1.“Meu pai foi leve presença,/que me marcou com a sua
ausência”. Esta ausência ou perda do pai está em quase
todos os seus poemas. São feridas que Freud explicaria?
A orfandade foi o fato mais importante de minha vida, e
me marcou definitivamente. Aos 4 anos de idade, esta
tragédia me preparou para começar a envelhecer. Sou hoje
um homem muito além de minha idade biológica, porque,
distinguido por uma sensibilidade aguçada, comecei a
morrer aos 4 anos. Isso fica visível ao longo das
páginas de Venho de país obscuro, onde prevalece uma
visão antagônica da memória e da morte, veneno e
antídoto. É um livro triste, de alguém assinalado pela
Indesejada da Gentes. Dando um exemplo do local central
que a morte de meu pai ocupa em minha vida, destaco a
nossa mudança para uma cidade da região central do
Paraná, Peabiru. Vivíamos em Bela Vista do Paraíso
(quase divisa com São Paulo), mas quando meu pai morreu
num acidente de caminhão (que caiu no rio) em Formosa do
Oeste e foi enterrado em Peabiru, uma cidade mais
próxima do local do acidente e onde tínhamos parentes,
mudamos para lá. Isso aconteceu porque o corpo só foi
encontrado três dias depois e não havia condições de
levá-lo até Bela Vista. Então, toda a minha família,
mesmo não gostando de Peabiru, mudou-se para esta cidade
e boa parte vive lá até hoje. Para mim, é a minha terra
natal – porque meu pai está enterrado lá.
2. Como conseguiu transformar a perda em força?
Meu pai era analfabeto. Nós vínhamos de uma família de
colonos. Mas ele tinha grandes sonhos, me queria
político e estudado. Depois de sua morte, a mãe de meu
pai continuou morando conosco e ela e minha mãe
iniciaram um processo de canonização de meu pai. Eu ouvi
tantas histórias sobre ele, dos planos que tinha para
mim, meu pai era um sonhador, que acabei sendo formatado
por aqueles projetos. Ao invés de ser político, decidi
que deveria contar aquela história, que devia
desenterrar meu pai, para o bem e para o mal. Ao fazer
isso, descobri o lado feio do pai. Toda esta história
está narrada num romance que vai sair ainda este ano
pela Record – Chove sobre minha infância. Foi assim que
pude superar a perda do pai, pela via da literatura.
3. A sua poesia é autobiográfica? Toda literatura assim
é?
Toda grande literatura é autobiográfica – umas mais
disfarçadas e outras mais escancaradas. Faço parte do
segundo grupo. É claro que os idiotas da objetividade
tentaram entronizar a literatura do simulacro e da
racionalidade. Enquanto escrevem livros áridos, sem
entrega, freqüentam os divãs psicanalíticos. A minha
psicanálise é a literatura, tanto no momento em que a
escrevo quanto no momento em que leio a produção dos
outros. Se mais gente lesse grande literatura não
haveria necessidade da psicologia. Não foi Freud um
grande romancista, que dava voz a pacientes que não
queriam tornar públicas as suas misérias? Eu escrevo me
confessando, hábito que trago de minha formação
católica.
4. A infância é matéria de sua poesia. O que o poeta
deve ter de criança? Escrever é se aproximar do lado
lúdico do ser humano?
A matéria de minha literatura é memória e morte. Dentro
do primeiro item, a infância entra como epicentro do
terremoto da lembrança. E acho que vai continuar sempre
assim. Mas não sou dos que vêem as crianças como seres
lúdicos, e sim como agidos desta grande estranheza que é
o mundo. Desde pequeno me perguntei sobre o sentido
disto tudo que chamam de vida. Fui, portanto, uma
criança problemática. Durante anos a família me tratou
de uma lesão cerebral que nunca existiu de fato. O que
sempre houve foi um olhar desencantado sobre o mundo. Se
havia desaparecido o pai, qual o sentido da vida?
Depois, os problemas de convivência com a família de meu
padrasto me tornaram um suicida em potencial. Ali pelos
10 ou 12 anos tive com um revólver engatilhado contra a
cabeça. Sobrevivi a tudo isso quando encontrei a
literatura. Sou grato a ela. Ela é responsável por esta
minha sobrevida. Não há mistificação nisto, é apenas a
realidade dos fatos.
5. No poema épico homônimo ao livro você fala dos anos
de ditadura com uma maneira própria. Como ser político
sem ser panfletário?
A ditadura militar para uma criança que vivia numa
cidadezinha do sertão paranaense tem, necessariamente,
que ser diferente do modelo urbano e universitário da
ditadura, que é o que impera na literatura brasileira.
Nós, os filhos da ditadura, ou seja, os nascidos durante
o período, só estamos entrando no campo literário agora.
A diferença que você aponta nos meus poemas nasce desta
mudança geracional. Quem fala sobre a ditadura é alguém
que não lutou contra ela, que apenas foi um agido
inocente do clima de silêncio que ela criou, mesmo no
mais profundo interior brasileiro. A única alusão direta
à ditadura, durante todo o meu curso ginasial (que
concluí em dezembro de 1979), foi quando perguntei a um
professor de História em quem ele votaria nas eleições
municipais. Ele me mandou calar a boca e saiu de perto
de mim.
Este silêncio acabou, em minha cabeça suja, associado à
figura de meu padrasto, que tentava me fazer uma cópia
dele. Sempre autoritário, ele me queria dócil, mas eu
era feito da matéria furiosa das tempestades. Então, o
padrasto ficou sendo a personificação da ditadura para
mim.
Devido a tudo isso, eu abordo a ditadura por um prisma
familiar.
6. O Brasil ainda é um país obscuro?
Muda a natureza da obscuridade, mas ela permanece ilesa.
O obscuro para mim era, nos anos 70, não conseguir ter
acesso às informações, era viver numa cidade carente de
bens culturais, de discussões, de horizontes sociais.
Por conta de meu padrasto ter uma cerealista, eu convivi
muito com as populações mais carentes e isso me marcou
também. Até hoje só me sinto à vontade no meio daquele
tipo de agricultor pobre, voltado para o trabalho,
orgulhoso de sua condição obreira. Isso eu herdei de meu
padrasto e é a melhor parte dele. O problema é que está
cada vez mais difícil encontrar este tipo de gente. Os
agricultores do interior se tornaram caubóis texanos ou
moradores bregas das periferias das grandes cidades. Eu
me tornei um órfão desta população também. Parece que a
orfandade é o meu destino.
7. “Toda a vez que assino o meu nome, meu pai e meu avô
assinam comigo”. A poesia também ajuda a conviver com os
nossos fantasmas?
A literatura é para mim uma forma de fidelidade aos meus
antepassados. É como rezar todos os dias para eles,
rezar da maneira que me coube, lendo e escrevendo. Saí
das camadas mais incultas do povo brasileiro e hoje
ocupo uma função letrada, que conquistei pelo trabalho,
sem contar com um nome familiar ou qualquer ajuda de
grupos. Tudo que sou vem de uma força atávica que herdei
de minha gente, uma gente caipira, amável, companheira e
sofrida. Sou apenas o cafona da poesia brasileira.
8. “Minha biblioteca (...)/tem o tamanho de minha
ignorância”. Quais os escritores que estão/têm lugar
cativo na sua biblioteca?
Os memorialistas, escrevam eles em qualquer estilo.
Gosto de todos, aprecio a obra deles, leio com o coração
apertado, idolatro. Sou tocado pela experiência vivida,
pelas coisas do passado, pela tragédia que deu origem a
você e a mim. Tenho uma perversão pelo que se perdeu,
pelo que se quebrou, pelo que ficou esquecido nas dobras
anônimas do tempo. Amo aquilo que defini num poema como
o olvidado vivo. Não me perguntem da moda, dos últimos
filmes, da última tecnologia. Sou um passadista,
confesso.
9. Você escreveu: “Nas palavras moramos sempre de
aluguel”. Não é a eternidade a busca maior do poeta?
Não há eternidade em nada que dependa de sua
sobrevivência material. A escrita, portanto, enquanto
algo concreto, é uma falácia. Nunca se escreveu tanto no
mundo e não se guardou tão pouco. A palavra só ganha
eternidade se ela consegue habitar a alma das gerações
posteriores. Nós, que lemos literatura, estamos
preservando o que produziu infinitos outros escritores,
em outras línguas, em outras épocas. É que nos deixamos
habitar por escritores que, por sua vez, foram habitados
por outros e assim por diante. Não acredito na palavra
como algo onipotente. Acredito apenas no poder do homem
de dar alma à palavra e transferi-la aos pósteros.
Acredito apenas no verbo em sua versão carnal. No
homem/literatura. Sou um homem/literatura. A minha
biblioteca está em mim. Não é organizada, ela me habita
de forma tumultuada. Os livros que estão nas estantes
são apenas casas vazias. Já lhes roubei os viventes.
Carrego-os comigo.
10. No poema MASSA DE DETRITOS: “Do amor em cuja fonte
nos saciamos(...)/que ao rio da memória permanecerá
poluindo”. Quando o amor polui o rio da memória?
Tudo que vivemos polui o rio da memória. De uma altura
de nossa vida em diante, somos apenas os operários que
tentam limpar este imenso e merdoso Tietê, transbordante
de fezes, lixos, espermas e estrelas extintas.
11. AUTOBIOGRAFIA DE ALEIJADINHO é um poema dividido em
13 sonetos. O soneto está vivo?
Não tive a intenção de escrever sonetos. Eu apenas dei
vazão para uma percepção muito pessoal que tenho do
barroco mineiro, que julgo mal interpretado pelos donos
do saber. Ouro Preto é a minha cidade eleita. Volto lá
sempre que posso. Na última viagem, entendi que tudo lá
é marcado pelo signo da morte e que a obra do
Aleijadinho é o centro deste universo. Então, comprei um
caderno e escrevi, em dois dias, os 13 poemas. Depois vi
que eles tinham o formato tão mal visto do soneto. Acho
que o soneto continua vivo sim, porque ele foi mais
forte do eu, do que minha desorganização crônica.
12. ENTRE DOIS TEMPOS reúne as resenhas críticas
publicadas na imprensa. O que o crítico empresta ao
poeta?
Em mim, o crítico, o poeta, o romancista, o contista e o
leitor são uma pessoa só. Todas se valem dos mesmos
instrumentos: sensibilidade, discurso claro, dedicação
plena à literatura. Um romancista local me disse uma vez
que, para me tornar romancista, eu tinha que abortar o
poeta. Saí de nosso encontro com a certeza de que eu só
seria romancista se me mantivesse fiel ao poeta. Foi
assim que surgiu o meu primeiro romance (Chove sobre
minha infância). O livro de poemas foi escrito ao mesmo
tempo e é uma espécie de rio paralelo do romance; os
mesmos temas, a mesma linguagem, o mesmo clima.
13. Há crítica no Brasil?
Há mais jornalismo cultural e ensaísmo acadêmico do que
crítica. Houve um preconceito muito grande contra a
crítica, vinculada sempre a uma atividade passadista, do
velho jornalismo. A crise literária que se vive hoje no
Brasil deve muito ao relaxo crítico que caracteriza o
jornalismo e aos hermetismos universitários. Gosto muito
do trabalho do Antonio Carlos Secchin, na área da
poesia, e do mestre Wilson Martins – um crítico
atemporal.
13. O poeta é cada vez mais um erudito?
Infelizmente, é. No meu caso particular, tento usar a
informação de maneira equilibrada com a sensibilidade.
Não sou um poeta construtor, sou um vidente. Não me
rendo ao culto racional que os discípulos de João Cabral
impuseram em nossa cultura. Muito pelo contrário, leio e
valorizo João Cabral de Melo Neto pelo que há de emoção
em sua obra – uma emoção policiada, mas emoção como em
qualquer poeta romântico. A erudição vazia é a grande
praga da poesia contemporânea. Meu poema “Autobiografia
de Aleijadinho” é frontalmente contra o culto da
erudição nas artes. Arte deve falar primeiro à
sensibilidade do fruidor e só depois ao seu intelecto.
Se a tua empregada não puder sentir o teu poema há algo
de muito errado nele. Eu escrevo para ser entendido. Não
quero falar apenas com Deus. Inclusive que porque
desconfio que Deus, ao contrário do Papa, não fala
português.
14. Qual uso faz da internet? O que aperfeiçoaria na
internet?
Faço apenas o uso profissional da Internet, porque não
tenho muito tempo e o computador é o local onde passo a
maior parte do tempo. Sempre que posso, vou caminhar,
brincar com minha filha, tomar cerveja com um ou outro
amigo, comer em algum restaurante quieto, namorar minha
mulher. E isso, por enquanto, a Internet não me dá. Eu
tentaria melhorar a Internet no sentido de criar dois
tipos de acesso: o geral e o seletivo. Você vai pescar
dourado e entra todo tipo de peixinho ordinário na tua
rede, até piranha. Deveria ter também uma rede com uma
malha especial com a qual a gente pudesse apenas pescar
os dourados, para não perder tempo.
15. Qual mote o acompanha?
Seja inteiro em tudo aquilo que você fizer.
16. Qual o papel do escritor na sociedade?
Para mim, o papel principal do escritor não está no
espaço, mas no tempo. Os escritores somos os guardiões
do fogo. Nós mantemos vivo todo um universo imaginário
que periga desaparecer. Ao dar esta entrevista agora,
estou fazendo infinitas referências veladas a escritores
de outro tempo e de outras línguas, línguas que já
morreram. Não sei o nome da maioria deles, mas como bebi
em fontes que surgiram de outras fontes, eu guardo a
memória desta gente extinta. Sem o escritores, o mundo
corre o risco de viver apenas o presente.
v o l t a