ENTREVISTA À JOYCE CAVALCCANTE |
Joyce Cavalccante nasceu em Fortaleza e mora em São
Paulo. É jornalista, romancista, contista, cronista e conferencista.
Publicou seis livros de prosa de ficção individualmente, e participou de
oito coletâneas de contos com outros autores. Contribui sistematicamente
com a imprensa publicando contos, resenhas ou artigos, e já faz algum
tempo vem se dedicando a palestras sobre literatura feminina brasileira
nas universidades do Brasil e do exterior.
Escreve crônicas para o Jornal da Tarde de São Paulo. É a atual
presidente da REBRA-Rede de Escritoras Brasileiras, e diretora da
RELAT-Rede de Escritoras latinoamericanas.
JC-
A constatação das evidências. Considerando que a mulher faz parte de um
segmento cultural específico, sua literatura, ou escrita, como queira,
obviamente refletirá tal segmento. O mesmo vale para o homem, porque a
gente é também a cultura na qual se está inserida. O
aspecto anatômico tem inegável influência nesse reflexo, como tem em
todos os setores da vida. Falo do fato da mulher ser côncava e o homem
convexo. Partindo daí ela desenvolveu um pensamento que determina seu
comportamento acolhedor, tépido, aprofundado; enquanto o homem
desenvolveu um comportamento, pontiagudo e mais exposto. Será que isso é
pouco? Tomando
por base essas considerações, podemos ler um texto de autor anônimo e
rapidamente identificar seu gênero sexual. Quem duvidar que faça a
experiência e, em seguida, se surpreenda com o resultado. Um
outro argumento é que nas línguas latinas, como o português, os
pronomes pessoais tem gênero definidos. Sendo assim o autor ou a autora
se denunciam em dois tempos, quando se referem a si mesmo. Claro
que existem exceções curiosas como a de uma autora gaúcha que fez questão
de escrever um livro inteiro simulando-se um autor e, mesmo usando seu próprio
nome, deixou todo mundo convencido. Fez isso principalmente usando os
pronomes pessoais, jogo interessante que só vem provar que a literatura
é gendrada. Eu,
particularmente, reconheço minha escrita como feminina. Só para ter uma
idéia, veja os títulos dos meus livros: "De Dentro Para Fora",
"Costela de Eva", "Livre & Objeto", "O
Discurso da Mulher Absurda", "Retalhos Místicos",
"Inimigas Íntimas". São denunciantes, não são? Não
diria aqui, como em outro qualquer lugar, que uma versão é melhor ou
pior que a outra, ou seja ela masculina ou seja ela feminina. Sou normal.
Na minha visão as duas versões literárias
são complementares e profundamente necessárias, pois o mundo
seria muito aborrecido sem esse encaixe.
JC-
A REBRA é a Rede de Escritoras Brasileiras. Um sonho que passou pelo
papel, depois pulou para as páginas da Internet e está fazendo o que já
deveria ter sido feito há muito tempo, ou seja, equiparar em
oportunidades o produto literário masculino e o feminino. Se
já tivéssemos uma coisa assim desde o começo do século, o papel da
REBRA, hoje, seria dispensável, pois a equiparação, o equilíbrio entre
os sexos, já seria um fato. Com isso teriam saído ganhando homens e
mulheres, pois tudo seria mais rico. Isso
quer dizer que os nomes de nossas mulheres escritoras do passado, se
perderam da memória do país, justamente porque nunca tiveram
oportunidade de serem registrados. Consultando qualquer história da
literatura brasileira se nota imediatamente a raridade de nomes femininos
lá registrados. E isso não é porque as mulheres não escreviam e sim
porque tinham enorme dificuldade de publicar e divulgar seus escritos, e
se conseguissem, nunca seriam registradas nos anais exclusivamente
masculinos. É a partir daí que se pensa que apenas os homens tinham
talento literário. Mas essa visão é falsa. De
lá pra cá a coisa não mudou muito e, nem mudaria, se iniciativas como a
REBRA e inúmeras outras que se dedicam ao resgate do passado feminino e a
garantia de sua permanência, não estivessem acontecendo. Exemplo: livros
sobre escritoras, festivais, associações e encontros femininos, essa
rede que pretende facilitar a comunicação entre todas as escritoras de
nosso país etc. Ainda precisa muito trabalho para pelo menos empatarmos
as chances. Depois, se pensará como melhor fazer a manutenção de tão
sonhada igualdade entre os sexos. Para
informações mais didáticas sobre o papel da REBRA-Rede de Escritoras
Brasileiras, convido para uma vista ao site: http://rebra.org . Finalizando,
só para aquietar corações predispostos ao litígio, iniciativas como a
REBRA não são contra os homens mas a favor das mulheres. JC-
A crise de identidade é dos homens. Nós mulheres estamos apenas
exercendo a natureza. Só. Acostumados
a ditar as regras e ter suas vantagens duplicadas em relação às
femininas: (quem decide é ele, quem caça é ele, quem canta é ele, quem
escolhe é ele, quem se farta é ele, quem manda embora é ele); quando se
deu essa virada e a mulher foi reconhecida como ser humano, os homens, em
geral, ficaram tontos pois não conheciam outra forma de agir. Muitos não
encontraram dentro de si criatividade suficiente para detectar a mudança
e a ela se adaptar com talento. Por isso é comum encontrá-los
choromingando e reclamando, lançando mão de argumentos moralistas que não
convencem mais ninguém, tipo: "ela é uma garota fácil" etc. Essa
mudança não começou agora de uma hora para outra e sem motivos. Não é
coisa do ano 2000.Veio se formando durante anos de sofrimento, repressão,
frustração e injustiça. Olhe para sua avó, para sua mãe e sinta a razão
do argumento. Fomos ousando aos poucos e nossa ousadia está ainda muita
aquém do que a natureza nos permite. Partindo do pressuposto de que,
segundo a natureza, homem deseja mulher e mulher deseja homem; e partindo
também do pressuposto de que o ser humano é guiado em direção a
satisfação de seus desejos; nada mais legítimo do que a mulher lutar
pelos seus anseios da maneira que os homens sempre tiveram o direito de
fazer. E esses anseios pode muito bem incluir desejar um homem para
namorar. Para
aquelas que tem um estilo mais ágil e gostam de conseguir um namorando
cantando-o, deve cantá-lo. Dizem que é um barato. Para
outras, como eu, que preferem o sofisticado ritual de serem cantadas,
devem esperar que a iniciativa venha deles, enquanto isso,
a gente se distrai engendrando mil provocações. É um luxo. Isso
é seguir o ritmo da natureza. É lúdico. Não é absorção nenhuma de
"valores do ser dominante" porque,
quem disse que o homem é dominante? Foi. Ainda
para aquietar os corações beligerantes, quando digo que, segunda a
natureza, homem deseja mulher e mulher deseja homem, estou focalizando o
universo heterosexual, mas sem negar as outras combinações do desejo
sexual humano.
JC-
É difícil publicar livros, mas mesmo assim tem tanto livro no mundo. É
o tipo do mercado que eu não entendo e vou morrer sem fazê-lo. Porque
tudo é mais difícil para a mulher, é também mais difícil para ela
publicar do que para o homem, pois como é sabido, mulher quando ganha
empata. Mas mesmo assim tem muitas mulheres que publicam e fazem sucesso e
vendem e são lidas e festejadas como grandes nomes. É um mistério o
como se chegou lá. Acho que é porque, se existe uma coisa que o machismo
nunca pôde se intrometer foi na distribuição de talento feita por Deus.
Graças a isso podemos exercer o prazer de ler Virginia Wolf, Clarice
Lispector, Marguerite Youcenar, Joyce Carol Oates, Simone de Beauvois,
Anais Ninn, Natália Correa, Gilka Machado, Catherine Maisfield e por ai
vai. E assim todo mundo saiu ganhando, como queríamos demonstrar.
JC-
Concordo que Inimigas Íntimas, minha publicação mais recente, obteve
muito sucesso, pois foram vendidas três edições consecutivas de cinco
mil exemplares cada uma. Acho que ele, além de ser um ótimo livro,
referendou a carreira de vinte anos e seis publicações anteriores de uma
autora sazonada. Creio que por isso, para muitos leitores, ele já é
considerado um clássico. Mas nem sei se ele é meu livro de maior
sucesso. Não sei. O "Livre & Objeto", publicado em 1982,
fez um carnaval nas mentalidades quando veio a tona, sem falar da
excelente recepção que tive por parte da crítica e dos leitores, quando
publiquei meu primeiro livro, "De Dentro Para Fora". Tudo tem
convergido para me incentivar a prosseguir com entusiasmo. Tudo, incluindo
essa paixão destemperada que tenho pela literatura. Aguarde "O Cão
Chupando Manga". Existe
sim uma receita para um livro, ou melhor, uma obra. ser bem sucedida:
Talento, dedicação, seriedade. Talento: todo mundo tem para
alguma coisa, sendo assim, para a criação literária a gente tem ou não
tem. Dedicação, é preciso disciplina. É preciso varrer da vida
da gente a frase: não tenho tempo para escrever, pois quando se é
escritor escrever é prioritário. Seriedade, levar-se a sério e não
ceder um milímetro das coisas que pautam nossas crenças. Não perseguir
o sucesso na mídia ou na boca do povo, mas sim a excelência. JC-
É possível viver de literatura. É. É possível tudo, e as dificuldades
fazem parte das possibilidades. A gente vai dando um passo atrás do outro
e quando se nota já se está pela metade do caminho. Mas para isso não
tem receita, como para qualquer outra profissão. Tem engenheiro milionário
pelos frutos de seu trabalho e engenheiro desempregado na rua da amargura.
Cada um deve descobrir seu próprio veio. Quem procura se escorar numa
receita pronta, conta com muito menos possibilidade de conseguir. E
sobre quem é o escritor brasileiro? sei lá. Sobre os contemporâneos não
sei falar, pois estão muito próximos, coisa que impede um julgamento
distanciado e objetivo. Para os antepassados só consigo ter um olhar de
leitor, um olhar de baixo pra cima, e assim também não posso fazer um
julgamento objetivo. Por isso, vamos pular essa parte. JC-
A internet é uma mídia não uma arte. Portanto, não compete com a
literatura mas a apóia e divulga. E por causa dela está voltando a moda
o ato de escrever. As pessoas estão se comunicando assim. Ela,
a Internet, veio pra ficar, revolucionar, democratizar as oportunidades.
Muita gente que jamais conseguiria publicar está apelando para as
chamadas : "publicações virtuais", ou seja, o livro que não
passa pelo papel. É uma oportunidade para um bom texto, quem sabe, ter
sua hora e sua vez. Ao mesmo tempo, uma boa obra publicada virtualmente,
pode vir a ser confundida com um monte de entulho que rola na rede. Tudo
tem que ser refletido com muito critério. Eu,
por exemplo não publico nada virtualmente. No meu site pessoal: http://www.oocities.org/~joycava/
disponibilizei em cinco idiomas pequenos textos, uma espécie de amostra
grátis, para que o meu leitor se entusiasme e vá em busca do livro
propriamente dito. Mas uma obra completa eu não disponibilizaria. Ainda não
tomaria essa decisão. Sou
entusiasmada pelas livrarias virtuais, isso sim. A maioria de minhas
compras de livros são feitas desse modo, pois as livrarias físicas me
deixam muito impaciente pelo despreparo dos atendentes. Daqui a pouco as
livrarias virtuais venderão muito mais porque são mais confortáveis.
Mercado é assim mesmo. É uma corrida de biga. Que vença o melhor. JC
- Pra que? Pra usar como lema seria uma de Bernard Shaw, repetida por
Clarice Lispector e agora e muito por mim: "A vida
é muito curta pra ser pequena". Para o jazigo seria: "Não deu
tempo". Porque nem que eu viva 150 anos, nunca vai dar tempo de
realizar todos os projetos que tenho em planos. Além dessas tenho um
monte de frases de efeito escondidas na manga do casaco pra impressionar. JC - A4, A5,
carta, executivo, legal, guardanapo de papel e até a areia da praia, como
fez Anchieta. Qualquer coisa serve quando se precisa fazer o registro da
recriação da vida. Assim é o escrever. |