Balacobaco
Planeta Terra
Rio de Janeiro

    
 
ENTREVISTA COM MARCO LUCCHESI
Marco  Lucchesi,  35  anos,  ensina  literatura  italiana   e
comparada  na  pós-graduação da UFRJ. Sócio do Pen  Club,  da
Sociedade  Brasileira de Geografia, da Sociedade  de  Estudos
Clássicos, da Sociedade de Literatura Comparada e da Academia
Fluminense  de Letras. Colaborador do “Jornal do Brasil”,  “O
Globo”,  “Folha de São Paulo” e “O Estado de São Paulo”,  das
revistas  “Poesia  Sempre”,  da Biblioteca  Nacional,  “Range
Rede”  e “Livro Aberto”. Condecorado com a medalha da  Camera
di  Commercio di Lucca, com o prêmio Paulo Rónai, o Mérito da
União  Brasileira  de  Escritores, a  medalha  Tiradentes,  a
medalha   Geraldo  Bezerra  de  Menezes,  e  diversas   vezes
finalista do Prêmio Jabuti de Literatura. Publicou:  Saudades
do  Paraíso, O sorriso do caos, Faces da Utopia, A paixão  do
infinito, Bizâncio. Organizador da antologia da poesia russa,
na  revista  “Poesia  Sempre”, n. 10, e do  livro  Artaud,  a
nostalgia  do  mais.  Participou  da  edição  de  Feminino  e
Masculino,  Poesia e filosofia, A obra de Geir  de  Campos  e
“L’Utopia   dei   tropici”.  Organizou  ainda   a   Jerusalém
libertada, de Tasso, e Leopardi – poesia e prosa. Traduziu: A
ilha  do dia anterior, de Umberto Eco, Ciência nova, de Vico,
Poemas  à  noite,  Rilke e Trakl, Poemas  de  Khliébnikov,  O
combate,  de  Patrick Süsskind, Esboço  do  juízo  final,  de
Foscolo, A trégua, de Primo Levi.
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Balacobaco  -  “O  SORRISO DO CAOS” é  um  compêndio  de  sua
atividade “jornalística”. Qual foi o critério para a  seleção
dos  textos? Como classifica as “matérias”? O que lhe  agrada
na função de “jornalista”?
Marco  Lucchesi - O Sorriso do Caos é, digamos, uma  presença
no  jornalismo  que  me  intriga e me  desperta  uma  vocação
começada  aos  15  anos  e que tem, inquestionavelmente,  uma
presença  importante  dentro  da  minha  busca.  Portanto,  o
Sorriso do Caos reúne ensaios que apareceram na sua maior  na
grande  imprensa brasileira. Agora mesmo está para sair  pela
Editora Artium um livro chamado O Teatro Alquímico, que é uma
sondagem,  ou melhor dizendo, um teatro de leituras  que  têm
pontuado  a  minha  vida . Contraponto de  O  sorriso,   este
guarda ensaios mais longos, tirados de livros e revistas, mas
transido  por uma busca ferrenha de unidade, na qual  não  se
distingue  entre o Livro do Mundo e o Mundo dos  Livros,  mas
que confunde essas duas dimensões porque só o conhecimento  e
a estética podem dizer algo mais intenso ao coração do homem.
B  -  Ivo  Barroso  fez um trabalho soberbo  na  tradução  do
Rimbaud.  É  o melhor trabalho que um tradutor brasileiro  já
realizou?
ML - Ivo Barroso é um dos nomes mais altos da tradução-poesia
e  Rimbaud é inquestionavelmente o seu acme. Assim como  Ivan
Junqueira, Haroldo de Campos, Jorge Wanderley, Dora  Ferreira
da  Silva, e muitos outros que não saberia citar, sem cometer
injustiça. Gostava de lembrar o meu querido amigo José  Paulo
Paes, um homem habitado pela literatura.
B  - “O SORRISO DO CAOS” deve ter textos sobre escritores que
lhe  agradam  uns mais e outros menos. Quais, dentre  os  que
estão no livro, fazem a sua cabeça?
ML  -  É  difícil de escritores. Nenhum faz a  minha  cabeça,
todos  fazem  a  minha cabeça, a vida faz a minha  cabeça,  a
pluralidade  faz  a  minha cabeça e acabo  muitas  vezes  por
perder a pouca cabeça que me falta.
B  - “BIZÂNCIO” é o seu livro de estréia com poemas próprios.
Nos  diz  Ivan Junqueira que, não é bem uma estréia,  já  que
você  verteu  para  o  português grandes poetas  de  diversas
nacionalidades.  Você considera que fez  o  caminho  inverso,
indo  da tradução para seus próprios poemas? O que aproveitou
de sua experiência como tradutor?
ML  -  De fato, Bizâncio é, como bem disse Ivan, não um livro
de  estréia porque a poesia é  minha forma fundamental,  é  o
meu  habitus primordial e que naturalmente ganhou em Bizâncio
a  sua autonomia. Fiquei feliz pois com ele fui finalista  do
Jabuti desse ano. Acaba agora mesmo de ser publicado e  tendo
uma  repercussão acolhedora na Itália o livro Poesie, escrito
na  minha segunda língua, o italiano, e com alguns poemas  em
árabe,  que é uma das minhas paixões viscerais: o Oriente,  o
mundo islâmico, o mundo judaico, o mundo semita como um  todo
de   que   nós,   portugueses,  brasileiros,  mediterrânicos,
descendemos. Da minha experiência de tradutor colhi  diversas
situações  e, como cheguei a escrever num artigo que  abre  o
livro  O  Teatro Alquímico, já não sei onde começo e tampouco
onde  termino,  tal  a  minha  necessidade  de  con-fundir  a
tradução  com  a  criação. No entanto, não  me  considero  um
tradutor,  mas  alguém que na tradução tem  buscado  uma  das
formas  de expressão mais intensas e genuínas. A leitura  dos
outros  não me ameaça, bem ao contrário, me alimenta e  assim
deveria ser.
B  - Ainda em “BIZÂNCIO”, vemos, no poema homônimo, uma opção
pelo  verso curto e de ritmo veloz... Poema que dá uma  noção
de movimento... de traveling. Por que esta opção?
ML  -  Sim, o verso curto e veloz e o movimento me atraem  de
fato,  mas  Bizâncio  não é tudo isso, Bizâncio  também  está
marcado  por  poemas  como  os Sonetos,  escritos  à  maneira
antiga,  à  maneira da tradição, por assim dizer,  provençal,
que  na  Península  Ibérica com as  contribuições  de  Sá  de
Miranda e  Camões se mantiveram até o século XVI. No entanto,
guardo  poemas extremamente longos em que não busco  o  ritmo
veloz, mas a essencialidade, o osso, a pedra.
B  -  Inconvocados, impresença, incontecida,  incontaminadas,
são  neologismos  que  dão a idéia de  devir,  de  poder  ter
acontecido. Cria-se um véu de maleabilidade e dúvida. O poeta
vê  coisas  e acontecimentos possíveis mas que não ocorreram.
Ficamos com uma noção de abandono (Istambul já não é mais)  e
não  de  decadência. É isso? Como é o seu processo  criativo?
Acredita na inspiração?
ML  - A sua questão é muito acertada e, de fato, o neologismo
é  um  recurso  que encontra na poesia longas tradições,  que
podem  remontar  mesmo a Homero e, de modo mais  especial,  a
Virgílio e a Dante. De fato, a impossibilidade é uma marca da
minha  poesia e este véu de maia, labilidade e dúvida  a  que
você  se  refere  me parece, essencialmente,  o  coração  das
coisas  que vou buscando. E a sensação de abandono me  parece
igualmente  uma visão muito clara do que se passa na  poesia;
um  abandono  de  si para si, o que se torna efetivamente  um
imenso  desafio  e que marca, portanto, as  formas  da  minha
procura, e que não coincidem com a geografia, mas que nem por
isso  são avarentas com a geografia. E assim, portanto, tenho
buscado  esse abandono dentro de mim, no Brasil, nos  sertões
físicos  de  Euclides  da Cunha, na Bahia,   sobre  os  quais
escrevi  em  Saudades  do  Paraíso, mas  também  no  deserto,
deserto do Saara, deserto da Mauritânia, nas pedras da  Síria
-  abandono  e  inspiração  ou algo  que  seja  parecido  com
inspiração. Meu livro Os olhos do deserto trazem um pouco  de
minhas inquisições.
B - Para quem daria um Nobel de Literatura?
    
ML  -  Bem,  para quem eu daria um Nobel de Literatura?  Para
ninguém  porque o Nobel não diz nada. Homero não  tem  Nobel,
Shakespeare não tem Nobel. Eu não daria um Nobel para muitos,
mas  a  questão do merecimento via Nobel não é  algo  que  me
comova de modo intenso. Aplaudo profundamente Saramago.  Vejo
que  Saramago é indubitavelmente, " apesar do Nobel" , um dos
maiores  escritores de língua portuguesa de todos os  tempos.
Meu  amigo Mario Luzi é um daqueles que " estão a merecer  um
Nobel". Conheci no Egito o Nobel Nagib Mahfuz e é um dos meus
preferidíssimos prosadores deste fim de século tão árido.
    
B  -  Fazer uma interpretação freudiana de Shakespeare é  uma
besteira enorme. Quais outras sandices foram feitas  em  nome
de uma análise literária “pós-moderna”?
    
ML   -  Uma  interpretação  freudiana  de  Shakespeare...   O
apequenamento   do  fenômeno  literário  não   é   exatamente
privilégio  de  algumas  correntes  pós-modernas.   Isso   já
aconteceu com o marxismo vulgar, com o positivismo vulgar, e,
portanto, com todos os ismos vulgares, que fazem da obra mero
refém,  vítima despreparada da sua vontade feroz de a reduzir
a  um monte de escombros que  sejam capazes de emprestar  uma
unidade inexistente à obra. No entanto, vítima na verdade não
é  a  obra,  essa  mera  ilusão da prepotência  daqueles  que
porventura a seqüestram; ao contrário disso, a obra  é  muito
poderosa  e  acaba  devorando aqueles que  pretensamente  têm
intenção de fazer dela um banquete de cinzas.
B  -  Como conseguiu, em 36 anos de vida, obter esta  cultura
enciclopédica?
    
ML  -  Tenho  35 anos e a questão da idade me  é  cara.  Cada
segundo   e   minuto   dessa  idade  me   são   profundamente
importantes.  A cultura enciclopédica, como a  consegui?  Não
sei  se  é enciclopédica. Sei apenas que tenho sede.  Sede  e
fome de conhecimento, mas não de uma cultura imóvel, glacial,
estúpida, de academites e outros bacilos de um pseudo  verniz
ou  daqueles  que buscam borboletas alfinetadas.  Tenho  tido
profunda intensidade em tudo que faço nas páginas que leio  e
na vida que escrevo.
    
B - Qual a relação tem com a cultura pop americana, os beats,
os rockers e as manifestações populares de arte?
    
ML  -  Quanto  à  próxima  pergunta, todas  as  manifestações
populares de arte me são caras. Pelo simples fato de que  nós
buscamos cultura, mas estamos impedidos de produzi-la. E essa
cultura  popular para mim está na alta, aliás, altíssima  MPB
brasileira, está nos sertões onde  fui buscar contato  com  a
arte  delicada e rude, intensíssima desse povo, está na breve
e  intensa  amizade  que fiz com Luiz  Gonzaga,  com  o  qual
aprendi  como se faz a arte do Brasil. E com os  bérberes,  a
cultura popular me interessa. Em geral, no entanto, os  bits,
os  rockers,  tudo isso não guarda de mim o  mínimo,  o  leve
interesse. A não ser por um viés da sociologia e da historia,
que  representam  para mim a primeira formação  na  academia.
Quando  me  sento  ao piano, não toco o que  me  parece  mais
sociológico (e interessante nesse espaço).  Passa muito longe
de mim a vontade de buscar essas formas.
B - Quais os livros de ensaio que não podem faltar na estante
de um poeta?
ML  -  Um poeta deve buscar um conhecimento do todo. Mito  ou
fantasma,  o paradigma de um Leonardo da Vinci deve persistir
hoje,  mesmo que as desculpas em torno da impossibilidade  de
um conhecimento como o de sua época esbarrem naquilo que hoje
se  afirma  como  a  multiplicidade  quase  que  infinita  do
conhecimento.   Não,   o   conhecimento   é   uma    proposta
interdisciplinar  abrangente e deve  fazer  cortes,  produzir
interseções, anéis, vaso-comunicações. Portanto,  os  ensaios
que  devem  estar na estante do poeta são todos os ensaios  e
mais alguns, sobretudo aqueles que ainda não foram escritos e
que esperam um lugar não apenas na estante, mas no sistema da
poesia.
B  -  O  fato de ser um erudito prejudica no sentido  de  uma
forte autocrítica ao seu fazer poético?
ML  -  Não  sei o que sou. Mas cultura e terra se identificam
Vejam o Raduan Nassar. Penso que a autocrítica não impede,  a
autocrítica auxilia. É preciso Ter um equilíbrio entre aquilo
que impede e aquilo que auxilia. O conhecimento não impede, o
que  impede é não buscar o conhecimento, não estar tocado por
uma  sede  incandescente  de  conhecimento  e,  portanto,  ao
contrário, conhecimento e poesia não podem estar longe um  do
outro.  O que mata não e a autocrítica, mas a autopiedade.  O
desinteresse e mortal.
    
B  -  Quantos poetas fortes estão presentes na sua poesia?  A
angústia à moda de Harold Bloom está presente?
ML  -  A  angústia está sempre presente, antes  e  depois  de
Harold   Bloom.  Os  poetas  fortes  que  me  pertencem   são
efetivamente  aqueles  que  estão  e  não  estão  no   Cânone
ocidental. Mas são os grandes poetas e os poetas brasileiros,
os  grandes poetas brasileiros Carlos Drummond de Andrade, de
quem  fui amigo e aluno, no pior e melhor sentido da  palavra
aluno.  O  grande e imenso Drummond. O grande João Cabral  de
Melo  Netto  e,  sobretudo, os grandes poetas  que  são,  por
essência,   apátridas,  pois  que  são  todos  moradores   da
linguagem.
B  -  Qual a sua opinião sobre a matéria que ridicularizou  a
poesia brasileira atual? Há muito desrespeito e brigas  entre
poetas?
ML - Não sei dizer se há brigas, se deixa de haver brigas.  O
meu  amor é pela poesia e sei muitas vezes até fazer - o  que
nem  sempre  é fácil -, uma distinção entre a má pessoa  e  o
ótimo  poeta,  que lamentavelmente ou não podem muitas  vezes
coabitar.  Não  sei o que responder, apenas digo  que  o  meu
interesse  é pela poesia que está fora do tempo  e  fora  dos
nomes.  Mas  é  um fenômeno, é um acontecimento  e  como  tal
dispensa nomes, lutas e coisas do gênero.
B - Como classificaria a poesia brasileira hoje?
ML - A poesia brasileira hoje é uma poesia extremamente rica,
mas pouco conhecida, pouco espaço, grandes poetas em todas as
regiões, de norte a sul, sudeste, nordeste. A força da poesia
brasileira é extremamente fascinante e tem dado provas de ser
contínua e riquíssima.
B – Tem alguma epígrafe que o acompanhe pela vida?
ML  -  Eu  não chego a ter uma epígrafe, mas a minha  atitude
diante  da  vida é de intensidade, de procura, de  desespero,
conhecimento  como  fogo e a poesia  como  esse  incêndio.  O
conhecimento  dos  dois,  a  busca  do  mundo,  do  universo.
Confundir-me buscando latitudes distintíssimas,  que  vão  do
Atlântico  ao  deserto, ao interior do Brasil, aos  Alpes  na
Itália,  leituras do mundo, o mundo das leituras, e  buscando
uma essência, uma vontade forte, porque para mim literatura e
vida  se confundem de tal maneira que uma, distinta da outra,
não poderia e nem deveria viver.
    

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