ENTREVISTA COM IACYR ANDERSON FREITAS |
IACYR
ANDERSON FREITAS nasceu em
Patrocínio do Muriaé, Minas Gerais, em 22 de setembro de 1963. Formado
em Engenharia Civil pela Universidade Federal de Juiz de Fora, o poeta
obteve também, pela mesma instituição, o título de mestre em Teoria da
Literatura. Tendo
publicado onze livros de poesia e dois de ensaio, Iacyr já recebeu
diversas premiações literárias de âmbito nacional. Há que se
destacar, no entanto, a Menção
Especial no Prêmio Jorge de Lima, conferida ao volume Sísifo
no espelho, em 1989, pela União Brasileira de Escritores (RJ) e, por
duas vezes, o 1º lugar em poesia no Concurso Nacional de Literatura
“Cidade de Belo Horizonte”, em 1990 e em 1993, com os livros Messe
e Lázaro. Em 1997 o poeta
recebeu também o Diploma de Mérito
Cultural da União Brasileira de Escritores (RJ) e, três anos depois,
o seu livro Quatro estudos conquistou
o Prêmio Eduardo Frieiro, versão 2000, promovido pela Academia Mineira
de Letras. Em
virtude dos prêmios literários recebidos, bem como da intensa colaboração
na imprensa do país (Suplemento
Literário do Minas Gerais, Jornal do Brasil, revista Poesia Sempre, jornal Nicolau,
jornal O Galo, jornal Tribuna
de Minas, revista Dialética, jornal
Garatuja, revista Orion,
Jornal da Tarde, revista InterPoesia,
revista Dimensão, jornal Correio
das Artes, revista Iararana,
etc.), onde divulgou também artigos críticos e traduções de poetas
espanhóis e italianos contemporâneos, a sua obra poética passa a ser
igualmente reproduzida em outras línguas e países (Colômbia, Espanha,
Argentina, Estados Unidos, França, Chile, Itália e Portugal). Textos
seus já foram estampados em Serta (Espanha), Anto (Portugal),
Jalons (França), Private
(Itália), Comun Presencia (Colômbia), Punto
di vista (Itália), O comércio
do Porto (Portugal), Keraunia (Itália)
e Rimbaud Revue (França),
entre outros. Além
disso, seu nome foi incluído entre os 31 poetas brasileiros do século XX
escolhidos para a antologia divulgada no número 23 da International Poetry Review, editada pelo Departamento de Línguas
Românicas da Universidade da Carolina do Norte, em Greensboro (USA), com
tradução do poeta e professor norte-americano Steven White. Iacyr
|
Livro
Messe 1.
No poema “UM CAMINHO URGE”, está escrito “eis que um caminho urge
/ sozinho / sob o escuro da flora”. Quem faz o caminho?O caminho se faz
caminhando? R. Este poema tenta projetar uma metáfora acerca da nossa
paradoxal busca de permanência, acerca da nossa necessidade de construir,
a partir dos livros, uma supra-realidade, um lugar onde a supressão dos
liames temporais possa ser enfim vivenciada. Mas é importante observar
que tal supressão é em si mesma contraditória, já que deita as suas raízes
no que há de mais mundano e transitório. Ou seja: para anular a intervenção
do tempo, nos lançamos mais ainda contra o próprio tempo, imergimo-nos
completamente nele. Daí a “ostentação” (no sentido de “revelar
com brilho e glória”) e o “claustro”, uma vez que tal supressão só
pode existir na estufa gerada a partir dos fugazes espaços de leitura. Daí
o “vento” – não seria melhor dizermos “tempo”? - “que não
quer / deixar os livros”. Logo, o caminho possível rasura a treva (“o
escuro da flora”) da nossa carência de sentido e de posse. Ainda que
pobre, é essa a nossa escolha, a nossa fuga da errância. Fazemos esse
caminho primeiro em nós mesmos, e só depois o projetamos para fora de nós,
no mundo. 2.
“UM CICLONE ATRAVESSA AGORA A ETERNIDADE”: “Já não me basta
percorrer / as idades que me atravessaram”. O que é o passado para o
poeta? O poema é um processo que se desenvolve no tempo ou o poeta cria
hoje, agora? Aeternidade é um espaço imutável? O que um ciclone pode
destruir na eternidade? A eternidade é a maior busca do poeta? R.
Somos o nosso passado. Não obstante, o poema se prende à redoma
do momento em que está sendo criado. Dizer extremo, ele é o instante
inaugural da sua própria e solitária enunciação. Expõe as marcas
daquele instante. Muitas vezes vem se desenvolvendo – fervilhando em
nossa cabeça – desde muitos anos, mas só passa a existir, contudo, na
página. No momento efetivo da sua criação. Alvejamos nele uma partilha
da eternidade? Sim: alvejamos tudo o que nos transcende. Sem embargo, a
eternidade será sempre algo incomensurável para nós, que estamos atados
aos carretéis do tempo. O próprio conceito de eternidade é algo
avassalador: não podemos nos aproximar muito dele, já que é por demais
incompreensível para o nosso molde humano e datado. 3.
“ANTES”: “Memória alguma / ilumina o que fostes”. Quando a memória
não resgata o passado? A memória é uma mina de ouro onde o poeta
escavamatéria para a sua poesia? R. Não é por acaso que Mnemósina é a mãe das musas. Ao
afirmar que somos o nosso passado, digo que somos também a memória -
essa terrível antologia - que conseguimos a duras penas preservar, seja
consciente ou inconscientemente. O problema é que resgatar o passado,
neste caso, não é o mesmo que vivenciá-lo novamente. Ainda que, através
desse resgate, os fatos pretéritos possam ser deificados, retocados pela
nossa imaginação, a dor da perda não se dissipa. Queremos sempre
eternizar o que foi bem-sucedido, embora tudo em nós seja transitório
por excelência. Para ser de fato algo que nos surpreenda e nos arrebate,
a felicidade não pode ser duradoura. Assim, a memória não é apenas uma
“mina de ouro” para a poesia. Ela é a nossa existência em repouso.
Como se ao espelho. 4.
“MURILIAMES”: Qual culpa temos de nosso nascimento e morte? R. Este conjunto tripartido de poemas tem, como o próprio título
indica, o fito de retomar a dicção visionária de Murilo Mendes. Cumpre,
desta forma, uma pequena homenagem. E a simbologia bíblica da queda tem larga ressonância na obra do poeta de Siciliana.
Por isso escrevo, na peça em questão, que “em verdade / sou culpado
pelo amor / daqueles que me antecederam, / culpado pela iniqüidade / de
meus pais, / pela culpa / mesma de meu nascimento / e morte”.
5.
Há em
Messe ecos da poesia de Ruy Espinheira Filho. Concorda? R. Tenho especial admiração pela poesia do Ruy Espinheira
Filho, de quem sou amigo de longa data, mas confesso que, assim como não
procuro fechar caminho às influências, também não as identifico
claramente em meus livros. Messe foi
escrito em 1989, tendo como escopo um feixe de motivos que, a meu ver,
guarda algumas diferenciações em relação à poética do autor de Morte
secreta. Livro
Lázaro 6.
“APÓCRIFO”: “dos girassóis, reverencio / o fulgor / que me
desconsola”. Há flores / flora na sua poesia. O que as flores
representam além do lugar comum: beleza? R. Metáfora da própria poesia e emblema arquetípico do espírito,
a flor guarda um simbolismo riquíssimo – e não apenas para a
literatura. Assim, sua imagem pode representar os chamamentos do princípio
passivo, do estado edênico ou da própria instabilidade da existência,
entre muitos outros campos de significação. 7.
Quando a engenharia constrói um poema? R. Nunca, creio eu. Por mais que me seduza o lugar-comum de
“engenheiro da palavra” (e coisas tais), devo reconhecer que, de fato,
a poesia não tem nada a ver com isso. Ou, por outro lado, a engenharia não
tem culpa nenhuma. 8.
“DEVIR”: “Devir que somos / e tão incompletos”. Muitos poetas são
fiéis a umestilo. O grande João Cabral manteve-se fiel a uma estética.
O poeta deve mudar sua forma de escrever ou deve ser o mesmo e fiel a um
projeto literário muito claro? É um dever devir? R. Em poesia, principalmente, nada pode ser mais relativo do que
uma verdade absoluta. A obra de João Cabral é grandiosa e, felizmente,
transcende as suas convicções críticas. Seja lá como for, é muito difícil Livro
Mirante 9.
“SONETO 4”: Criar é o que resta para o indivíduo niilista? Por que
sonetos tradicionais? R. Para um niilista convicto, de carteirinha, não acredito que
reste muita coisa além do célebre carpe
diem. Nem mesmo criar o que quer que seja, já que há muito de
angustiante neste tipo de empreendimento. Quanto à importância dos
sonetos, bem, julgo que eles respondem, pelo que conseguiram oferecer como
contribuição à história da lírica, por alguns dos pontos mais altos
da produção em verso de todas as épocas. Muitos dos meus poemas
prediletos, aos quais estou constantemente retornando em minhas leituras
(Camões, Gregório, Pessanha, Bilac, Cassiano Ricardo, Bandeira, etc.) são
sonetos. O termo “tradicional”, no entanto, precisa ser melhor
explorado. O que não é tradicional hoje? Aquilo que chamamos atualmente
de “poética da desorientação” deriva da pena rimbaudiana e,
portanto, não é nenhuma criancinha de colo. Por outro lado, a implosão
da estrutura convencional do verso foi levada a limites extremos por
Mallarmé no final do século passado. Poderíamos insistir mais ainda
nessa lengalenga. Mas, voltando à pergunta, o que não é tradicional
hoje? Apenas a indigência cultural dos segundos cadernos – com seus
achaques modernosos – encontra novidades revolucionárias a cada
segundo. A poesia passa ao largo desses festins.
10.
“SONETO
10”: Há algo mais importante que a vida? A vida é a melhor matéria
para a literatura? R. Não, não há nada mais importante do que a vida. Tudo emana
dela: por isso é preciso viver com dignidade. Dignidade não apenas
financeira, diga-se de passagem. E isso é extremamente difícil hoje em
dia. O conceito de liberdade, por exemplo, é atualmente apenas o direito
inalienável do sujeito de consumir e de se conformar com o consumo. É,
por extensão, o direito-dever de ser consumido. De modo absolutamente
paradoxal, o totalitarismo moderno se assenta em bases “democráticas”,
já que o que compreendemos como “democracia” hoje não passa, em
muitos casos, de um divertimento do poder e do capital. Por conseguinte, a
despeito de todos os obstáculos, precisamos defender, com unhas e dentes,
a vida que nos move, não permitindo que outros se sirvam dela em nosso
nome. Outras palavras
11.
O
que há de comum entre os quatro escritores presentes no livro Quatro
estudos? R.
De acordo com o próprio título do volume, Quatro
estudos é uma recolha de trabalhos críticos diferenciados. Apesar
disso, há uma via estreita de ligação entre estes estudos,
resumidamente indicada na orelha do livro: os motivos condutores do paraíso
e, em contraponto, o arquétipo da queda, da privação absoluta. 12.
O
poeta hoje é um erudito que escreve para poetas? Como vê aafirmação de
José Castello de que há muita poesia de professor hoje em dia?Quem é o
poeta brasileiro? R. Sim, como em todas as épocas, há muito equívoco
circulando. E até recebendo também, já que alguns se julgam mais filhos
de Deus do que outros, a sua cota de bajulação crítica. Mas esse é um
dilema consuetudinário, que transcende o nosso tempo. A despeito disso,
é muito importante lembrar que, pelo menos a partir de meados do século
XIX, a reação da poesia aos estatutos frugais da literatura de mercado
então emergente foi de fato avassaladora. Ao poeta não interessa uma
leitura que não seja uma leitura ativa, avessa à mera confirmação de
expectativas. Poesia é revelação, desvelamento extremo. Mas a luta
contra a ditadura mercadológica tem seu preço. No caso da produção poética,
era natural que este preço fosse pago através do simples alijamento
editorial. Pela sua própria essência, o verso estava longe de se
encaixar nos parâmetros utilitários do mercado. Ora, em virtude de tal
alijamento, a poesia começou a circular em âmbitos mais restritos,
estando hoje muito vinculada, infelizmente, aos próprios poetas. Isso
talvez tenha fomentado algumas pragas como, por exemplo, a
auto-referencialidade ou o excesso de experimentos metalingüísticos. Daí
a pecha citada pelo José Castello. Mas essas pragas são comuns em muitos
períodos (lembremos do entulho concretista de poucas décadas atrás) e o
grande escritor existe para negá-las ou colocá-las no seu devido lugar.
A forte tradição da poesia brasileira, por exemplo, com expressivos
nomes surgidos no decorrer dos últimos cem anos, saberá superar, sem
traumas, esses entraves. 13.
Qual
mote melhor o representa? R.
Sinceramente nenhum. 14.
Qual
o papel do escritor na sociedade? R.
Os mais pragmáticos insistem que é o de formato A4 e de gramatura
75 ou 90 por metro quadrado. Mas, deixando os pragmáticos de lado, julgo
que o nosso papel é lembrar a todos que as grandes questões ainda
continuam acesas e fulgurantes, que o entulho tecnicista não resolveu em
nada o dilema existencial do homem, que é preciso manter bem viva a
consciência da nossa temporalidade, os mil fogos da linguagem, que não
podemos desamparar o nosso imaginário, afinal, em prol de um rosário de
expectativas prontas para o consumo. Do convívio ativo com a poesia, bem
como com a própria literatura em geral, é licito esperar sempre uma
maior humanização do homem, um maior respeito à diversidade e à
liberdade de pensamento. É lícito esperar uma sociedade mais justa,
portanto. Juiz de Fora,
05 de agosto de 2000. |
1
- DO AUTOR 1.1
- Livros (poesia) Ÿ
Verso
e palavra (1982) Ÿ
Pedra-Minas
(1984) Ÿ
Colagem
de bordo & outros poemas (1986) Ÿ
Outurvo
(1987) Ÿ
Pedra-Minas
& Memorablia (1989) Ÿ
O
aprendizado da figura (1989) Ÿ
Sísifo
no espelho (1990) Ÿ
Primeiro
livro de chuvas (1991) Ÿ
Messe
(1995) Ÿ
Lázaro
(1995) Ÿ
Mirante
(1999) 1.2
- Livro (ensaio) Ÿ
Heidegger
e a origem da obra de arte (1993) Ÿ
Quatro
estudos (1998) 1.3
- Antologias e participações diversas Ÿ
Antologia
da nova poesia brasileira (Org.
Olga Savary). Rio de Janeiro: Hipocampo, 1992. Ÿ
Pérolas
do Brasil / Pearls of Brazil / Brazilian Gyöngyei (Org. e trad. Lívia
Paulini). Belo Horizonte: AFML, 1993. Ÿ
International
Poetry Review: Brazil Issue.
Greensboro (USA): University of North Carolina, spring 1997.
Antologia org. e trad. por Steven White. Ÿ
A
poesia mineira no século XX (Org.
Assis Brasil). Rio de Janeiro: Imago, 1998. Ÿ
Anto
(número
especialmente dedicado ao Brasil). Amarante (Portugal): Edições do Tâmega,
1998. Ÿ
Fui
eu (Org.
Eunice Arruda). São Paulo: Escrituras Editora, 1998. Ÿ
Reflexos
da poesia contemporânea do Brasil, França, Itália e Portugal (Org.
e trad. para o francês por Jean-Paul Mestas). Lisboa: Universitária
Editora, 2000. Ÿ Ricerca research recherche. Lecce (Itália): Dipartimento di Lingue e Letterature Straniere - Universitá degli Studi di Lecce, nº 4, 1998. Seis poemas do autor foram traduzidos, para esta revista, por Vera Lúcia de Oliveira. |
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