ENTREVISTA COM DEONÍSIO SILVA

 
Deonísio Silva é catarinense de Siderópolis, onde nasceu em
1948.  Vive em São Carlos, onde é professor na Universidade
Federal desde 1981. É Doutor em Letras pela USP.  Autor  de
25  livros.  Está  publicado também em  francês,  espanhol,
sueco, alemão etc. Recebeu diversos prêmios, entre os quais
o  Prêmio Internacional Casa de las Américas, em 1992,  por
seu romance AVANTE, SOLDADOS: PARA TRÁS, num júri presidido
por  José  Saramago, e o Prêmio da Biblioteca Nacional  por
seu  romance mais recente, TERESA, no qual trabalhou  quase
10  anos, e que foi adaptado para teatro ainda antes de ser
publicado e ficou em cartaz em São Paulo durante dois anos.
Mantém   semanalmente  na  revista  CARAS  uma  coluna   de
etimologia  e  origem de frases célebres que  resultou  nos
livros DE ONDE VÊM AS PALAVRAS I e II.
dos  10  livros  mais  vendidos na  editora  Mandarim,  que
publica sua obra, três são de suas autoria: DE ONDE VÊM  AS
PALAVRAS, A CIDADE DOS PADRES, TERESA.
Integra  o  programa Encontro Marcado, da IBM, que  divulga
sua obra no Brasil e no exterior, inclusive na internet. Já
gravou  disco  sobre sua obra, teve textos  seus  adaptados
para  cinema e teatro, entre os quais seu livro de estréia,
EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS, com direção de Antunes Filho.
Frases  de  seus  romances e contos foram transformadas  em
posters,  em  várias línguas, entre a quais A  MULHER  É  A
MELHOR PARTE DA NATUREZA HUMANA.
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Você  é  um  professor universitário. Aonde um sujeito  que
queira   tornar-se   escritor  deve  estudar?   O   que   a
universidade  dá que a vida não pode erigir  dentro  de  um
escriba?
-  O  escritor  aprende essencialmente por  conta  própria.
Acredito nos mistérios e sutis complexidades da vocação dos
ofícios. Não sabemos quais as forças elementares que  levam
alguém  a  gostar  de ser médico e ter o sono  interrompido
durante  a  vida  inteira.  Evidentemente,  somente  com  a
vocação  ele  jamais seria médico. Foi necessário  fazer  o
curso  de  medicina,  que  lhe  deu  os  conhecimentos   da
profissão. No caso do escritor, ocorre algo semelhante. Ele
precisa  dominar a língua em que escreve. Esta é a  segunda
condição,  entretanto. A primeira é a vontade de  escrever.
As   oficinas  literárias  podem  ser  uma  boa  ajuda.   A
universidade  não  pode  ajudar  muito,  a  não  ser   pela
oportunidade  dos  prazeres intelectuais,  pela  paixão  do
conhecimento. A universidade dá muito pouco ao escritor.  O
que  ela mais faz é tirar-lhe algumas coisas. No meu  caso,
tirei a sorte grande na universidade. Encontrei Guilhermino
César  na  Universidade Federal do Rio Grande  do  Sul,  em
Porto  Alegre. Ele era escritor e professor. Era  amigo  de
Carlos  Drummond  de  Andrade, seu  conterrâneo  das  Minas
Gerais,  de  Antonio Candido. Intelectual  respeitado,  era
professor   Doutor  Honoris  Causa  pela  Universidade   de
Coimbra. Foi meu orientador na tese de mestrado, mas a  sua
melhor  orientação  não  apareceu, não  era  oficial.  Eram
nossas  conversas em sua casa, à beira de copos,  pratos  e
rostos num bar ou num restaurante, caminhando pelas ruas de
Porto Alegre.
Quais escritores estão dentro de Deonísio Silva?
-  Dentro de mim, quantos escritores? É difícil dizer.  Fui
seminarista  em minha adolescência e tínhamos  uma  relação
bunda-cadeira-hora,  que  nos  levava  a  muitas  leituras.
Meninos cheios de espinhas no rosto liam Juvenal, Terêncio,
César.  Em  latim, no original. Padre Vieira, Padre  Manuel
Bernardes,  Camões,  Machado.  Hoje  vejo  que  ali,   sim,
fazíamos nosso doutorado. Fomos doutores precoces em muitas
coisas. Mas acho que junto com os clássicos, vieram  também
os  contemporâneos. E a dieta de leitura de um  menino  era
muito  variada. Evidentemente, lemos também Walt Disney.  E
há  alguns  textos  memoráveis,  anônimos,  que  jamais  me
abandonaram.  Como as orações, em latim  ou  em  português.
Quer  um  exemplo? Nunca mais vi em livro nenhum a seguinte
passagem   da   via-sacra:  "comovida  a  ver   Jesus   tão
maltratado, Verônica atravessa intrepidamente a multidão  e
corre  a enxugar a face do Senhor. Que atitude!" Aprendi  a
ser escritor em meio a essas narrarivas todas.
Dez  anos  decorrem  do começo de seu trabalho  no  romance
Teresa. Como é o seu processo de criação?
-  O meu processo de criação literária é sempre o mesmo, eu
acho.  Mas  no caso de romances como A CIDADE  DOS  PADRES;
AVANTE,  SOLDADOS: PARA TRÁS; TERESA  - as coisas mudam  um
pouco   porque  as  tramas  são  precedidas  de   pesquisas
históricas.  Já em ORELHAS DE ALUGUEL, um romance  sobre  o
neonazismo no Brasil meridional, com um um close  sobre  as
formas como ele infestou a universidade, foi diferente.  Eu
comprei suásticas em relojoarias, pedi nota fiscal e,  para
minha  surpresa, os vendedores escreveram: "duas  suásticas
de lata, tantos cruzeiros". Muitas pessoas usavam aquilo no
pescoço  e  ninguém  sabia  onde eram  fabricadas.  Foi  um
escândalo. A revista MANCHETE deu a nota fiscal na capa.  A
revista  ISTOÉ revelou que as bombas jogadas nas bancas  de
jornais estavam vinculadas a esses movimentos reacionários,
entre  os quais abrigavam-se os neonazistas, enfim, tudo  o
que  havia  de  atraso.  Quanto à A MULHER  SILENCIOSA,  eu
conheci uma senhora que nos anos 30 fora condenada à prisão
acusado de ter mandado matar o marido. Jamais foi ouvida no
processo.  Cumpriu  a  pena  e depois  foi  indultada  pelo
Getúlio Vargas. Tinha uma loja onde vendia objetos de  caça
e  pesca. Eu ia lá comprar um anzol - que eu jamais pesquei
ou  cacei  na vida - não saía de sua loja. Queria conversar
com  ela, observá-la. E jamais toquei no assunto.  Ela  não
sabia  que  eu  sabia quem era ela. Este livrinho  (Editora
Mercado  Aberto)  vendeu 20 mil exemplares  apenas  no  Rio
Grande  do  Sul.  Foi muito pouco resenhado.  E  eu  jamais
revelei  como  é que ele tinha escrito, quem era  a  mulher
etc.  Pesquisei  o  processo no forum  e  conversei  com  a
acusada,  então  já  velhinha. E  ela  jamais  admitiu  ter
mandado matar o marido. Nem depois de indultada. De  TERESA
ainda  é muito cedo para falar. O romance foi publicado  em
1997.  Recebeu prêmio da Biblioteca Nacional. Ninguém  pode
imaginar o que foi para mim receber um prêmio da Biblioteca
Nacional. Eu sou mais leitor do que escritor. Eu leio  mais
do   que  escrevo,  evidentemente.  E  ser  premiado   pela
Biblioteca  do seu país é muito, mas muito importante.  Mas
posso  dizer  que  TERESA já meu deu muitas  alegrias.  Foi
levado  ao  teatro ainda antes de ser publicado,  estrelado
por  Angela Sassine, Cacá Amaral e Petrônio Gontijo. E está
para voltar aos palcos.
Você é um autor muito premiado. O que um prêmio pode dar ao
escritor? O prêmio é necessário?
-  Uma  vez o Rubem Fonseca me disse: "prêmios não  ensinam
ninguém  a escrever; mas se o susujeito  já sabe, eles  não
atraplaham". Aliás, o Rubem me disse isso muitas  vezes.  E
me  escreveu isso também, numa de suas cartas. Outro dia eu
lhe disse ao telefone: "que pena, agora a gente só fala  ao
telefone, passa e-mail, não escrevemos mais cartas,  se  ao
menos   estivéssemos  sendo  espionados  e  uma  dia  fosse
publicado  um livro do tipo MELHORES TELEFONEMAS  de  RF  e
DdS".  Na  comissão  julgadora que  me  concedeu  o  prêmio
internacional  Casa de las Américas, em 1992,  estava  José
Saramago.  Fiquei  muito contente. E  sinceramente  não  há
dinheiro no mundo que pague o fato de você ser premiado por
uma comissão julgadora qualificada. A palavra deles é muito
mais  importante do que o dinheiro recebido. Quanto vale  a
palavra   deles?  Não  têm  preço!  Sim,  os  prêmios   são
necessários. São estímulos importantes, reconhecimentos.  O
escritor é muito esquecido no Brasil. E trabalha sempre  na
mais  absoluta solidão. É importante que lhe  digam  o  que
acharam  de seu trabalho. Afinal, ele não escreveu para  si
mesmo.
Como é viver de escrever?
- Viver de escrever é muito bom. Há alguns anos recebo mais
como  escritor do que como professor na universidade.  Isso
dá  uma idéia de como o professor é malpago, não de como  o
escritor  é  bem  pago. Mas eu não me  refiro  somente  aos
direitos  autorais  de  livros. Tive obras  adaptadas  para
televisão  e  teatro,  fiz alguns  roteiros,  tenho  alguns
livros  traduzidos e mantenho uma coluna  fixa  semanal  na
revista  CARAS, a de Etimologia; outra, no jornal de  minha
cidade,   o   Primeira  Página;  outra  na   internet,   em
www.zaz.com.br, cidade virtual, São Carlos.  Se  eu  quiser
parar de ensinar, paro hoje. Mas não quero. Aliás, já tenho
tempo  para me aposentar como professor, mas acho  isso  um
absurdo.  Como  é  que  vou parar de ensinar  se  o  melhor
professor  que eu tive na vida, o Guilhermino  César,  dava
aulas  e  me  orientou  depois dos  70  anos?  Ah,  aqueles
exemplos de meu querido mestre vão valer para sempre. Tenho
51 anos. Ensinarei e escreverei durante tantos anos quantos
o Senhor me der.
É verdade que a poesia nacional, se comparada à prosa,  tem
muito mais qualidade, e, os poetas estão anos à frente,  em
criatividade, do que nossos melhores prosadores?
-  A poesia brasileira é de uma qualidade extraordinária. O
povo  brasileiro tem alma de poeta. Veja os carnavais.  Não
apenas  os  das grandes metrópoles. A música  sertaneja.  A
música  popular braseileira. Não sei por que não chamam  de
popular brasileira também a sertaneja. Não é popular? Temos
uma   linhagem  de  poetas  admiráveis.  Desde  os   tempos
coloniais.  De Gregório de Mattos, tão importante  que  foi
personagem  central de um romance de Ana Miranda,  passando
pelos  Inconfidentes,  aqueles  sonhadores,  dando-nos   no
século  XIX estas figuras fantásticas como Castro  Alves  e
Álvares  de Azevedo. Cecília Meirelles, Drummond, Bandeira,
Quintana, João Cabral, Affonso Romano de Sant´Anna,  Carlos
Nejar,  Alberto  da Costa e Silva, Adélia Prado,  Marly  de
Oliveira, Olga Savary. Vou parar de citar nomes. Vai  virar
lista  telefônica. Quis apenas mostrar as cobras, sem matá-
las  pau com o costumeiro silêncio com que as enterram.  Eu
leio  poesia  e prosa. Há renovações muito importantes  nas
duas   vertentes.  Para  meu  gosto,  prefiro  as   poesias
narrativas e as prosas poéticas. Ninguém está anos à frente
de  ninguém, não. Todos juntos formamos o sistema literário
brasileiro.  Estamos  em marcha. Na marcha,  não  são  mais
importantes  aqueles que caminham à frente ou que  aparecem
mais.
O  que um texto literário pode perder ao ser vertido para o
cinema e o teatro?
-  Ao  ser  transposto para cinema ou teatro, o  texto  não
perde  nada. Ele se torna outro. Este tem sido o engano  de
muitos  críticos:  comparar  dois  processos  absolutamente
distintos.  Esplêndidos  romances  como  A  GRANDE  ARTE  e
AGOSTO, do Rubem Fonseca, ou DONA FLOR e GABRIELA, do Jorge
Amado,  para citar dois de nossos maiores, no cinema  e  na
televisão foram outras coisas. O meio é outro, os  recursos
são  outros.  O  importante  foi  que  cinema  e  televisão
aproximaram  mais  leitores dos  livros  transpostos  e  de
diversos  outros, porque levaram as pessoas às livrarias  e
às bibliotecas. Somente este mérito já os qualifica muito.
Como explica o fenômeno Paulo Coelho?
-  Paulo  Coelho é uma boa pessoa e um bom escritor.  Eu  o
conheci  na  Feira do Livro de Frankfurt;  em  1994,  acho.
Antes,  pensava  que  ele não acreditava  em  nada  do  que
escrevia, que era um espertalhão. Mas conversando com  ele,
vi  que  é  sincero, que é um narrador. Está meio  tonto  e
perdido  neste fim de século, como todos nós. Mas encontrou
um   meio,   o   esoterismo,  de  expressar   suas   perdas
literariamente. O que ele tem que 99,9% não  têm?  Ah,  ele
tem leitores! E nossa literatura foi sempre muito elitista.
Os críticos de um modo geral adoram autor sem público.  Mas
o  que mais incomoda seus desafetos é o sucesso dele.  E  o
dinheiro  que ele ganha. O primeiro crime foi causado  pela
inveja. Caim matou Abel. A inveja continua esculhambando  a
vida de muitas pessoas. O sucesso é sempre misterioso. Você
jamais  sabe o que o público quer. Outro eu comentava  isso
com meu editor, o Pedro Paulo de Sena Madureira. Lancei  DE
ONDE VÊM AS PALAVRAS, que está em sétima edição. Em seguida
lancei   DE   ONDE  VÊM  AS  PALAVRAS  II,   melhor,   mais
aperfeiçoado  e  mais bem cuidado do que  o  anterior.  Não
vende como o anterior. Meu romance TERESA recebeu primeiras
páginas  de  vários cadernos literários em nossa  imprensa.
Vendeu  apena  suma  edição.  A  CIDADE  DOS  PADRES  vende
adoidado, sem nenhuma resenha em lugar nenhum.
Borges  dizia  que se há um telefone no texto  e  nada  ele
significa,  não há  motivo pra eleestar no  livro?  Um  bom
texto pós-moderno é sempre condensado, despalavrado?
-  O  pós-moderno  é  a  maior empulhação  da  universidade
brasileira.  É  conversa  de  gente  esperta  para  enganar
incautos.  Como pode o Brasil falar em pós-moderno  se  nem
sequer  deixamos  o  período  colonial?  Você  entre   numa
livraria e dê uma olhada nos livros que estão expostos. São
todos norte-americanos. A literatura brasileira está lá  no
fundo,  numa  estante.  E  quem quiser  livros  de  autores
brasileiros, tem que encomendar. Porém, para isso  tem  que
saber  antes o que o livreiro não sabe: o nome do autor,  o
título  do livro, e a editora. E pode ouvir em resposta:  "
com  essa  editora não trabalhamos". Há bons  autores  pós-
modernos,   porque  somos  um  país  complexo   e   plural,
convivemos com o primeiro e o último mundos no mesmo  país,
mas   o  tema  em  si,  o  pós-moderno,  tem  servido  para
digressões inúteis na universidade. As exceções  são  muito
poucas.  O  pós-moderno  pressupõe a  superação  de  várias
etapas que no Brasil ainda não foram vencidas. Basta  dizer
que temos a maior reserva analfabética do mundo. Mas é tema
e problema ao mesmo tempo. O mercado editorial brasileiro é
o  segundo  das  Américas. Ultrapassou o do  México  e   do
Canadá.  Parece que não lemos os  livros, mas os compramos.
Lendo  um  pouquinho  de Massaud Moisés  pode-se  chegar  à
conclusão de que há muito poema sem poesia, muito conto sem
a  densidade  e a tensão entre personagens e muito  romance
que  é  novela. A teoria literária é importante para o  bom
escritor?  Quais  os  livros não podem faltar  na  formação
intelectual de um escritor no início de sua carreira”?
-  Massaud  Moisés  é  um  grande  professor  e  um  grande
intérprete  de nossas letras. É uma pena que seu dicionário
de literatura brasileira esteja tão desatualizado. Mas como
ele  pode fazer tudo sozinho? Sua equipe é pequena.  Presto
muita  atenção ao que ele escreve, inclusive  nos  jornais.
Seus livros são referenciais para qualquer curso de letras.
A teoria literária não é muito importante para um escritor.
Mais  importante é ler a criação literária alheia,  ler  os
outros, ler os clássicos, ler os contemporâneos, ler o mais
que  puder. Os escritores brasileiros lêem pouco. Às  vezes
não  lêem nem os colegas. No início de carreira, o escritor
deve   ler   Dante,  Milton,  Camões,  Petrarca,   Machado,
Cervantes,  Dostoiévski.  A  Universidade  Federal  de  São
Carlos  está fazendo um programa de leituras mínimas  e  um
acervo  mínimo  para qualquer biblioteca.  O  projeto  está
sendo apoiado pela Câmara Brasileira do Livro. E está quase
pronto. Os escritores terão um guia-mapa de leitura.
Você  se faz presente até na mídia televisiva. Tem um disco
gravado  sobre a sua obra. Como é ser multimídia? O  que  a
internet  tem  de positivo e negativo? Quais os  sites  por
onde mais navega?
- Estou presente na mídia quase sem querer, por decorrência
de  meu trabalho. Fiz roteiro para cinema antes de publicar
meu  primeiro  livro.  E meu primeiro livro  publicado  foi
adaptado para a televisão por ninguém menos do que  Antunes
Filho, com Karim Rodrigues no papel principal. Na internet,
procuro  escritores,  procuro prosa,  poesia,  crônica  nos
sites em que navego.
O  que  houve para que a literatura brasileira não ganhasse
as massas?
-   Ah,  que  bela  pergunta!  Quem  estragou  tudo  foi  o
modernismo. Rompeu as pontes com o público. No século  XIX,
a  literatura  brasileira tinha leitores. O romance  de  30
também  teve muitos leitores. A partir de 1975 um grupo  de
escritores,  entre  os  quais estava eu,  percorreu  várias
universidades. Fomos muito bem recebidos. Falamos de nossos
livros  e  dos  livros dos outros, nosso contemporâneos  ou
não. Produzimos público. Produzimos leitores.  Mas o Brasil
adora  os  túmulos  e  despreza os  berços.  A  mortalidade
infantil  ainda  é  o  maior flagelo de  nossas  letras.  A
crítica  e  a  universidade, com raras  exceções,  para  se
ocupar  de  nós  ou  de nossos livros,  exige  antes  nosso
atestado de óbito. Isto, porém, está mudando.
Desde a sua prisão, ao ter escrito o seu primeiro conto até
hoje,  o  que  mudou  no Brasil Literário?  O  que  devemos
melhorar? O que é necessário guardar? O Brasil tem jeito?
-  Bom,  acho  que mudou para melhor. Quando  estreei,  fui
preso  e  condenado a dois anos de prisão pelo meu primeiro
conto   publicado.  Hoje,  você  pode  publicar  sem  medo.
Precisamos  melhor o seguinte: precisamos dar mais  atenção
aos inéditos. Os editores não estão revelando autores. Isto
é  péssimo.  Uma literatura assim se empobrece.  Há  poucos
editores lançando inéditos.
O  que  faz  nas  horas  de  descontração?  Ou  você  é  um
"Suorcarrolic”?
-  Não, não sou viciado em trabalho. Gosto de uma boa prosa
à beira de um copo de vinho. Gosto de música, de teatro, de
cinema, de contemplar quadros que me fazem pensar e sonhar.
E adoro futebol.
Muitas  frases de seus livros foram publicadas em  posters.
Você  deve  ter  um  mote  que acompanhe  por  toda  a  sua
trajetória. Qual epígrafe poderia citar?
-  Ah,  sim,  as minhas frases. Às vezes escrevo  um  conto
inteiro  ou um capítulo inteiro para inserir uma  frase  de
que  gosto  muito  e  que  deve  estar  lá,  integrando   a
estrutura,  como  disse o Tchekov, acho: "se  eu  puser  um
punhal no início do conto, preste tenção, porque eu vou usá-
lo".   Gosto muito dessas frases, extraídas de livros meus:
"  quem  não  contesta, não existe";  "as  pessoas  não  se
dividem  em  boas  e  más;  dividem-se  em  favorecidas   e
desfavorecidas"; "o demônio não dura quase nada na gente, é
um  perfume  que logo se esvai"; "admiro os demônios:  eles
desafiam  uma  força superior, sabendo que vai derrotá-los,
mas  são coerentes e lutam até o fim". E por fim a que mais
gosto:  "a  mulher é a melhor parte da natureza humana".  O
Rubem Fonseca me disse um dia que gosta da frase, mas  quem
uma  palavra a mais: humana. "A mulher é a melhor parte  da
natureza"  ,  já  chega, ele disse. Mas, eu,.como  Pilatos,
disse: "o que escrevi, esta´escrito".
Qual o papel do escritor na sociedade?
-  O  papel  do  escritor na sociedade?  Narrar  as  outras
histórias.  Narrando  as histórias clandestinas,  todos  os
escritores  juntos narram a Outra História.  Esta  outra  é
muito mais verdadeira que a oficial.

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