Balacobaco
Planeta Terra
Rio de Janeiro
Entrevista com Gerardo de
Mello Mourão
Todos os Pecados de São
Gerardo
Gerardo de
Mello Mourão, 83, concedeu entrevista ao Balacobaco. Ele falou da convivência
com os livros e dos frutos deste namoro antigo com árvore frondosa da poesia.
Foi simples, sofisticado, inteligente. Enfim mostrou-se por inteiro.
Gerardo por
Gerardo
"Sou
católico, apostólico, romano. Acho que as pessoas de outras religiões têm as
mesmas chances de salvação. Sou cearense há mais de quatrocentos anos. Sou
casado, fui viuvo. Tenho três filhos, o que acho muito importante, pois creio,
como está no Credo de Santo Atanásio, na ressurreição da carne. E os filhos
são a prefiguração da ressurreição da carne. Amo as alegrias do corpo e da
alma. Mas estou afetado pela tristeza existencial (ou será ontológica?) do ser
humano, pois sei, como Léon Bloy, que a maior desgraça que pode ocorrer ao ser
humano é a desgraça de não ser santo. Eu não sou santo. Esta é a tristeza
medular de minha vida. Pois nasci e fui criado para ser santo e manter intacta a
imagem e semelhança de Deus. Tal qual a tinha em meu dia de nascimento, a 8 de
janeiro de 1917, em Ipueiras, no Ceará, e na data de meu batismo, quatro dias
depois providenciado pelos cuidados pressurosos de minha mãe, no dia 12 do
mesmo mês, ministrado na Igreja de Nossa Senhora da Conceição por nosso
primo, Monsenhor José de Lima. Minha mãe era uma pessoa dramaticamente
religiosa. Eu tinha um irmão mais velho. Minha mãe leu na vida de São Luís
Gonzaga, que sua mãe Branca de Castela, fizera um voto a Deus: queria ver seu
filho morto antes que cometesse um único pecado mortal. Quando meu irmão
morreu, ela se convenceu de que seu voto o matara. E retirou de mim a promessa
terrível. Resultado: estou vivo e fui maculado por quase todos os pecados
mortais, os chamados pecados mortais. Quem quiser que os imagine. Etc."
Gerardo de Mello Mourão
O
Começo
Balacobaco -
Sempre há o momento inicial, o primeiro contato com a literatura. Como foi este
momento?
Gerardo de
Mello Mourão - Quando começou? Os antigos diziam que "poeta nascitur".
Assim, creio que, de certo modo, a poesia é uma coisa de nascença. Ela não
tem nada a ver com a literatura, enquanto instituição. A letra é uma coisa
sagrada. A nossa foi inventada por Linos, filho de Orfeu. Letra em grego
é grama. A palavra literatura é uma palavra nova. Os escritores eram
chamados "gramáticos". Depois, a palavra ficou desmoralizada, porque
os "gramáticos" foram acusados de ser meros processualistas do grama,
isto é, das letras.. Na decadência latina, os escritores começaram
a deshelenizar a nomenclatura. Foi inventada a palavra "literatura",
como tradução fiel de "Gramática", isto é, a arte de se expressar
com a "littera" - a letra, e o termo só entrou em voga, efetivamente
na Renascença, depois da Idade Média. Então, os que trabalhavam com o
"grama", isto é, a "littera", passaram a ser chamados não
mais com a expressão grega, mas com voz latina: "literatos". Hoje,
com a revolução da escritura, iniciada no fim do século passado, a palavra
"literato" também passou a ser desmoralizada. Quer ofender um
escritor? Chame-o de "literato". Porque o literato passou a ser também
um presunçoso processualista, como o gramático pós-alexandrino. Creio que a
palavra "literatura" também está desgastada. Não me pergunte por
que, pois a resposta seria longa e cruel.
B - Quais
livros fizeram parte de sua formação?
GMM - Antes da
escola sistemática, os livros de cantadores nordestinos, toda a antologia dos
violeiros, que ouvi de viva voz, na feira e nas festas populares de Ipueiras.
Conheci também, ainda criança, alguns textos de Gustavo Barroso, primeiro
divulgador da obra dos cantadores nordestinos, e depois, na coletânea de seus
mais importantes discípulos, Leonardo Mota e Luís da Câmara Cascudo. Leonardo
Mota foi o mais fértil e melhor recolhedor de cantigas, hoje chamadas de
cordel, sem a erudição de Cascudo, que dizia ser Gustavo a fonte em que todos
aprenderam a poesia dos violeiras e rabequistas. Depois do livro de Leonardo
Mota, "Os Cantadores", que eu lia e decorava aos cinco e seis anos
(sabia ler correntemente aos cinco anos) outro livros que li, deslumbrado, foram
a "História de Carlos Magno e os Doze Pares de França" e "O Lunário
Perpétuo". Minha mãe me ensinou a ler cedo demais. Mas os livros
exemplares que me deram gosto pelas letras foram os clássicos que comecei a ler
na "Antologia Nacional" de Fausto Barreto e Carlos de Laet, dos 10
para os 11 anos. Aos 12 lia autores franceses. Aos 13 traduzia autores latinos e
ainda hoje acho uma das mais perfeitas peças poéticas que conheço o capítulo
de Júlio César sobre a construção de uma ponte na guerra das Gálias. Aos
14, aos 15 e aos 16, traduzia diariamente textos de Ovídio, Virgílio, Cícero,
Homero e Píndaro. Foi um batismo de fogo, quando comecei a entrar na retórica
de Cícero, nos metros poéticos gregos e latinos, que não são medidos pelo número
de sílabas, como os de nossos poetas metrificados, mas pelo número de pés, em
que o ritmo não se marca pelas átonas ou tônicas, mas pelas sílabas breves
ou longas. Pelas vogais breves ou longas. É uma coisa altamente sofisticada. Os
poetas de línguas latinas - italianos, franceses, portugueses, espanhóis,
etc., abandonaram a metrificação latina e inventaram outros ritmos: os decassílabos,
os alexandrinos, as redondilhas, etc. Mas os grandes poetas de língua inglesa,
alemã e até certo ponto os italianos, Dante, Petrarca. Leopardi e mesmo os
contemporâneos, D'Annunzio, e os revolucionários, de Marinetti a Sanguinetti,
etc., guardam o ritmo interior dos versos em dáctilos virgilianos, hexâmetros,
jônicos, trocaicos e outros, como os greco-latinos. E os poetas fundamentais,
que inventaram a poesia contemporânea, como Pound, Rilke, Trakl, Eliot,
Gotfried Ben, Hopkins, os irlandeses, etc trabalharam todos com a música
interior do verso latino e grego. Mas quem souber ler Baudelaire, Rimbaud, Iommi,
Marteau, Claudel, Edi Simmons, Déguy, Raul Young. Efraín e Agustin e os
grandes da poesia contemporânea, e em português, Fernando Pessoa e Mário de Sá
Carneiro, verá que eles cantam nesse ritmo vertebral da música interior do
metro grego e latino: uma breve - duas longas - uma longa - duas breves, e assim
por diante. Sem a contagem de sílabas parnasiana e acadêmica, mas também com
o metro nosso antigo e o verso livre, (destaque-se o grande poeta mineiro Dantas
Mota). O verso, soprado ou coloquial, a linguagem poética, da poesia
propriamente dita, só é feita pelos que sabem, por intuição ou por
disciplina, esses segredos da arquitetura e da tessitura do verso. Não se pode
fazer versos sem sílabas nem poesia sem verso, em que pese à validade das
experiências de construção e des-construção das escolas que andam ou
andaram por aí. Algumas dessas experiências podem até ter sido corretas. Mas
não fazem uma obra poética. É bom lembrar a advertência do segundo Manifesto
de Picasso, sobre os artistas que apresentam pesquisas como obra feita. Não são.
É o caso dos concretistas, etc. E ponha etcétera nisso. Não dou aqui nomes de
poetas vivos, ou que se julgam vivos, apesar de alguns deles estarem mortos sem
saber. Mas alguns entre os vivos sabem estas coisas.
B - Quando
começou a escrever. Quais eram as sensações?
GMM - Muito
cedo. Pensava que estava descobrindo a poesia. Aos 21 anos, com um grupo de
poetas em Buenos Aires - éramos a Santa Hermandad de la Orquídea -
desconfiamos de nossos versos, verificamos que não era a poesia, e queimamos
todos em praça pública, no chamado "Pacto del Victoria"- uma decisão
que tomamos num bar chamado "Victoria". Infelizmente, eu já tinha
publicado alguns desses equívocos, que hoje queimo quando os encontro num sebo
de livros ou num jornal antigo.
B - Atualmemte
o grande problema do jovem escritor é publicar seus poemas. Nestes sentido, no
início, quais eram os seus problemas?
GMM - Publicar
ou não publicar não é problema para um escritor de verdade. Vender livros
também não. Baudelaire, em toda a sua vida, ganhou apenas 17 francos com seus
livros. Kafka nunca teve mais de 40 leitores. Quanto a mim, escrevo apenas para
comparecer com estes livros na mão, diante de Deus, no Dia do Juízo Final, no
Vale de Josafá, que espero esteja para chegar. Acho até que tenho vendido
demais e publicado demais. Deus vai me cobrar isto. Quando um jovem escritor está
aflito para publicar um livro, desconfie do livro e do escritor. Começo por
mim, que desconfio de meu primeiro livro. Depois, tome nota: um dos maiores
poetas de nosso tempo e de todos os tempos, Kavafis, nunca editou um livro em
vida, apenas distribuia, de vez em quando, quarenta ou cinqüenta cópias de um
de seus poemas a quarenta ou cinqüenta pessoas que conhecia em diversos países
da Europa.
B - Teve algum
incentivador?
GMM -
Infelizmente, tive.
O
Poeta e a Obra
B - A sua obra
é nordestina por natureza. O nordeste é apenas pano de fundo e, seriam assim,
regionais seus temas, ou não dá para dissociar o nordeste de sua poesia. Fale
um pouco.
GMM - Não sou
um poeta nordestino. Sou um nordestino poeta. É outra coisa. Por isto sou fiel
às substâncias líricas de minha tribo e de minhas ribeiras da Ibiapaba. Com
licença dos folcloristas e do folclore em geral, não estou aqui para fazer
folclore. Não sou um tipo folclórico. Mesmo as letras de Humberto Teixeira,
nas antologias de Luís Gonzaga, ou os poemas de Ascenço Ferreira, não são
propriamente folclóricos, embora não percam nada de sua grandeza quando a lira
do povo (folk-lore) as absorve e elas chegam a ser repetidas como cantos anônimos.
Passam a existir além de seus autores. Como se dizia da "Ode a uma Urna
Grega", de Keats, quando feito e perfeito, o poema sabe mais do que o
poeta. No dia em que meu poema souber mais do que eu, então sim, terei a glória
de ser o nordestino poeta, isto é, de ter o sopro dos próprios ventos da
terra, de crescer de suas entranhas como um ser que dela recebeu a vida, uma
serpente, um pé de juazeiro.
B - Qual a
principal característica de sua obra?
GMM - Uma obra
não deve ter caraterísticas. Não deve ter caráter. O pensamento puro não
tem caráter. Nietzsche ensina que o futuro pertencerá aos países e às
pessoas sem caráter. Se minha obra tiver importância, desejaria que ela
tivesse a importância de um sopro criador, aquele sopro que Deus soprou nas
narinas do boneco de barro, aquele sopro que Sócrates, Platão, Homero, o Dante
e o Camões sopraram sobre suas tribos, dando-lhes uma Paidéia, para que fossem
fiéis à vocação do ser humano. Esta vocação é a beleza, a verdade. É a
verdadeira alegria de viver, a que Santo Agostinho chamava de "gaudium cum
veritate" - o gozo pleno da verdade O orgasmo da verdade.
B - Existe
algo que os críticos não viram nos seus versos? Algo que nunca verão?
GMM - Não sei.
Alguns, como Tristão de Athayde, Antônio Olinto, o saudoso José Geraldo
Nogueira Moutinho, Franklin de Oliveira e não sei quantos mais, como
recentemente o crítico Wilson Martins e os escritores José Nêumanne, Antônio
Penteado Mendonça e o poeta César Leal, e outros, viram generosamente as
coisas que tenho escrito. Ainda agora, o mesmo Wilson Martins, reiterando o que
dissera em artigo sobre meu último livro, "Invenção do Mar", ousou
dizer que entre os poetas brasileiros para o futuro, Gerardo Mello Mourão é o
nome em que ele aposta. Creio que o futuro é a permanência, a posteridade.
Muitos por aí andam em busca de publicidade. Eu não busco e não quero
publicidade. Eu busco a glória. Só Deus e as Musas sabem se a terei. Em tempo:
o mestre Octavio Paz viu uma coisa em minha trilogia "Os Peãs",
iniciada com "O País dos Mourões": que eu tinha inaugurado o canto
da genealogia da América. E esta é uma velha ambição cosmogônica: fazer, não
a minha genealogia, mas a genealogia do nosso mundo. Re-criar o mundo em que
vivemos, fundando de novo seu passado, porque, como no verso de Eliot, o tempo
presente está no tempo passado e o tempo passado é o tempo futuro. Creio que
é neste sentido que o Wilson Martins insiste em dizer que eu consegui
reescrever os Lusíadas, de um certo modo para lá dos Lusiadas. Não haveria glória
maior: os Lusíadas fundaram Portugal. Quem me dera fundar o meu país!
B - Quem são
seus seguidores? Nesta trajetória, vasta e fértil, algum poeta merece o seu
legado?
GMM - Eu não
sou seguidor de ninguém. Tenho, é claro, referências fundamentais para meu próprio
trabalho. Seria um ato de soberba imaginar que eu venha a ser referência de
algum grande poeta. Aqui lembro com emoção um poeta jovem que conheci, um
poeta inteiro e imarcescível, parte de cuja obra publiquei em livro. É uma
lembrança sagrada para mm, para alguns amigos e para meus filhos. Suicidou-se
silenciosamente aos 21 anos, no esplendor de sua juventude e de sua vida, por
puros motivos de amor à poesia. Sua morte é o legado mais pungente que nos
resta de uma vida poética. O Presente
B - Quando
liguei para você, estava se preparando para uma conferência. Como é a vida de
poeta consagrado?
GMM - Tenho
viajado muito. Menos do que mereço. No princípio acreditei em Rilke, quando
dizia que para escrever um só verso é preciso viajar cidades e cidades e
cidades. Todas as cidades. Mas depois fica aquela fadiga de Mallarmé, para quem
era preciso também ler todos os livros. Leu todos, e depois ficou triste, como
está no verso famoso: "la chair est triste, helàs! et j'ai lu tous les
livres". Por outro lado, o solitário poeta português Antônio Nobre,
exclamava: - "viajar, viajar, todo o planeta é zero". Mas acho que
viajei todas as cidades dos continentes e li todos os livros. É como o coito
sexual. O pai da medicina, Hipócrates, dizia que "depois do coito, todo
animal entristece". Depois de todas as viagens e depois de ler todos os
livros, resta uma tristeza, mas uma tristeza voluptuosa, uma espécie de cio a
que a memória volta de vez em quando. Não sei como é a vida de um poeta
consagrado, e desconfio de todas as consagrações.
B - O exterior
o reverência mais do que o Brasil?
GMM - Desdenho
todas as reverências. Venham de onde vierem.
B - Quem é o
maior poeta brasileiro vivo?
GMM - Tive um
amigo poeta, que traiu sua vocação e acabou Desembargador. Na juventude ele
escrevera um poema que começava assim: "Eu sou o maior poeta do mundo - eu
sou o maior poeta do meu mundo". Ele morreu há alguns anos, e só por isso
não digo que ele é o maior poeta brasileiro vivo. Fiz o prefácio de seu único
livro póstumo.
B - Qual o
maior poeta de todos os tempos?
GMM - O poeta não
é um atleta, um jogador de tênis, para se estabelecer este tipo de competição.
Não são muitos. Mas há vários maiores em todos os tempos. De Homero a Píndaro,
a Virgílio, ao Dante, a Hoelderlin, e assim por diante. Não são muitos. É
preciso ser exigente nesta brincadeira. Para mim, as mais altas referências do
século seriam Ezra Pound, que já morreu, e Godofredo Iommi, que está vivo
numa praia do Pacífico, em Viña del Mar. Mas é uma tolice dizer que este é
maior do que aquêle. É uma coisa que não se mede, nem mesmo com o metro do
gosto pessoal.
B - Quais são
as suas influências?
GMM - Não
tenho influências. Tenho freqüências assíduas de leitura. Além dos já
citados, os textos do Livro. O Livro é a Bíblia, o
Antigo e o Novo Testamento. Os poetas do Livro, os judeus, depois os gregos,
depois meia dúzia de descendentes culturais de judeus e de gregos, como todos nós.
O
Passado
B - Sua ligação
com o integralismo, no passado, impediu o senhor de galgar um espaço maior na
literatura?
GMM - Marinetti
que, por sinal, era senador do Partido Fascista, como Pirandello e D'Annunzio e
tantos outros, advertia que os poetas dignos deste nome não procuram
"galgar espaços na literatura". "Só os cretinos fosforescentes
lutam para aparecer". Eu não sou cretino fosforescente e não quero galgar
espaços, muito menos nesta coisa menor que é a literatura institucional em
nosso pobre país e em outros países. O integralismo foi uma fecunda experiência
cultural e uma aventura moral e espiritual dos melhores brasileiros de minha
geração. Mesmo sem esforços para isto, os integralistas que o quiseram,
galgaram todos os espaços de que você fala. Quatro deles chegaram à Presidência
da República nas duas últimas décadas, sem falar em outros postos altamente
representativos da vida nacional. As Universidades, as Academias Científicas,
os Ministérios, os postos diplomáticos, as Academias de Letras, inclusive a do
Machado de Assis, honraram-se com incontável número de integralistas, sem
falar nas dezenas de generais, almirantes, brigadeiros das Forças Armadas, nos
comandos das maiores empresas industriais e bancárias do país, tanto no setor
público como no setor privado. Haver pertencido ao integralismo é um título
que me tem proporcionado os melhores momentos de minha vida social,
profissional, política, cultural, cordial e afetuosa. Este título me tem
ajudado muito e tem constituido motivo de respeito e divulgação de minha obra
de escritor.
B - O passado,
esta zona de tempo que é quase imodificável, pesa sobre os seus ombros.
Mudaria algo na sua história?
GMM - A única
coisa que pesa sobre meus ombros são meus longos anos de vida. Não permito que
ninguém mude uma vírgula na história de meu passado. Minha história pessoal
é um patrimônio de que me orgulho. A história de meu passado é uma história
de honra pessoal, política, moral e cultural, cuja memória é o melhor
conforto de minha vida. Nunca fui escravo ou servidor de ideologias, de
quaisquer ideologias. A ideologia é a impostura com que os tolos esterilizam
seu pensamento, sua inteligência e sua honra. Quem se rege por uma ideologia, não
tem idéias. A ideologia é a depravação maior do pensamento e da inteligência,
dos indigentes mentais ou dos impostores que têm uma idéia única. A idéia única
seca a fonte das idéias. Por ter idéias e por abominar as ideologias, ainda
este mês fui homenageado num dos mais importantes centros universitários do país,
onde minha limpa verticalidade foi destacada sobretudo pelas prisões que sofri
nas duas ditaduras impostas a este país - a do Estado Novo de Getúlio Vargas e
a do governo militarista. Preso, exilado e cassado em meu mandato de deputado
federal por esta última, na primeira delas fui condenado por decreto, isto
mesmo, por decreto, já que não havia qualquer lei que eu tivesse infringido, e
sem jamais comparecer à presença de um juiz, sem ter sequer um processo
formalizado. Condenado por decreto, juntamente com uma centena de outros
brasileiros, é um caso único na história do direito ocidental. Nunca fui
condenado por uma lei ou por um Tribunal ordinário. Vivi a fecunda experiência
de seis anos de cárcere, num campo de concentração da ditadura em Dois Rios,
onde pude escrever meu romance "O Valete de Espadas" e as dez elegias
de "Cabo das Tormentas", além de um diário que se publicará depois
de minha morte. Só não fiquei preso mais tempo, porque a ditadura foi
derrubada e minha prisão foi revogada por unanimidade pelo Supremo Tribunal
Federal, bem como a das outras cento e tantas vítimas. Algumas insignificantes
e desinformadas patrulhas ideológicas se serviram desta monstruosa infâmia da
ditadura, não sei se por inveja, por torpe ressentimento, ou por burrice mesmo,
para tentar silenciar minha obra. Não o conseguiram. Não odeio esse tipo de
gente. Desprezo olimpicamente. Desprezo e ignoro. E acho que esse pobres diabos
carregam nos ombros - eles sim - o peso incômodo da inveja e do ressentimento.
B – Como é
sua relação com a imprensa?
GMM - Minha
relação com a imprensa brasileira é excelente. Como jornalista profissional,
trabalhei em vários jornais e revistas. O maior jornal em que trabalhei, e do
qual ainda sou colaborador há cerca de trinta anos, é a "FOLHA DE S.
PAULO". Além das boas e limpas relações profissionais, tenho merecido páginas
inteiras de críticas de minha obra em todos os grandes jornais do país, e
tenho freqüentado como colaborador as páginas mais nobres que quase todos
eles, no Rio, em S. Paulo e nos diversos Estados. Se eu quisesse, publicaria
artigos diariamente em vários deles. Mas não tenho tempo e não tenho muita
coisa a dizer. Acho que nenhun outro poeta brasileiro recebeu, em quantidade e
qualidade como eu, número tão grande e tão respeitável de artigos sobre sua
obra. Terão mais do que eu resenhas, notícias, badalações. Artigos, ensaios,
críticas mesmo, nenhuma outra obra de escritor brasileiro terá recebido tão
generosamente como a minha. São mais de trezentos artigos guardados nos
arquivos de minha mulher. Injúrias? De vez em quando uma espuma amarelada e
suja, repetida e fatigada, uma provação, de resto, a que estão sujeitos os
homens públicos, os políticos, coisa que não sou mais. Recebi na prisão da
ditadura a visita do romancista Albert Camus, que me disse: "saia deste negócio
de política. Os poetas, os artistas não têm que fazer a história. Têm
apenas que sofrer a história. Esses supostos poetas e escritores engajados em
defesas partidárias ou idelológicas, não escrevem poesia nem romance. Não são
poetas nem romancistas. São funcionários de partidos, e o que apresentam como
poesia ou como romance é apenas uma impostura. São autores de panfletos, em
prosa ou verso, mas apenas panfletos. E panfletos ruins".
O
Futuro
B - Wilson
Martins considera seu novo livro "Os Lusíadas" brasileiro. Qual a sua
opinião? Fale sobre seu novo livro?
GMM - Respeito
muito a crítica e a dignidade de escritor do Sr. Wilson Martins. Não tenho a
honra de conhecê-lo pessoalmente. Espero ir em breve ao Paraná, e ali baterei
à sua porta para cumprimenta-lo e agradecer sua atenção com minha obra. O que
posso dizer sobre meu último livro é que está sendo traduzido em Paris e na
Romênia, creio que sairá também em espanhol e já corrigi as primeiras provas
de uma edição em Portugal.
B - O que vem
por aí?
GMM - Não sei.
Talvez o Apocalipse. Talvez mais uma novela ruim, de televisão.
B - Quem é o
novo poeta brasileiro? Em que mundo viverá?
GMM - Não sei.
Nordeste
B - Qual a
explicação para o nordeste, uma região pobre ecomicamente, ser tão rica
culturalmente?
GMM - No
Nordeste fundamos este país. Os governos da república praticam um crime
continuado contra o Nordeste. Como Unamuno dizia "me duele España", a
mim me dói o Nordeste. A minha terra.
B - Tem
saudade de sua terra natal?
GMM - Saudade
muita. Não concordo com a tese de que o desenvolvimento cultural das pessoas
esteja vinculado ao desenvolvimento econômico. Nem das pessoas nem das regiões,
nem das épocas. Uma vez, ao meu lado, o Osvaldo Peralva perguntou ao Gilberto
Amado, que era um típico representante do humanismo universal e também um
cosmopolita, no bom sentido da palavra, em que país desejaria ter nascido, se
lhe tivesse sido dada a escolha: - "em qualquer um, desde que em tempo de
decadência". Os tolos, isto é, os sociólogos e os que escrevem crítica
sociológica, vinculam o desenvolvimento industrial ao florescimento das letras
e das artes. Ora, é uma redonda e enfatuada burrice de escritores que se tornam
cortesãos e funcionários da burguesia capitalista. O capital, aliado da
tecnologia, sabe como produzir um bom médico, um bom engenheiro, um bom automóvel.
Mas não sabe produzir um poeta, um músico, um pintor. Se fosse assim, as
escolas e as fábricas de Tóquio, dos Estados Unidos, da Alemanha e até de São
Paulo e da Coréia estariam produzindo Homeros, Shakespeares, Dantes, Rembrandts,
Bachs e Picassos. E não estão, não é? Os sociólogos, como ensinava meu
mestre Unamuno são os sujeitos que não sabem nada, e quando sabem, sabem a
posteriori. Os filósofos, os poetas, os artistas, como a própria arte, não são
fruto da civilização industrial. São mesmo, de um modo geral, os marginais
dessa civilização e desse tipo de progresso, desse poder de produção de
riqueza. Honro-me de ser um marginal desse processo, como foram Homero e Dante,
Hoelderlin e Van Gogh, Rimbaud e Baudelaire, os grandes filósofos e os grandes
reitores do saber e do espírito. Dessa saudade vivo e morro. Cada um de nós
nasceu amarrado a seu umbigo. A outra ponta do umbigo, do qual fomos cortados,
é a nossa terra. O homem grego, criação de Apolo Délfico, tinha seu umbigo
em Delfos. Era o "o òmphalós" do mundo , o umbigo do mundo. Para
mim, minha aldeia é minha pólis genesíaca, núcleo do meu DNA, meu umbigo -
"òmphalós". O nordeste é meu umbigo e por isto é o umbigo do
mundo, de meu mundo. "Òmphalos tes gés" - o umbigo da terra.
Internet
B - Desde de
1994, você vem tentando entrar na era da informática. Infelizmente fizemos
esta entrevista via fax. O que falta para cair de vez nesta rede?
GMM - Não
quero ser escravo dessa engenhoca diabólica. Tenho dois equipamentos dela
instalados em casa, com e-mail, com todas essas coisas. Mas não tenho tempo
para isso. Nunca ocupei meu e-mail e uso o velho fax. Sirvo-me do computador
apenas como uma máquina de escrever de luxo e para ler diariamente alguns
artigos de jornais franceses, alemães, ingleses, espanhóis e italianos:
artigos culturais. Antes eu comprava estes jornais na esquina. Agora sai mais
barato e ocupa menos espaço físico. Pois leio e apago e só de vez em quando
imprimo para guardar algum artigo. Nem sequer sei mexer no e-mail e no negócio
do som.
B - Como vê a
internet em comunhão com a poesia?
GMM - No tempo
de Homero não havia internet.
Teoria
e Afins
B - Ninguém
mais lê teoria literária. É algo ultrapassado?
GMM - Um poeta
não se rege por teorias literárias. Isto é coisa de literatos e de
literatura, não de poetas e da poesia. O que a poesia pede ao poeta é que
tenha um conhecimento profundo de cada letra e de cada palavra, e com a letra e
a palavra conheça os músculos, os ossos, o pulmão e o sangue de sua língua.
Mas é preciso distinguir a língua da linguagem. A língua é o campo de
trabalho da comunhão dos homens. O poeta, o escritor, é aquele que inventa, não
uma língua, equívoco de Guimarães Rosa, mas uma linguagem. Lembro sempre
Borges: "minha língua é a língua de Góngora, Cervantes e Quevedo, mas
minha linguagem é a linguagem dos compadritos dos arrabaldes de Buenos
Aires." Pois assim minha língua: é a língua de Camões e de Vieira; mas
minha linguagem é a linguagem dos plantadores de cana e de mandioca no pé-da-serra
da Ibiapaba. O escritor que não tem sua própria linguagem, sua linguagem ctônica
- telúrica e pessoal, não é um escritor. Vira um acadêmico. E quando tenta
forjar uma língua ou mesmo uma linguagem artificial, também deixa de ser
escritor e cai na mediocridade do texto acadêmico. O texto acadêmico é o
texto que obedece a uma fôrma preestabelecida. Por exemplo: os concretistas.
Criaram um molde, uma fôrma, uma fórmula. Isto é: fazem exatamente o que faz
o acadêmico.
B - O que é
necessário para o fênomeno poético?
GMM - A inocência,
a graça de Deus. É preciso repetir sempre a inocência da infância. Leia o
ensaio de Heidegger - meu mestre - sobre Hoelderlin e a essência da poesia. Aí
você ficará sabendo o que quer dizer inocência. O inocente é aquele ou
aquilo que não é nocivo - in-nocens. In-nocivo. É preciso não ser nocivo à
palavra, matéria-prima da poesia. E só não se é nocivo quando se expressa os
seres, as coisas, os lugares com uma palavra que é seu próprio nome. Se eu
chamar Manuel de cavalo, estou sendo nocivo à palavra, ao nome, nocivo a Manuel
e ao cavalo. Esta é a inocência da poesia. Não confundir poesia com poema. A
poesia não está em qualquer artefato que se chama de poema. É preciso, para
que o poema incorpore a poesia, dar a cada palavra seu próprio som e ao texto
sua própria sintaxe. O lugar-comum desgastou as conexões vocabulares. Por
isto, a força e o segredo do poeta é saber, pronunciar, escrever a palavra
inesperada. As palavras já esperadas levam ao lugar-comum.
B - Com
quantos conotativos e metáforas se faz um poema?
GMM - Com um único
ou com milhões. É uma coisa infinita. E como na matemática de Boole, o 1 pode
valer tanto como os quilômetros de algarismos que exprimem bilhões e zilhões.
B - Em sua
poesia, que questão técnica lhe agrada mais?
GMM - A técnica
de não fazer prosa. Não se deve vender prosa por verso nem gato por lebre. O
sopro rege a composição. O primeiro autor de uma Gramática no mundo, Dionísio
da Trácia, um século ou dois antes de nossa era, chamava seu livro de "Techne"-
a arte, a arte da língua, e indicava o que devia ser a crítica da poesia: o
trato com o sopro.
B - Qual o
poema seu que mais o personifica? E a sua obra?
GMM - Não sei.
Isto implicaria em conhecer-me a mim mesmo, o "Gnoti seauton"
(conhece-te a ti m esmo), a inscrição suprema que está no frontispício do
templo délfico, cunhada pelo próprio Apolo e tomada por Sócrates como a meta
do saber. Talvez alguns textos em que mais tentei este conhecimento estejam em
meu romance "Dossiê da Destruição".
Repórter: Rodrigo
de Souza Leão