ENTREVISTA COM RICARDO CORONA

 
RICARDO CORONA nasceu em 1962 em Curitiba/PR, onde vive. Na
década   de  80  residiu  em  São  Paulo/SP,  onde   cursou
comunicação  na Febasp (1987). É autor de “A”, plaqueta  de
poemas e desenhos eróticos, em parceria com Said Assal (SP,
ed.   Arte  Pau-Brasil,  1988),  O  sumiço  do  sol,  livro
infantil, em parceria com Eliana Borges (Curitiba, ed. Arco-
Íris,  1993)  e Cinemaginário, poemas (SP, ed.  Iluminuras,
1999).  Em 1996/97, junto com o guitarrista Johnny  Tequila
apresentou em bares e casas noturnas o show poético-musical
Poesia’n’roll.  Em  1998, organizou  a  antologia  bilíngüe
Outras  praias – 13 poetas brasileiros emergentes  /  Other
Shores  – 13 Emerging Brazilian Poets (SP, ed. Iluminuras).
Traduziu poemas de Gary Snyder, Baraka, Ginbsberg e outros.
Atualmente prepara o CD de poesia Ladrão de fogo e edita  a
revista bimestral de poesia e arte Medusa.
=-=-=---=--=---==-=-=-=--====-=-=-=-=-=-=-=-=-=0oooooo00000-
Pergunta: Por que demorou a lançar seu livro? Como é a  sua
relação com o tempo e a maturação do material poético?
Ricardo Corona: Hans Haacke diz que “os produtos artísticos
não  são unicamente um meio de se fazer um nome”. Não tenho
simpatia  pela idéia de individualização da poesia  e  acho
estranho a presença de um poeta de plantão para cada região
do  país  ou para cada segundo caderno de um grande jornal.
Gosto de fazer parcerias e sentir-me atuando no “tecido” da
poesia,  da  cultura.  Talvez por  isso  tenha  lançado  só
recentemente  meu  primeiro  livro  individual  de   poemas
Cinemaginário.
Em  1988,  saiu o livro de poemas e desenhos eróticos  “A”,
uma  plaqueta impressa em serigrafia, quatro cores,  que  é
uma parceria com o artista plástico Said Assal. Em 1993,  O
sumiço  do  sol, livro infantil em parceria com  a  artista
plástica  Eliana Borges. Em 1994, o livro-objeto Bem  feito
pra  você,  uma coletânea de fotos e poemas  e  também  uma
parceria  com  o  fotógrafo Chico Link  e  o  poeta  Flavio
Stankoski. Em 1997, Eliana e eu organizamos duas antologias
de  poesia,  desenho e prosa infantis chamadas “Tirando  de
letra  –  poemas  e desenhos infanto-juvenis”  e  “Sopa  de
letras – poemas e desenhos infantis”.
Mas  nunca  me propus a colocar muitos poemas em livros  de
parceria.  Quis mostrar aos poucos. Em “A”, participei  com
apenas com nove poemas, que se somaram aos três desenhos do
Said.  Nossa proposta não era encher um livro de  poemas  e
ilustrá-lo com alguns desenhos, mas colocar duas linguagens
num  mesmo  suporte  e  com a mesma  importância.  Em  “Bem
feito...”, pelos mesmos motivos, participei com apenas seis
poemas.
Em  1998,  organizei a antologia bilíngüe Outras  Praias  /
Other  Shores, uma seleção de 13 poetas representativos  da
produção  dos  anos  90. Esta antologia  teve  colaborações
expressivas   de   poetas  e  professores   brasileiros   e
americanos: Charles A. Perrone, David William Foster (EUA),
Ligia  Vieira  Cesar, Antonio Risério, Jaques Mario  Brand,
Maurício  Arruda  Mendonça (Brasil). Em 1998/1999  (que  se
estenderá  até março de 2000), a revista de poesia  e  arte
Medusa,  de periodicidade bimensal, que está em seu  sétimo
número e irá até o décimo. Medusa é um projeto elaborado em
parceria  com  os artistas plásticos Eliana  Borges  e  Key
Imaguirre Jr., e os poetas Ademir Assunção e Rodrigo Garcia
Lopes.
Com  a revista e a antologia, aquele princípio coletivo  em
plano  poético, ficou ainda mais forte, mais  atuante.  Por
mais  que  exista  um grupo aqui, outro  acolá,  a  cena  é
dispersa  e o que se vê são “nomes” que puxaram para  si  o
saldo  de  movimentos literários de décadas anteriores,  de
períodos de extensa e intensa produção coletiva. Acho que é
o  tempo certo para projetos como antologias e revistas.  A
areia da ampulheta deste século/milênio está se esgotando e
publicações assim têm um papel histórico importante.  Ainda
mais  num  tempo  confuso  como o  nosso,  de  privatização
poética, promovida, em parte, pela grande imprensa e  pelas
grandes  editoras, mas, principalmente, por poetas  que  se
auto-elegem cronistas de época, disseminando seus conselhos
e  passando  a falsa idéia de que a poesia pertence  a  uns
poucos  privilegiados. Esquecem que é  uma  das  linguagens
mais  antigas  do  ser humano, que pôde se manifestar,  por
exemplo, num índio da tribo Yãnoman de cinco mil anos atrás
e que sequer conhecemos. A poesia, a arte em geral, é maior
do  que  essa  política de personalidades. Sou contra  essa
idéia de funilamento, me irrita esse filtro... Quero pensar
também  o  tropicalismo de Tom Zé, o concretismo  de  Pedro
Xisto,  etc.  Cadê a obra de Pedro Xisto? No meu  entender,
Pedro  Xisto  fez  o  caminho  inverso  e  sua  pesquisa  é
fundamental para se compreender melhor aquele movimento.  O
material  que ele utilizou, partia da concepção do  artista
plástico em direção à poesia e isso faz com que seus poemas
visuais  contenham outros desdobramentos, outros resultados
gráficos no seu designer da linguagem, etc. Nele,  havia  a
simbiose  de artista plástico e poeta que lhe conferiu  uma
poesia concreta singular. E quase ninguém conhece ou lembra
de Pedro Xisto...
É  através  de revistas e antologias que se pode haver  com
essas  diferenças que a história ou as políticas  culturais
acabam soterrando. Esse é um dos papéis históricos que  uma
revista  pode e tem que fazer. Com elas, se pode interferir
no  leque de referências e com a autonomia crítica que  boa
parte da grande imprensa já perdeu. Uma revista serve  para
isso.  Além  de  poder  atuar  de  maneira  sistemática  na
inclusão  de  novos  autores. Além de estar  em  permanente
diálogo com outras linguagens, como a fotografia, as  artes
plásticas, a música, o teatro, etc.
São esses os motivos mais fortes que me fizeram optar pelas
publicações  coletivas antes mesmo de  sair  com  um  livro
individual.  Depois  vieram outros,  que  são  aqueles  que
qualquer  poeta enfrenta: a falta de interesse das editoras
e o processo de maturação, de “pensar” um livro de poemas.
Dito  isto,  posso crer que o tempo não  me  vem  de  forma
abstrata.  Ao contrário, sempre me pareceu uma máquina  que
imprime a ruga.
Pergunta:  Você  classifica Cinemaginário  como  o  "cinema
dentro   do   poema"  mas  não  utiliza  outros   elementos
(cinematográficos) fora da linguagem poética. Como  definiu
este tipo de estética?
Corona: O “cinema mental” que me atribuí é o livre fluxo da
minha imaginação. Utilizei-me, sim, de técnicas de colagem,
montagem, grande angular, zoom, cortes, closes, etc. Mas  é
bom acrescentar que esses procedimentos estão a serviço  do
que  os  poemas têm a dizer. alternar climas  e  alterar  o
tempo  no/do  poema.  Sei  que  esses  procedimentos  estão
presentes  no cinema, num filme de Tarkovski, por  exemplo,
mas também sei que eles não são propriedades exclusivas  do
cineasta.  São, antes, de nossa tela interna, à maneira  de
Ítalo  Calvino, quando diz que a imaginação é cinema  antes
mesmo  de  o cinema ser inventado. Enfim, dei-me liberdade,
escolhi  as  regras, meus interlocutores e  fui  ao  cinema
“Imaginação”.
Pergunta:  Leminski  é  uma angustiada  influência  à  moda
Harold  Bloom?  Como  dialoga com  a  obra  do  poeta  mais
cultuado do Paraná?
Corona: Leminski é uma referência não só para os poetas  do
Paraná,  mas  de todo o Brasil. No meu caso,  o  diálogo  é
pensado  a priori, para que minha poesia não caia  na  mera
repetição  de  sua dicção, que é uma das  mais  fortes  que
conheço.  Quem  quiser se propor ao diálogo  com  a  poesia
deste   poeta,   tem  que  evitar  o  efeito   “zelig”,   a
contaminação  excessiva e imediata ao ponto de  sua  poesia
ficar  parecida com a dele. A poesia de Leminski, em  certo
sentido,  é um vírus. Penso ter escapado disso ao  perceber
que  quase  toda sua poesia contém o exercício da  logopéia
(“a  dança  do  intelecto  entre as  palavras”)  e  escolhi
“exagerar”  no exercício da fanopéia (“um lance de  imagens
sobre  a  imaginação visual”). Só isso, que  é  um  pequeno
desvio  de rota, faz com que não me sinta encalacrado,  nem
apenas  repetindo a dicção leminskiana, mas, sobretudo,  se
deixando  influenciar  na  mesma  medida  em  que  se   vai
conquistando diferenças. A imagem, que é a proteína do  meu
“cinema  mental”,  em  Leminski,  aparece  minimizada  pela
qualidade superior de sua retórica. Mesmo num haicai,  onde
a  imagem  é  tudo,  há  uma identificação  imediata  desta
retórica.  Bem,  considerando que foi um  dos  poetas  mais
preparados de sua geração, já é muito não repeti-lo e ser –
ao  mesmo tempo – influenciado. Adquiri o vírus, mas também
o anticorpo.
Pergunta:  Como  a  poesia paranaense  está  enquadrada  no
contexto brasileiro?
Corona: Já foi dito que o Paraná está ainda construindo sua
história cultural. Entenda-se “construindo” como um  legado
à   disposição,  que  possa  ser  uma  afirmação  positiva,
permanente. Tradições assim não nascem da noite para o dia.
Isso   demanda  muito  tempo  e  o  Paraná  é   um   estado
extremamente novo, recente. Seria injusto compará-lo a  Rio
Grande  do  Sul  ou  a  Minas, por  exemplo.  Guardadas  as
proporções,   acho  que  estamos  bem  representados,   com
poéticas como as de Dario Veloso, Emilio de Menezes,  Paulo
Leminski, Alice Ruiz, Helena Kolody, Rodrigo Garcia  Lopes,
Josely  Vianna  Baptista, Maurício Arruda Mendonça,  Marcos
Prado, Jaques Mario Brand, etc. Isso sem citar artistas que
estão  produzindo  nas  áreas de artes  plásticas,  cinema,
teatro,  etc.  Na  prosa,  em especial,  vejo  um  fenômeno
interessante, que é a velocidade com que se está acumulando
narrativas que trabalham bem a linguagem. Se você analisar,
num espaço de tempo de três décadas, apareceram autores que
fizeram “prosa de arte”, na expressão de Augusto de Campos.
Refiro-me a Paulo Leminski, Valêncio Xavier e Wilson Bueno.
São  apenas  três autores, mas, como disse,  apareceram  em
espaço de tempo curto – e esse dado é importante quando  se
trata de literatura de invenção. O Catatau, de Leminski,  é
1975,  e  é uma prosa experimental, um “romance-idéia”  que
está  em  igual importância com outros romances de invenção
brasileiros,  como  Grande Sertão:  Veredas,  de  Guimarães
Rosa, por exemplo. O Mez da Grippe, de Valêncio, é de 1981,
e  é  uma  “novella visual” que, na minha  opinião,  é  uma
confluência   de  códigos  que  está  ainda   por   merecer
classificação  apropriada. E o  Mar  Paraguayo,  de  Wilson
Bueno,  é  de  1992,  e  é  uma prosa  neobarroca  abismal,
construída no entre línguas, um disparate de ousadia...
Só posso concluir que nossa contribuição vai bem, obrigado.
E nem mencionei Dalton Trevisan...
Pergunta:  Em Cinemaginário a Lua está em diversos  poemas,
inclusive  uma  parte  com a denominação  LUNARES.  Qual  a
representação,  o  sentido  e o  por  quê  deste  lugar  de
destaque em sua poesia?
Corona: Depois que o homem foi à lua, tenho a sensação  que
ela  virou  um  bairro  do nosso planeta,  uma  espécie  de
periferia estelar. Ainda me interessa, em poesia,  destruir
a  decantação  romântica da lua, através de  uma  idéia  de
contaminação,  utilizando-me de descobertas e  referenciais
científicos,  que a materializaram, que a transformaram  em
algo  mais  real.  Quis conversar com a  lua  simbolista  e
zombeteira  de Jules Laforgue, a lua muda de  Leopardi.  Da
minha  parte,  entrei  nessa conversa com  minha  lua-chão,
palpável,  como também foi a de Armstrong – sua experiência
ainda  me  soa  fantástica – que reaparece no  poema  “via-
láctea  via  língua”,  numa  inversão  no  modo  de   olhar
(romântico)  para a lua (inatingível). No poema,  tem-se  a
sensação  de  estar  “pisando”  no  universo  e,   de   lá,
observando a terra:
                   via-láctea via língua
                     eis minha viagem
                    o quasar mais além
                    vai estar quase ali
                      o planeta terra
                      pingo no meu i
               ponto na frase que se encerra
Em  outro poema, “Ondas na Lua Cheia”, valorizo os  efeitos
lunares  verdadeiros  e os utilizo como  metáforas  para  o
intertexto, etc.:
                    ONDAS NA LUA CHEIA
                  (poema sob influência)
                             
                  A lua que tudo assiste
                       agora incide
                             
                           O mar
                     -   sob efeito –
                         ergue-se
               crispado de ondas espumantes
                             
                     Sua língua de sal
                      lambe e provoca
            as escrituras da areia firme (...)
“Lunares”  também se manifesta na contrapartida  de  poemas
“solares” de dois poetas que sempre me interessaram:  Paulo
Leminski  e  mais  recentemente, Rodrigo Garcia  Lopes.  Em
Leminski, apenas um verso: “nada que o sol não explique”  e
em  Rodrigo,  nos  poemas de seu livro Solarium.  Fechei  o
conjunto  de  “Lunares”  pensando  exatamente  nesses  dois
poetas.  Não  que meus poemas tenham sido feitos  a  partir
daqueles,  pois  já estavam escritos antes de  eu  perceber
essa relação. Agrada-me a idéia poundiana de poder escolher
meus  interlocutores.  Pound dizia  ser  preferível  eleger
contemporâneos para uma “conversa poética” do  que  autores
já canonizados. Veja no que deu:
    
    
    E NÃO EXPLICA
    
    
    Praias –
    eu as invento
    à luz da lua alta
    luz borrando zênites
    
    A paisagem, menos
    narcísica
    
    O vento
    as nuvens
    - leveza -
    abrindo sentidos vitais
    
    Você nem percebe
    râmulos aquáticos nascem corais
    
    À noite,
    a lua chama para si
    toda possibilidade de luz
    
    - depois, deita-se
    E não explica
Pergunta: A segunda parte do livro é pontilhada de  haicos.
Há algo que só pode ser dito num haicai?
Corona:  O haicai, na tradição japonesa, como se sabe,  era
(e  ainda é) escrito num contexto de diário, de viagem,  de
experiência, de busca do satori. Não sou um haicaísta,  mas
sempre  gostei de praticá-lo involuntariamente. Os  haicais
que   aparecem   em   Cinemaginário  estão   ocasionalmente
“incorporados”  a outros poemas. Tem um ou  outro  isolado,
mesmo  assim, não seguem nenhuma métrica. Quis assim porque
os aproximo da idéia central de Cinemaginário, pelo que tem
de  montagem, do olho editando imagens, etc.  e  podem  ser
apreendidos  como qualquer outra imagem solta.  Eles  estão
servindo aos poemas como um fotograma serve ao cinema. Acho
que consegui me livrar da rigidez da métrica japonesa e dar
continuidade  a  uma outra tradição brasileira  de  haicais
“infiéis”.
Pergunta: “Para que as musas se movam/ e tudo o mais também
ganhe  movimento/a  paisagem  passa  pela  paisagem.”  Onde
estava quando escreveu “Passagem”?
Corona:  Estava em Curitiba, num dia em que uma  tempestade
de  quinze  minutos  invadiu o  atelier  de  minha  mulher,
Eliana.  O  poema “Passagem” fala disso, ou  seja,  de  uma
tempestade  que  se arma no Sul, passa por Curitiba  e  vai
desaguar  no  Rio  de Janeiro. Na época, estava  totalmente
envolvido  com um texto chamado “A estética  do  frio”,  um
poderoso  imaginário desenvolvido pelo  músico  e  escritor
gaúcho  Vitor Ramil. Escrevi os poemas “Passagem”  e  “Miss
Tempestade” depois de tomar contato com esse texto,  depois
de reler com atenção a ficção Fragmentos from Cold, de Paul
Auster  e também depois da enchente ter inundado o atelier.
Uma   tempestade  não  contemporiza,  não  faz  acordos   e
concessões e isso que me fascina.
O  mais  curioso  é que isso já estava se  manifestando  na
minha  poesia, pois “Paisagem Narcisista”, outro poema  que
desconstrói a “estética do calor”, porque expõe a  paisagem
tropical ao exagero, foi escrito antes que tivesse  contato
com  esses  dois  autores  que  já  estavam  “tramando”  um
imaginário que faz sentido aqui no Sul do país. Gosto dessa
idéia   de   afirmação  da  diversidade,  pelas   vias   da
contradição, da oposição. O estranhamento disso tudo é  que
é  comum ouvir do curitibano que um pinheiro do Paraná  não
se  pode transplantar. Se isso for verdadeiro, que eu  acho
que  é,  então há uma contrapartida através do nosso clima.
Basta  que  Curitiba  encontre  sua  porção  Sul  e  também
influencie  culturalmente Sampa e Rio como uma frente  fria
influencia.  Quero  falar disso também,  até  que  soe  com
naturalidade,  como  é normal ouvir nordestinos  e  baianos
falando de suas características. O genial é saber que somos
todos  brasileiros, pertencentes de uma cultura  polimorfa,
multiforme, heterogênea e antropófaga.
Pergunta:  No poema “e o amor/não é maior/nem  menor/que  o
mar” Qual o lugar que a lírica amorosa ocupa em sua poesia?
Corona: “Na margem de todas as coisas: uma canção”  veio  a
partir  de  uma  experiência numa praia de Santa  Catarina.
Estávamos, Eliana e eu, prontos para voltar para São  Paulo
– na época morávamos em Sampa –, não tínhamos dinheiro, nem
trabalho,  nem  nada  e com filho pequeno...  Estávamos  na
condição  de  esquecidos,  de  humilhados  e  falávamos  da
importância  do amor, enquanto a barra pesava,  no  sentido
que  teríamos  que  voltar e encontrar a  geladeira  vazia.
Estávamos  nos sentindo à margem do sistema e nas  delícias
de  uma  praia  – que é uma margem física –  e  falando  de
amor...  Então o que eu posso lhe responder?  O  verso  que
você  cita  na sua pergunta: “e o amor/ não é maior  /  nem
menor  / que o mar”, vem daí. Quis pegar esse sentimento  e
dar-lhe  uma medida: o mar. Por isso a citação de  “When  I
heard at the close of the day”, de Walt Whitman.
Algum tempo depois, quando retomei o poema, percebi que ali
estavam os quatro elementos: água, terra, fogo e ar. Com  o
uso  do olho em movimento, que vai editando imagens, que  é
próximo  do método cut-up, de burroughs, fiz o poema.  Numa
leitura atenta, as duas colunas (“margens”?) que dividem  o
poema, abrigam os quatro elementos: ar/terra, de um lado, e
água/fogo,   do  outro,  através  de  palavras  correlatas:
“vento”, “pedras”, “ondas”, “atrito”, etc.
Pergunta:  “como  as pedras duras/um dia nascem  dunas”.  O
tempo  em sua poesia provoca rugas e modifica esteticamente
os  elementos  de  seus poemas. Haveria civilização  sem  o
conceito de tempo? O tempo é sempre perda?
Corona:  Como disse, meu conceito de tempo não é  abstrato.
Nem  linear. O tempo imprime, marca, transforma e eu o vejo
nas coisas. “O tempo não pára”.
Pergunta:  “OS HOMENS SÃO TODOS IGUAIS” é um  poema  piada?
Fale sobre.
Corona:  Pode  ser,  mas não foi o que mais  me  motivou  a
escrevê-lo. Claro, tem o humor dos poemas-piada de  Oswald.
Mas  não pensei nisso. Sou mais devedor à charge, ao cartum
e  ao  quadrinho. “Os homens são todos iguais” tem marcação
rítmica  da  fala dos roteiros de histórias em  quadrinhos,
que é feita de uma mistura de respiração nervosa com humor.
Na  gravação  deste poema para meu CD de poesia  Ladrão  de
fogo,  incluí  risadas e cochichos. Acho  que  ficará  mais
evidente esse modernismo que você vê e que sequer pensei ao
escrevê-lo.  Se for um poema-piada, na gravação,  virou  um
poema-risada.
Pergunta:  Qual  a  sua relação com  a  mitologia  grega  e
egípcia? Que elementos destas culturas são matérias de  seu
trabalho?
Corona:  Leio sobre as mitologias (grega, iorubá,  egípcia,
etc.) como vou ao cinema. Mutação. Alucigenia. Obra aberta.
Movimento.  Imaginação. Etc. Se são  conteúdos  para  minha
poesia?  Qualquer assunto é um ótimo assunto, desde  que  a
poesia esteja presente.
Pergunta:  Você colocou notas no final do livro. Ainda  não
se arrependeu?
Corona: Não. Notas atrapalham quando “explicam” o poema  ou
quando  o  autor  se vale delas para tornar público  alguma
correspondência particular que pouco interessa  ao  leitor.
No  meu caso, estão funcionando como créditos que até seria
desonesto  não serem atribuídos. Refiro-me a  diálogos  com
filmes  ou  quando aconteceu alguma parceria  de  trabalho.
Também  usei notas para dar significado a algumas  palavras
Sestranhas”,   como   por  exemplo,  “Tunguso-manchuriana”.
Ninguém  é obrigado a saber o que isso significa. Mas  note
que  os  poemas sobrevivem bem sem as notas. E isso  é  uma
nota à sua pergunta...
Pergunta:  Segundo o poeta Italo Moriconi há  uma  vertente
“esteticista, representada por poetas como Carlito Azevedo,
Claudia  Roquette  Pinto,  Nelson  Ascher,  Josely   Vianna
Baptista, o Jorge Lúcio. De maneiras muito  próprias, podem
ser  incluídos  nessa vertente poetas como Paulo  Henriques
Britto  e  Lu Menezes. A outra vertente seria uma  vertente
neoconservadora, metafísica, representada por Alexei Bueno,
Bruno  Tolentino, Marco Lucchesi. Talvez Ivan Junqueira  se
encaixe  desse  lado.  Paralelamente  a  isso,  existe   um
aprofundamento     e     diversificação     da     vertente
feminista/feminina, com a própria Claudia  Roquette  Pinto,
Clara  Góes  e  muitas  outras. E como emergência  temática
marcante  nesses anos 90, aparece a poesia gay,  que  é  um
belo  rótulo,  mas  que  eu prefiro chamar  de  homoerótica
masculina.  Nessa nova voz, incluo-me eu mesmo  (Italo),  e
poetas  como Antonio Cicero e Valdo Mota, mas nós  3  temos
abordagens  bem  diferentes,  que  qualquer  leitor  poderá
verificar  por conta própria. “ (A gente pode diminuir  mas
tive  que  citar  para você ler, certo).   Em  qual  destas
vertentes se enquadra. Qual escolheria?
Corona: Aqui perto da minha casa tem um boteco que  serve
vários  tipos  de  cachaça. Não vejo problema  algum  nessa
diversidade  de destilados. O problema começa quando  algum
freqüentador, que ainda não descobriu a arte de beber, fica
insistindo  que alguém beba do seu copo porque acha  que  a
sua  bebida é melhor... Esse sujeito normalmente é o  chato
do pedaço.
Pergunta:  Você não parou no livro e vai lançar  um  CD  de
poemas. Fale sobre este novo projeto?
Corona:  Ladrão  de  fogo  é um CD em  que  serão  gravados
trinta  poemas  meus com acompanhamento musical  de  quatro
instrumentistas. Os poemas não serão cantados, ou seja, não
serão  transformados  em letras de música  ou  canções.  Ao
contrário,  serão gravados com entonação  de  récitas  para
ficar mantidas as sonoridades e ritmos internos próprios da
poesia e que muitas vezes são intransferíveis.
Têm  vários  anos que venho realizando récitas em  teatros,
bares,  praças, livrarias, casas noturnas,  etc.  e  com  a
gravação  deste  CD  estou  tendo  um  aprendizado  e   uma
motivação   ainda   maiores.  É   um   aperfeiçoamento   de
experiências e isso é ótimo. No Brasil é bem pequena  nossa
tradição  de poesia gravada, se comparada à dos americanos,
por  exemplo. Então, há uma inquietação da minha parte, por
perceber  que  este  é um caminho que  minha  geração  pode
seguir, interferir.
Inicialmente,  com os poetas provençais, entre  os  séculos
XII  e XIII, no sul da França, se inventou um diversificado
repertório  de  formas e estilos, que, segundo  Augusto  de
Campos, vão do trobar leu (a poesia leve) ao trobar clus (a
poesia  hermética) e ao trobar ric (a poesia rica ou rara),
com  equilíbrio  perfeito  entre  poesia  e  melodia.  Mais
recente  – para ficarmos com exemplos da antigüidade  e  de
agora –, a experiência dos poetas Beats, nos EUA, que  está
na base do surgimento do rock’n’roll.
Os  poetas brasileiros sempre foram tímidos nessa área, mas
com  as  novas mídias, que facilitaram o registro  oral  da
poesia,  eu  acho  que  será  um caminho  inevitável.  Hoje
podemos experimentar mais e, quem sabe, alimentar um gosto,
um  costume de se “ouvir poesia”, que é uma coisa  distinta
de  se  “ler  poesia”. Para entender melhor o  que  estamos
perdendo,  basta ouvir (ler também, claro) “The  Ballad  of
the Skeletons”, de Ginsberg.
Pergunta: A revista Medusa é outro projeto seu. Fale sobre?
Corona:  A revista Medusa não é um projeto só meu. Ela  foi
criada  em parceria com a artista plástica Eliana Borges  e
os poetas Ademir Assunção e Rodrigo Garcia Lopes. Lembro-me
de  quando  nos reunimos aqui na minha casa,  em  Curitiba,
onde  discutimos o projeto poético e artístico  de  Medusa.
Isso depois de centenas de e-mails e telefonemas. Um quebra-
pau danado. Lembro-me também que tinham três nomes na mesa.
“Calibán”  (depois saiu uma revista carioca com esse  nome)
sugerido por Rodrigo, “Canibal” por Ademir, e “Medusa”, por
mim.  Quando o núcleo editorial da revista estava  formado,
fizemos  uma votação e “Medusa” ganhou. Os três nomes  eram
fortes e bastou uma votação para resolvermos. A partir daí,
o   mito/mote   se   desdobrou  em  várias   idéias-valise,
funcionando como impulso para nosso projeto de  revista.  A
idéia de subconsciente popular, defendido para a mitologia,
prevaleceu. Todos tinham uma metáfora medúsica  na  cabeça.
Fizemos/fazemos disso uma espécie de mitocrítica. Como  por
exemplo: as várias cobras da cabeça de Medusa – e agora  me
refiro ao mito – me parece ser a leitura, ou o ícone,  mais
acertado  para  uma  época que se afirma pela  diversidade:
cada  cabeça uma sentença, cada língua um veneno,  etc,  e,
tratando-se  de  cobras, não há dúvidas de  que  o  que  se
coloca é a diferença, a vitalização do que é dessemelhante,
contraditório,  etc. O fim do período utópico  das  escolas
literárias de vanguarda colocou-nos algumas questões:  Como
pensar  uma  revista,  que é, necessariamente,  um  projeto
coletivo, em tempos de diversidade? Como não cair  no  mero
ecletismo?  E como trazer o coletivo para uma  revista  sem
adotar  a  visão  diminuidora de alguns  críticos  sobre  a
cultura feita nos anos 80/90? Conheço algumas revistas  que
já  no  título entregam sua baixa auto estima. Medusa  não.
Medusa  é  uma mulher com cabeça de serpentes!  É  um  mito
forte,   polêmico,  feminino  e  que  teve  seu  nascimento
vaticinado pela coragem de blasfemar. Disse Medusa: “Eu sou
mais  bonita que as deusas do Olimpo!” e Zeus a transformou
em criatura horrenda. São muitos os motes que este mito nos
dá  para  meter  cobras e visões na babel contemporânea.  O
olhar   petrificador  (paralisador)  do  mito  Medusa,   na
revista,  transmuta-se em visão aprofundada de  determinada
obra.  A cada edição, “petrificamos” um poeta recente,  com
miniantologia  de  sua  produção, o que  significa  mostrar
densidade  contra a idéia de ecletismo que corriqueiramente
tem-se apresentado por aí, com mosaicos de poetas e poemas.
Não  acreditamos  nisso.  A época  pede  densidade  para  a
diversidade. Na revista, esse conceito também se  manifesta
nas  grandes  angulares  (também  chamados  “dossiês”)  que
costumamos fazer com determinado artista que tenha uma obra
extensa  e  ainda pouco difundida. Neste caso, apresentamos
uma  miniantologia de seu trabalho, ao lado de  entrevista,
ensaio  e  fotos.  Enfim,  “petrificamos”  criticamente   o
trabalho/pensamento/processo  de  criação  de   determinado
artista. Com isso estamos interferindo diretamente no leque
de referências.
Pergunta:  A  revista  Veja publicou  uma  matéria  em  que
ridiculariza   os  poetas  cariocas  e   em   matéria   diz
ironicamente  que  os  poetas  “(...)  quem  diria!   ainda
existem”.  Como encara a “polêmica”?  Será  que  a  matéria
acaba com o marasmo?
Corona:  Engraçado,  mas achei que a matéria  é  que  auto-
ridiculariza a revista, pois tratou o assunto  poesia  como
modismo,   comportamento  de  época,   etc.   Isso   acabou
ridicularizando  tanto o jornalista que a escreveu  como  a
revista que o publicou.
Pergunta:  Como  encara a internet  e  os  novos  meios  de
divulgação. O livro acaba?
Corona: Na minha opinião, essa discussão de o livro  acabar
já  foi  problematizada e também resolvida,  exaurida.  Mas
vamos lá: A invenção do cinema não ia acabar com o teatro?,
a  tv  não ia acabar com o cinema?, e agora net vai  acabar
com   o   livro?!  Não  seria  linear  demais?  Acho   mais
interessante pensar que a internet é o meio de  comunicação
que  mais materializa nosso subconsciente mundial. A partir
daí,  abre-se  uma discussão sobre liberdade de  expressão,
ética,  censura,  serviço público  sem  burocrocacia,  etc.
Tenho  certeza  que o livro continuará nosso  parceiro,  na
estante,  ao  lado do cd-room, próximo dos  cds,  acima  do
computador, ao lado do fax, do vídeo.
A  internet é um meio privado em que se põe rapidamente  as
idéias  em  público. Com o tempo, quero crer que esse  meio
poderá   ser   o  princípio  de  um  exercício   pleno   da
comunicação, onde a “censura” seja apenas ética. Mesmo  com
todo  o  lixo on line, a internet é o meio mais democrático
de  todos, que deveria ser ainda mais, não fosse a ditadura
econômica  que  estamos vivendo, a qual  impede  que  todos
possam comprar um computador.
Outro  fato que me chama a atenção, é o retorno da escrita.
Em certo sentido, através do e-mail, todos estão escrevendo
mais.  A  carta  voltou,  de outra maneira,  mais  veloz  e
telegráfica, mas voltou. O e-mail, hoje, é a carta em  alta
velocidade.  Aí  fico pensando no que disse  Almodóvar:  “o
homem  é  mais  verdadeiro  quando  escreve,  a  humanidade
deveria  calar  a  boca e escrever”. Ou,  como  canta  Luis
Melodia:  “Se  a gente falasse menos / talvez compreendesse
mais  (...)”.  Também acho que esse meio, que  se  dá  pela
escrita,  pela  carta,  acaba equilibrando  a  ditadura  da
imagem e podemos ser mais confessionais. Ana Cristina César
iria adorar...
Pergunta: Qual o papel do escritor na sociedade?
Corona:  Nesse sentido, ainda vivo de horizontes  utópicos.
Acredito  que a poesia se soma àquelas práticas  que  podem
mudar   o  homem.  Não  que  o  poeta  deva  assumir   esse
compromisso.  Mas não há como negar que inventar  poemas  é
bem  diferente  de  inventar  bombas  ou  remédios  falsos.
Devolver o texto para a tribo, eis uma epígrafe para livros
de poesia.

volta