos, refaz uma  palavra  total,
       nova,    estranha   à   língua   e   como    que
       encantatória”. Apolo e Dioniso,  diz  a  Sibila,
       são  duas  máscaras de um deus sem  rosto.  Onde
       começa  em mim o exaltado, o delirante,  e  onde
       termina  o cerebral, o geômetra? Não sei  bem  o
       que dizer. Sei que a linguagem de meus poemas  é
       planejada; nenhuma palavra é colocada ao  acaso.
       O  ato  de escrever, porém, é compulsivo;  sinto
       um  êxtase  de bacante, de sultão com odaliscas,
       de santo levitando sobre as ondas.
       
       	     O  camaleão alucinado de nossa época acena
       em  duas direções: a primeira, alvorada,  jardim
       de  cerejeiras,  manga  fatiada  num  prato;   a
       outra,  glacial,  cabelos de  Medusa,  escorpião
       mordendo  a  própria  cauda.  Dizendo  de  outro
       modo:  fico  animado com as chances de  um  novo
       humanismo, que vem do encontro entre a  ecologia
       profunda,  o  pacifismo,  a  nova  física  e   o
       budismo   tibetano.   Surge   desse   caldeirão,
       aquecido  por uma nova safra de intelectuais,  a
       hipótese de que a Terra é a nossa única  pátria,
       sem   distinções   entre   etnias,   credos    e
       fronteiras.  Por outro lado, vemos  ressurgir  a
       fênix  mórbida  do  racismo,  do  fascismo,  das
       guerras  coloniais;  e  vemos  a  rapinagem  dos
       grandes   monopólios,  que   tentam   impor   um
       “monoteísmo  de  mercado”,  na  frase  feliz  de
       Roger  Garaudy.  Os  EUA se  arrogam  em  ser  a
       polícia   do   mundo,  e  um   resultado   dessa
       prepotência foram os ataques brutais da  OTAN  à
       Iugoslávia, que motivaram meu poema Olhar  atrás
       do pêssego:
                           
                           
                           I
                           
                   Olhar atrás do pêssego:
                   pálpebras, mãos
                   que se tocam
                   esse canto, algo entre
                   a garganta
                   e a coluna cervical.
                           
                           
                           II
                           
                   Malva túnica, água verde água
                   jasmim é nome de flor
                   a pele (pétala)
                   brutalizada em grafite.
                   Áspero é o tecido da voz, modulada
                   em pontas de agulha.
                           
                           III
                           
                   Todo lugar é aqui, o dentro se expande
                   metal canta metal, florações
                   de lâminas, e o tempo
                   se desfaz. (Ela sorri, manqueja
                   e traz o cego alaúde
                   decorado.)
                           
                           IV
                           
                   Rosbife, queijo de cabra, presunto
                   vinho serbo, esterco ou nada,
                   uns tocam violoncelo,
                   águias bicéfalas, os turcos
                             /se foram com o crescente
                   em ondas: celebra-se
                   o rito bizantino, liturgia em esloveno.
                       
                           V
                       
                   Campa, campânula, campanário,
                   verde-malva em volta, pinheiros
                   o lago, a moça (trigo, centeio)
                   ainda sorri: é esmeralda, mas
                   logo garrafadas, tumulto
                   de pontes que desabam.
                       
                           VI
                       
                   Aqui é a estação do olhar: toda
                             /história é impureza.
                   Alvura, escarlate, azul-piscina,
                   o abismo é sem cor,
                   íblis que te abisma, espelho
                   (desluzido) âmbar. O tempo é ruína;
                   onde cessa, é o canto.
                   
                   
       “Navegar é preciso viver não é preciso”?
       
       
       —  Fernando Pessoa desejou escrever os  Lusíadas
       da  Hora  Morta,  o  épico da twilight  zone.  O
       resultado   é   esse  belo  e  estranho   livro,
       Mensagem.  Aqui,  o  poeta  adotou  o  lema  dos
       antigos   navegantes  portugueses:  “Navegar   é
       preciso, viver não é preciso”. Essa legenda é  a
       exaltação  do  herói trágico,  que  renuncia  ao
       gozo  da  vida  “fútil,  cotidiana,  tributável”
       para  mergulhar na eternidade.  O  poeta  fez  a
       denúncia   do  homo  faber,  do  homem   oco   e
       empalhado,   manequim  ambulante   de   shopping
       centers,  ao  qual contrapõe  a  figura  de  Dom
       Sebastião, o arquétipo do santo guerreiro.  Esse
       poemário  alegórico, em sua riqueza de símbolos,
       permite muitas e diferentes leituras.
       
       Para   mim,   é   uma   metáfora   de   gritante
       atualidade. Nós perdemos a dimensão do  sagrado,
       as  mitologias,  e  trocamos os  valores  morais
       pela   tabela   de  preços.  Nos  afastamos   do
       Mistério,  e  sem ele não é possível  a  unidade
       com  o  Todo.  Em  outras palavras,  não  existe
       ética  sem  metafísica, e nós ficamos órfãos  da
       Divindade.  Hoje,  só  se  discute  economia  de
       mercado,  tecnologia, dicas de saúde  e  beleza:
       como  Fausto,  seduzido  por  Mefisto,  trocamos
       toda  a  cultura humana por uma pobre  visão  de
       mundo  que  nos reduz a robôs. Nesse sentido,  a
       voz  de  Pessoa  é  quase  profética,  oracular:
       precisamos  repensar nossos valores  e  modo  de
       vida.  Será que não fizemos o pacto com o  Cujo,
       o  Tinhoso, o Não-sei-que-diga? Sem a  busca  do
       sentido   mais  profundo,  a  comunhão   com   o
       sagrado,  o homem é apenas “uma besta  sadia,  /
       cadáver  adiado  que procria”.  Fernando  Pessoa
       foi  um  poeta-vidente,  dos  poucos  que  fazem
       sentido hoje, na Era da Banalidade.
       
       Quem  existe,  como poeta, em seu interior?  Que
       vozes poéticas escuta?
       
       —   A poesia vem da poesia, disse Jorge Luis Borges. Vem dos
       livros e autores que lemos. É a leitura e a nossa vivência no
       mundo que definem a nossa relação com o idioma e a linguagem.
       Hoje, ouço o eco de muitas vozes, um imenso coral; e essa
       multidão de timbres, sem dúvida, vem inseminando a minha criação
       poética. Ouço em mim um anacoreta japonês, que viajou com Bashô
       nas sendas de Oku; um trovador provençal, comparsa de Arnaut,
       amante de belas damas, da lírica imprevista e dos duelos; um
       poeta barroco, vizinho de Don Luis de Góngora, para quem as boas
       metáforas não são menos complexas do que as catedrais; um
       romântico, por certo, amigo de Keats, Hoelderlin, Sousândrade; um
       simbolista francês, que fumou ópio com Rimbaud num café imundo de
       Paris; um modernista avesso ao moderno, como Eliot e Pound, para
       quem a invenção verbal é um modo de zombar da idéia de progresso;
       e um cultor de enigmas e labirintos, como Borges. Por certo, há
       muitas outras vozes — sou uma espécie de médium dos autores que
       li. Sei que devo muito a Cruz e Souza, Ernâni Rosas, Augusto dos
       Anjos; a Oswald de Andrade, Murilo Mendes e João Cabral; a
       Augusto e Haroldo de Campos e Paulo Leminski. Por certo, estou
       sendo injusto; mas não seria possível citar todos os poetas a
       quem amei aqui. Devo acrescentar, fora das referências
       literárias, a música de Richard Wagner, em especial suas últimas
       obras, Tristão e Isolda, O Anel dos Niebelungos, Parsifal, que
       despertam em mim um júbilo selvagem, quase sexual. É a música do
       paraíso, ou pelo menos do “meu” paraíso, nesse inferno de gralhas
       desafinadas que nos atormentam, dia e noite, nos meios de
       comunicação.
       
       
       Como  está a poesia brasileira? Concorda  com  a
       matéria publicada na revista Veja?
       
       
       —  A  nova poesia brasileira, produzida nos anos
       90,  possui autores de primeira qualidade,  como
       Carlito    Azevedo,   Claudia    Roquette-Pinto,
       Ademir   Assunção,  Angela  de  Campos,   Ronald
       Polito  e  Jussara  Salazar.  Poucas  vezes,  em
       nossa   literatura,  tivemos  um  conjunto   tão
       expressivo   de   poetas.   Infelizmente,   essa
       riqueza  é ignorada pelos cadernos culturais  da
       imprensa    diária,   que   preferem    noticiar
       amenidades  sobre  o  show  business  americano,
       novelas  de  televisão  ou  grupos  musicais  de
       valor   duvidoso.  Vivemos  sob  o  império   da
       mediocridade,  que  só lê obras  de  auto-ajuda,
       romances  sentimentais ou manuais de  direito  e
       economia.  A  matéria publicada em  Veja  apenas
       ilustra    a   miséria   de   nosso   jornalismo
       “cultural”. A melhor poesia brasileira tem  sido
       publicada  em  revistas de  pequena  circulação,
       mas  de  alta qualidade, como Dimensão,  Medusa,
       Inimigo   Rumor,   Monturo   e   no   Suplemento
       Literário    de   Minas   Gerais.    É    nessas
       publicações,  e  não na imprensa “oficial”,  que
       vamos   encontrar  a  corrente   sangüínea   que
       alimenta nossa literatura.
       
       
       Por  outro  lado,  as grandes  editoras  não  se
       arriscam  a  publicar os novos poetas,  que  são
       obrigados  a pagar do próprio bolso a  impressão
       de  seus  livros, cuja distribuição em livrarias
       deixa  um  pouco  a desejar. Como  diria  aquele
       sósia  russo e mal-humorado de Verlaine,  o  que
       fazer?  Em  minha  opinião,  cabe  aos  próprios
       poetas  a  tarefa de divulgar sua  produção.  Um
       caminho lógico para isso seria a criação de  uma
       revista especializada em poesia, periódica e  de
       circulação nacional, distribuída em livrarias  e
       bancas  de jornal, que espelhasse o que  se  faz
       hoje  de  melhor em nossas letras.  Uma  revista
       aberta à invenção, à pesquisa de linguagem,  que
       fosse  a caixa de ressonância do novo. A crítica
       séria  e  qualificada é exercida hoje  por  quem
       faz   poesia,  por  quem  que  está  atento  aos
       processos de criação, e não por jornalistas  que
       vêem  o poeta como uma espécie de planta exótica
       africana ou libélula rara de Madagascar.
       
       
       Qual  a  utilidade da Internet? Quais sites  lhe
       interessam?
       
       
       —  Se  a poesia do século XX teve influência  do
       jazz,  das  artes plásticas e do  cinema,  a  do
       novo  milênio,  com certeza, será  marcada  pelo
       computador, que permite integrar som,  imagem  e
       movimento.  O  espaço cibernético,  além  disso,
       possibilita  a  edição  de “livros”  eletrônicos
       interativos, realizando a profecia de  Mallarmé.
       O  que não representa a morte do livro impresso,
       a  meu  ver,  mas  amplia as  possibilidades  de
       veiculação  da  poesia. A Internet  significa  a
       superação  das  fronteiras  nacionais.  Hoje,  é
       possível   a   troca   de   informações    entre
       diferentes  pontos  do planeta  numa  velocidade
       nunca  vista.  Isto fortalece as chances  de  um
       universalismo,  a  afirmação  de   uma   cultura
       humana pluralista, rica e diversificada,  o  que
       é   diferente  da  globalização,  que  significa
       apenas   a   dominação  econômica  dos   grandes
       monopólios.  Creio que o caminho para  evitarmos
       o  desastre  é o da integração: somos  da  mesma
       raça,  habitamos  o  mesmo  planeta,  temos   os
       mesmos  direitos e responsabilidades. A Internet
       não  tem  apenas importância para  a  informação
       estética,  mas  para  a transformação  política:
       agora,  não  podemos mais ficar  indiferentes  à
       fome  na África, ao genocídio em Timor Leste  ou
       à  ocupação  do  Tibete pela  ditadura  chinesa.
       Podemos  nos  manifestar,  boicotar,  pressionar
       governos,  exercer a nossa cidadania planetária,
       indo  além dos limites de fronteira. Eu e  minha
       mulher,  Regina,  somos adeptos dessa  guerrilha
       tecnológica.  Dos  sites que  visito,  indicaria
       três:   Popbox,  editada  pelo  excelente  poeta
       Elson  Fróes,  com  páginas de tradução,  poesia
       visual   e   sonora;  Caqui,  especializado   em
       haicais; e o Jornal de Poesia, editado  a  duras
       penas  pelo Soares Feitosa, que é uma verdadeira
       biblioteca virtual.
                                
                                
                                
       O espelho e as coisas
                                
       OLHO-de-virgo,   barriga-de-peixe,    dentes-de-
       leão:  palavras são reflexos. Habitei no espelho
       e  comi serragem, vidro moído, trapos de jornal;
       e  copulei  com  os relógios de  pulso,  com  as
       navalhas, com fechaduras. Sobre a mesa da  sala,
       entre   as   vogais   dispersas   do   alfabeto,
       estilhaços  de ampolas para abolir  a  idéia  do
       tempo.  Os vermes saem pelo buraco da agulha,  a
       palavra  jade é pus, a palavra jalde é cuspe.  A
       palavra  janga está nua, vestida de  alarme.  As
       maçãs  enlouquecem. O verde enfurece as  conchas
       e  a  lesma  pensa na árvore da palavra  despida
       que  sonha.  Tudo  são nomes e  formas.  Lâminas
       cortam  os fios desatados de água estagnada.  Há
       uma  praça onde comprei pêras ou figos, não sei.
       Onde  ouvi a menina dizer eibishuá. A lua  pisca
       um  olho para a jovem parca, ela é cega e surda,
       e  come  entulho  no  banco da  praça.  Sua  voz
       arisca,  bruta, tantaliza: fio de  arame  tenso,
       buraco  de  agulha,  cano de pistola.  Tudo  são
       palavras,  e  palavras  são  coisas.   Que   não
       permanecem.  Tudo queima, e o sol  vegetal  é  a
       urina  de um cão que arde em vermelho. A  poesia
       pode  dizer o tempo que escorrega de seus dedos?
       A  poesia diz tudo e não quer dizer nada  e  seu
       nome  se  escreve no vazio da página,  sítio  de
       possíveis   reflexos.   Tudo   são   simulacros,
       pegadas  no limo do nada. Todavia, o velho  coxo
       sangrado  disputa comida com  o  cão.  A  poesia
       pode  andar de bicicleta, deslancha no mar azul,
       onda  em castelhano se diz ola, nuvem em francês
       se  diz  nuage.  Ela pode ser  escrita  em  pele
       viva,  em  algodão,  no  suor  do  Marrocos,  no
       violoncelo  de São Petersburgo, numa  bodega  de
       La  Habana.  Porém,  a  tesoura  corta  tudo  em
       pedaços.  Permanece  uma  sombra,  um   eco   de
       ruidoso  silêncio.  Que  o  espelho  captura   e
       multiplica   em   um  número   incalculável   de
       reflexos.
       
       
<==