ENTREVISTA COM MIGUEL SANCHES NETO
    
    
    Nasci  em Bela Vista do Paraíso em 1965. Depois da  morte
    de  meu  pai,  em  1969,  minha  família  se  mudou  para
    Peabiru.  As  duas são pequenas cidades  do  interior  do
    Paraná.   Freqüentei  o  Colégio  Agrícola,  pois   minha
    família  me  queria agrônomo. Mas acabei um professor  de
    literatura  falhado,  perdoai.  Apenas  alguns  anos   no
    magistério  superior (tendo antes passado  pelo  mestrado
    da   Federal  de  Santa  Catarina  e  pelo  doutorado  da
    Unicamp)  foram  mais  do que suficiente  para  me  fazer
    desistir    da   carreira,   assumindo   um   cargo    na
    administração  pública. Sou hoje Presidente  da  Imprensa
    Oficial  do Paraná e crítico literário da Gazeta do  Povo
    (Curitiba) e da revista Bravo! (São Paulo).
    Entre outros livros, publiquei:
    Inscrições  a  Giz – Prêmio de poesia Luís Delfino  1989,
    concedido pela Fundação Catarinense de Cultura.
    Biblioteca  Trevisan  –  ensaio  sobre  Dalton  Trevisan,
    Editora da UFPR, 1996.
    Entre   dois   tempos  –  reunião  de  artigos,   Editora
    Unisinos, 1999.
    Venho  de um país obscuro – poemas, Editora Travessa  dos
    Editores, 2000.
    Sai   ainda  este  ano  o  romance:  Chove  sobre   minha
    infância, pela Record.
    
    1.“Meu pai foi leve presença,/que me marcou com  a  sua
    ausência”.  Esta ausência ou perda do pai está  em  quase
    todos os seus poemas. São feridas que Freud explicaria?
    A orfandade foi o fato mais importante de minha vida, e
    me  marcou  definitivamente. Aos 4 anos  de  idade,  esta
    tragédia me preparou para começar a envelhecer. Sou  hoje
    um  homem  muito  além de minha idade biológica,  porque,
    distinguido  por  uma sensibilidade  aguçada,  comecei  a
    morrer  aos  4  anos.  Isso fica  visível  ao  longo  das
    páginas  de  Venho  de país obscuro, onde  prevalece  uma
    visão  antagônica  da  memória  e  da  morte,  veneno   e
    antídoto.  É  um livro triste, de alguém assinalado  pela
    Indesejada  da Gentes. Dando um exemplo do local  central
    que  a  morte de meu pai ocupa em minha vida,  destaco  a
    nossa  mudança  para  uma cidade  da  região  central  do
    Paraná,  Peabiru.  Vivíamos  em  Bela  Vista  do  Paraíso
    (quase  divisa com São Paulo), mas quando meu pai  morreu
    num acidente de caminhão (que caiu no rio) em Formosa  do
    Oeste  e  foi  enterrado  em  Peabiru,  uma  cidade  mais
    próxima  do  local do acidente e onde tínhamos  parentes,
    mudamos  para  lá. Isso aconteceu porque o corpo  só  foi
    encontrado  três  dias depois e não  havia  condições  de
    levá-lo  até  Bela  Vista. Então, toda a  minha  família,
    mesmo  não gostando de Peabiru, mudou-se para esta cidade
    e  boa  parte vive lá até hoje. Para mim, é a minha terra
    natal – porque meu pai está enterrado lá.
    2. Como conseguiu transformar a perda em força?
    Meu  pai  era analfabeto. Nós vínhamos de uma família  de
    colonos.   Mas  ele  tinha  grandes  sonhos,  me   queria
    político  e estudado. Depois de sua morte, a mãe  de  meu
    pai   continuou  morando  conosco  e  ela  e  minha   mãe
    iniciaram um processo de canonização de meu pai. Eu  ouvi
    tantas  histórias sobre ele, dos planos  que  tinha  para
    mim,  meu pai era um sonhador, que acabei sendo formatado
    por  aqueles  projetos. Ao invés de ser político,  decidi
    que   deveria   contar   aquela   história,   que   devia
    desenterrar  meu pai, para o bem e para o mal.  Ao  fazer
    isso,  descobri  o lado feio do pai. Toda  esta  história
    está  narrada  num romance que vai sair  ainda  este  ano
    pela  Record – Chove sobre minha infância. Foi assim  que
    pude superar a perda do pai, pela via da literatura.
    
    3.  A  sua poesia é autobiográfica? Toda literatura assim
    é?
    
    Toda  grande  literatura  é autobiográfica  –  umas  mais
    disfarçadas  e  outras mais escancaradas. Faço  parte  do
    segundo  grupo.  É claro que os idiotas  da  objetividade
    tentaram  entronizar  a  literatura  do  simulacro  e  da
    racionalidade.  Enquanto  escrevem  livros  áridos,   sem
    entrega,  freqüentam  os  divãs psicanalíticos.  A  minha
    psicanálise  é a literatura, tanto no momento  em  que  a
    escrevo  quanto  no momento em que leio  a  produção  dos
    outros.  Se  mais  gente  lesse  grande  literatura   não
    haveria  necessidade  da psicologia.  Não  foi  Freud  um
    grande  romancista,  que dava voz  a  pacientes  que  não
    queriam  tornar públicas as suas misérias? Eu escrevo  me
    confessando,   hábito  que  trago   de   minha   formação
    católica.
    
    4.  A  infância é matéria de sua poesia. O  que  o  poeta
    deve  ter  de  criança? Escrever é se aproximar  do  lado
    lúdico do ser humano?
    
    A  matéria de minha literatura é memória e morte.  Dentro
    do  primeiro  item,  a infância entra como  epicentro  do
    terremoto  da lembrança. E acho que vai continuar  sempre
    assim.  Mas  não sou dos que vêem as crianças como  seres
    lúdicos, e sim como agidos desta grande estranheza que  é
    o  mundo.  Desde  pequeno me perguntei  sobre  o  sentido
    disto  tudo  que  chamam  de  vida.  Fui,  portanto,  uma
    criança  problemática. Durante anos a família  me  tratou
    de  uma lesão cerebral que nunca existiu de fato.  O  que
    sempre houve foi um olhar desencantado sobre o mundo.  Se
    havia  desaparecido  o  pai,  qual  o  sentido  da  vida?
    Depois, os problemas de convivência com a família de  meu
    padrasto  me tornaram um suicida em potencial. Ali  pelos
    10  ou 12 anos tive com um revólver engatilhado contra  a
    cabeça.   Sobrevivi  a  tudo  isso  quando  encontrei   a
    literatura. Sou grato a ela. Ela é responsável  por  esta
    minha  sobrevida. Não há mistificação nisto, é  apenas  a
    realidade dos fatos.
    
    5.  No  poema épico homônimo ao livro você fala dos  anos
    de  ditadura  com uma maneira própria. Como ser  político
    sem ser panfletário?
    
    A  ditadura  militar  para uma  criança  que  vivia  numa
    cidadezinha  do  sertão paranaense tem,  necessariamente,
    que  ser  diferente do modelo urbano e  universitário  da
    ditadura,  que  é o que impera na literatura  brasileira.
    Nós,  os filhos da ditadura, ou seja, os nascidos durante
    o  período, só estamos entrando no campo literário agora.
    A  diferença que você aponta nos meus poemas nasce  desta
    mudança  geracional. Quem fala sobre a ditadura é  alguém
    que  não  lutou  contra  ela, que  apenas  foi  um  agido
    inocente  do  clima de silêncio que ela criou,  mesmo  no
    mais  profundo interior brasileiro. A única alusão direta
    à  ditadura,  durante  todo o  meu  curso  ginasial  (que
    concluí em dezembro de 1979), foi quando perguntei  a  um
    professor  de  História em quem ele votaria nas  eleições
    municipais.  Ele me mandou calar a boca e saiu  de  perto
    de mim.
    Este  silêncio acabou, em minha cabeça suja, associado  à
    figura  de  meu padrasto, que tentava me fazer uma  cópia
    dele.  Sempre  autoritário, ele me queria dócil,  mas  eu
    era  feito da matéria furiosa das tempestades.  Então,  o
    padrasto  ficou sendo a personificação da  ditadura  para
    mim.
    Devido  a  tudo isso, eu abordo a ditadura por um  prisma
    familiar.
    
    6. O Brasil ainda é um país obscuro?
    
    Muda  a natureza da obscuridade, mas ela permanece ilesa.
    O  obscuro  para mim era, nos anos 70, não conseguir  ter
    acesso  às informações, era viver numa cidade carente  de
    bens  culturais,  de  discussões, de horizontes  sociais.
    Por  conta de meu padrasto ter uma cerealista, eu convivi
    muito  com  as populações mais carentes e isso me  marcou
    também.  Até  hoje só me sinto à vontade no meio  daquele
    tipo  de  agricultor  pobre,  voltado  para  o  trabalho,
    orgulhoso de sua condição obreira. Isso eu herdei de  meu
    padrasto  e é a melhor parte dele. O problema é que  está
    cada  vez  mais difícil encontrar este tipo de gente.  Os
    agricultores do interior se tornaram caubóis  texanos  ou
    moradores  bregas das periferias das grandes cidades.  Eu
    me  tornei um órfão desta população também. Parece que  a
    orfandade é o meu destino.
    
    7.  “Toda a vez que assino o meu nome, meu pai e meu  avô
    assinam comigo”. A poesia também ajuda a conviver com  os
    nossos fantasmas?
    
    A  literatura é para mim uma forma de fidelidade aos meus
    antepassados.  É  como rezar todos  os  dias  para  eles,
    rezar  da  maneira que me coube, lendo e escrevendo.  Saí
    das  camadas  mais  incultas do povo  brasileiro  e  hoje
    ocupo  uma  função letrada, que conquistei pelo trabalho,
    sem  contar  com  um nome familiar ou qualquer  ajuda  de
    grupos. Tudo que sou vem de uma força atávica que  herdei
    de minha gente, uma gente caipira, amável, companheira  e
    sofrida. Sou apenas o cafona da poesia brasileira.
    
    8.   “Minha  biblioteca  (...)/tem  o  tamanho  de  minha
    ignorância”.  Quais  os escritores  que  estão/têm  lugar
    cativo na sua biblioteca?
    
    Os  memorialistas,  escrevam  eles  em  qualquer  estilo.
    Gosto  de todos, aprecio a obra deles, leio com o coração
    apertado,  idolatro. Sou tocado pela experiência  vivida,
    pelas  coisas do passado, pela tragédia que deu origem  a
    você  e  a  mim. Tenho uma perversão pelo que se  perdeu,
    pelo  que se quebrou, pelo que ficou esquecido nas dobras
    anônimas  do tempo. Amo aquilo que defini num poema  como
    o  olvidado  vivo. Não me perguntem da moda, dos  últimos
    filmes,   da   última  tecnologia.  Sou  um   passadista,
    confesso.
    
    9.   Você  escreveu:  “Nas  palavras  moramos  sempre  de
    aluguel”. Não é a eternidade a busca maior do poeta?
    
    Não   há   eternidade  em  nada  que   dependa   de   sua
    sobrevivência  material.  A escrita,  portanto,  enquanto
    algo concreto, é uma falácia. Nunca se escreveu tanto  no
    mundo  e  não  se guardou tão pouco. A palavra  só  ganha
    eternidade  se ela consegue habitar a alma  das  gerações
    posteriores.   Nós,   que   lemos   literatura,   estamos
    preservando  o que produziu infinitos outros  escritores,
    em  outras línguas, em outras épocas. É que nos  deixamos
    habitar  por escritores que, por sua vez, foram habitados
    por  outros  e assim por diante. Não acredito na  palavra
    como  algo onipotente. Acredito apenas no poder do  homem
    de  dar  alma  à  palavra  e transferi-la  aos  pósteros.
    Acredito  apenas  no  verbo  em  sua  versão  carnal.  No
    homem/literatura.  Sou  um  homem/literatura.   A   minha
    biblioteca está em mim. Não é organizada, ela  me  habita
    de  forma  tumultuada. Os livros que estão  nas  estantes
    são  apenas  casas  vazias. Já lhes roubei  os  viventes.
    Carrego-os comigo.
    
    
    10.  No  poema MASSA DE DETRITOS: “Do amor em cuja  fonte
    nos  saciamos(...)/que  ao  rio  da  memória  permanecerá
    poluindo”. Quando o amor polui o rio da memória?
    
    Tudo  que  vivemos polui o rio da memória. De uma  altura
    de  nossa  vida em diante, somos apenas os operários  que
    tentam  limpar este imenso e merdoso Tietê, transbordante
    de fezes, lixos, espermas e estrelas extintas.
    
    11.  AUTOBIOGRAFIA DE ALEIJADINHO é um poema dividido  em
    13 sonetos. O soneto está vivo?
    
    Não  tive  a intenção de escrever sonetos. Eu apenas  dei
    vazão  para  uma  percepção muito pessoal  que  tenho  do
    barroco  mineiro, que julgo mal interpretado pelos  donos
    do  saber. Ouro Preto é a minha cidade eleita.  Volto  lá
    sempre  que posso. Na última viagem, entendi que tudo  lá
    é   marcado  pelo  signo  da  morte  e  que  a  obra   do
    Aleijadinho é o centro deste universo. Então, comprei  um
    caderno e escrevi, em dois dias, os 13 poemas. Depois  vi
    que  eles tinham o formato tão mal visto do soneto.  Acho
    que  o  soneto  continua vivo sim, porque  ele  foi  mais
    forte do eu, do que minha desorganização crônica.
    
    12.   ENTRE  DOIS  TEMPOS  reúne  as  resenhas   críticas
    publicadas  na  imprensa. O que  o  crítico  empresta  ao
    poeta?
    
    Em mim, o crítico, o poeta, o romancista, o contista e  o
    leitor  são  uma  pessoa só. Todas se  valem  dos  mesmos
    instrumentos:  sensibilidade, discurso  claro,  dedicação
    plena à literatura. Um romancista local me disse uma  vez
    que,  para  me tornar romancista, eu tinha que abortar  o
    poeta. Saí de nosso encontro com a certeza de que  eu  só
    seria  romancista  se me mantivesse fiel  ao  poeta.  Foi
    assim  que  surgiu  o meu primeiro romance  (Chove  sobre
    minha  infância). O livro de poemas foi escrito ao  mesmo
    tempo  e  é  uma espécie de rio paralelo do  romance;  os
    mesmos temas, a mesma linguagem, o mesmo clima.
    
    13. Há crítica no Brasil?
    
    Há  mais jornalismo cultural e ensaísmo acadêmico do  que
    crítica.  Houve  um  preconceito muito  grande  contra  a
    crítica, vinculada sempre a uma atividade passadista,  do
    velho  jornalismo. A crise literária que se vive hoje  no
    Brasil  deve  muito ao relaxo crítico que  caracteriza  o
    jornalismo e aos hermetismos universitários. Gosto  muito
    do  trabalho  do  Antonio  Carlos  Secchin,  na  área  da
    poesia,   e  do  mestre  Wilson  Martins  –  um   crítico
    atemporal.
    
    13. O poeta é cada vez mais um erudito?
    
    Infelizmente,  é. No meu caso particular,  tento  usar  a
    informação  de  maneira equilibrada com a  sensibilidade.
    Não  sou  um  poeta construtor, sou um  vidente.  Não  me
    rendo  ao culto racional que os discípulos de João Cabral
    impuseram em nossa cultura. Muito pelo contrário, leio  e
    valorizo  João Cabral de Melo Neto pelo que há de  emoção
    em  sua  obra – uma emoção policiada, mas emoção como  em
    qualquer  poeta romântico. A erudição vazia  é  a  grande
    praga  da  poesia contemporânea. Meu poema “Autobiografia
    de   Aleijadinho”  é  frontalmente  contra  o  culto   da
    erudição   nas   artes.  Arte  deve  falar   primeiro   à
    sensibilidade  do fruidor e só depois ao  seu  intelecto.
    Se  a  tua empregada não puder sentir o teu poema há algo
    de  muito errado nele. Eu escrevo para ser entendido. Não
    quero   falar  apenas  com  Deus.  Inclusive  que  porque
    desconfio  que  Deus,  ao contrário  do  Papa,  não  fala
    português.
    
    14.  Qual  uso  faz  da internet? O que aperfeiçoaria  na
    internet?
    
    Faço  apenas o uso profissional da Internet,  porque  não
    tenho  muito tempo e o computador é o local onde passo  a
    maior  parte  do tempo. Sempre que posso,  vou  caminhar,
    brincar  com minha filha, tomar cerveja com um  ou  outro
    amigo,  comer em algum restaurante quieto, namorar  minha
    mulher.  E isso, por enquanto, a Internet não me  dá.  Eu
    tentaria  melhorar a Internet no sentido  de  criar  dois
    tipos  de  acesso: o geral e o seletivo. Você vai  pescar
    dourado  e entra todo tipo de peixinho ordinário  na  tua
    rede,  até piranha. Deveria ter também uma rede  com  uma
    malha  especial com a qual a gente pudesse apenas  pescar
    os dourados, para não perder tempo.
    
    15. Qual mote o acompanha?
    
    Seja inteiro em tudo aquilo que você fizer.
    
    16. Qual o papel do escritor na sociedade?
    
    Para  mim,  o  papel principal do escritor  não  está  no
    espaço,  mas  no tempo. Os escritores somos os  guardiões
    do  fogo.  Nós mantemos vivo todo um universo  imaginário
    que  periga  desaparecer. Ao dar esta  entrevista  agora,
    estou  fazendo infinitas referências veladas a escritores
    de  outro  tempo  e  de outras línguas,  línguas  que  já
    morreram. Não sei o nome da maioria deles, mas como  bebi
    em  fontes  que surgiram de outras fontes,  eu  guardo  a
    memória  desta gente extinta. Sem o escritores,  o  mundo
    corre o risco de viver apenas o presente.




v o l t a