Planos de linguagem em "A cabeça no fundo do entulho"

 

                                                 Por Maria da Paz Ribeiro Dantas

 

 

                    

                        

 Uma cidade dentro da outra; tantas urbes quantos são os os olhares que as contemplam.

Contínuo fluxo. Fio tênue ligando horas, lugares, aromas, imagens, nomes; tudo projetando-se na memória e já em estado de fuga...

Eis o fundo comum do qual emergem as três narrativas que integram o novo livro de Fernando Monteiro, A cabeça no fundo do entulho (Editora Record, 1999, 240 páginas),

que acaba de conquistar o primeiro Prêmio BRAVO de Literatura. Um substrato de movimento, de não-estabilidade, de imprevisibilidade - eu diria até de indeterminação no tocante aos desdobramentos subjetivos que os fatos objetivos podem provocar - aponta a

possível pista para se chegar à essencia desse fenômeno romanesco.

E vem a primeira indagação crítica: seria esse fundo noturno, de imprecisão no tempo, suficiente para dar conta da unidade temática da narrativa, da identidade do personagem-narrador, apesar da alteridade existencial de cada um? Percebe-se que a linguagem é que comanda o ato criador de Fernando Monteiro, determinando a natureza do tempo e do espaço no tecido narrativo. Isso é observável no episódio em torno do qual se desenvolveu o terceiro segmento da narrativa, Viva o Atlântico! (a visita do escritor Camilo José Cela ao Recife). O texto faz uso de uma sintaxe visual de caráter jornalístico (o lay-out da notícia da visita, nas páginas de um jornal local) e ao mesmo tempo cinematográfica, ao lidar com o desempenho do olho na leitura da informação.

A historicidade do fato jornalístico - os fatos que tiveram lugar no Recife, durante a estada

do prêmio Nobel/89, inclusive o teor da matéria jornalística ligada ao evento - vai desdobrando as implicações críticas feitas pelo narrador-observador. Personalidades destacadas do mundo intelectual são levemente caricaturadas de modo a apresentar a face provinciana da cidade, mas também revelando, em negativo, um aspecto que se desdobrou

do acontecimento (tratado pela imprensa como um fato irrelevante): a face humana do homem, captada de fora do ambiente específico, de uma certa atmosfera, enfim, de uma

aura.

O terceiro relato, que dá título ao livro, é uma trama complexa de espionagem, na qual várias versões do mesmo fato se entrelaçam. Mas, dessa vez não há a mínima ligação de pessoa, coisa ou nome às duas instâncias, anteriores, do romance.

Ocorre, no entanto, em relação às duas primeiras unidades narrativas de A cabeça no fundo do entulho, a indagação (dentro de uma outra): a Sandra suspensa no tênue fio de uma longa nota de rodapé, no final de Viva o Atlântico!, é a Sandrine de Atila em Roma, agora num hotel do Brasil? Só que, nesse caso, os papéis se teriam invertido: dessa vez, a mulher é quem parte e condena o homem a ficar. Novo encontro, nova situação? Nada disso parece importar nas narrativas de Fernando Monteiro, onde é mais forte a corrente subterrânea, a "massa permanente do mar, o movimento incessante do mar", comandando a voz noturna que, de modo intermitente, vai emendando as rupturas no fio das situações reais, nos três episódios isoladamente e no conjunto que compõe o todo romanesco.

 

O ESCRITOR NA ERA DA IMAGEM

 

Átila em Roma é a primeira das três partes que integram o "romance", e nela se conta o seguinte: uma romana jovem, bela, de classe média e sem muita "classe" recebe um telefonema sobre uma herança constituída de quadros valiosos, na maior parte de mestres

italianos, trazidos para o Brasil durante a Segunda Guerra. Um advogado paulista vai a Roma tratar dos trâmites legais, com a herdeira, e aí acontece um impedimento inesperado até para o leitor...

Existe no texto um plano de realidade, o plano dos acontecimentos vividos. E um outro plano entrelaçado a esse - feito de cogitações, de possibilidades, de coisas apenas imaginadas, e que possibilita ao personagem-narrador viajar em sua fértil imaginação,

alimentada por um senso de observação da realidade, em que o humor e a perspicácia

predominam. Tais desdobramentos constituem como que um outro nível da narrativa, criando uma espécie de psicosfera (parodiando Teilhard de Chardin) na qual se condensa

toda a visão de mundo do protagonista.

A interpenetração dos dois planos - objetivo e subjetivo - no tecido das narrativas de Fernando Monteiro dão à sua escrita uma grande leveza, inclusive pelo uso de uma certa imprecisão temporal possibilitada pelos jogos com os tempos verbais (diálogo da página 19 e outras). O ser do personagem-narrador, impregnando de leveza e velocidade a linguagem (duas das sugestões de Ítalo Calvino para a nova literatura) dá a todo o conjunto romanesco de A cabeça no fundo do entulho uma paradoxal sintonia com o nervo da atualidade. Paradoxal porque, sendo esse nervo inscrito no corpo da linguagem, onde se evidencia,

diz-se também nostálgico do Antigo, ou seja, busca raízes no passado enquanto antípoda (arqueológico) da civilização. Antinomia que prossegue no segundo relato e no clima da terceira narrativa, com ênfase na cena final que parece referenciar a morte de Lady Diana como uma espécie de símbolo. Tal fundo nostálgico, constituindo o tom geral da obra, teria a ver com a atração pelo Antigo, presentes em obras anteriores de Fernando Monteiro?

Não vamos trazer aqui a velha questão do to be ur no to be. O que é novo nesse livro do escritor pernambucano - que surgiu, para a ficção, publicado por editora portuguesa, em 1997 - é o maior domínio de expressão que revela, de modo especial quanto à "câmera" do cineasta (Monteiro dirigiu filmes, profissionalmente) como que embutida  no fundo da sua cabeça de escritor voltado para a percepção do homem na era da imagem.

 

        (Maria da Paz Ribeiro Dantas é escritora e crítica de literatura)

                                                                                                    v o l t a