ENTREVISTA COM PAULO FRANCHETTI

 
Paulo  Franchetti nasceu em Matão (SP), em agosto  de  1954.
Professor de Teoria da Literatura e Literatura Portuguesa na
Universidade Estadual de Campinas, publicou três  livros  de
poesia  (Várias Vozes, 1975, Indigo Blues, 1984,  e  Hacais,
1994)  e  vários trabalhos de crítica e história  literária,
entre  os  quais se destacam Alguns aspectos  da  Teoria  da
Poesia  Concreta  (1989),  Haikai  -  Antologia  e  História
(1990), Correspondência de Eça de Queirós e Oliveira Martins
(1994),  a  edição-crítica da Clepsydra, de Camilo  Pessanha
(1994)  e a edição comentada de O Primo Basílio, de  Eça  de
Queirós  (1998).  Durante  dois anos,  dirigiu  a  lista  de
discussão Haikai-L, dedicada à prática do haikai. Alguns dos
seus poemas, haicais e textos críticos estão disponíveis, em
versão        integral,       na        sua        homepage:
http://www.unicamp.br/~franchet .
> Como foi o seu percurso poético até encontrar o haicai?
Eu  cheguei ao haikai por dois caminhos. Por um lado,  pelos
textos de Haroldo de Campos. Fiz uma tese de mestrado  sobre
a  teoria  da Poesia Concreta, que defendi em 1982.  E  como
Haroldo  de  Campos escrevesse sobre haikai,  valorizando  a
etimologia  dos  kanjis, e Augusto de  Campos  várias  vezes
abordasse  o  sistema  de  escrita  da  China  e  do  Japão,
interessou-me  aprender a língua japonesa (o  que  fiz,  por
alguns anos), e ver como funcionava o kanji numa língua  que
o  empregava  como sistema de escrita. Por outro  lado,  nos
estudos  de  literatura e cultura portuguesa,  deparei  pela
mesma  época  com  os  livros de Wenceslau  de  Moraes,  que
retratou  a  vida japonesa no início deste século  e  também
traduziu  haikais. Interessado pelo assunto, e tentando  ter
do  haikai  uma visão mais fundamentada, acabei  chegando  à
obra fundamental sobre o assunto no Ociedente: os livros  de
R.  H. Blyth. Isso foi no começo dos anos 80, e a partir daí
passei  a  estudar mais sistematicamente o haikai  e  a  sua
história  no Japão e entre nós. Foi apenas no lançamento  do
livro  "Haikai  --  antologia e história",  no  VI  Encontro
Nacional de Haikai, realizado em 1989, que comecei  a  fazer
haikais  e  a  participar  de reuniões  de  um  grupo  nipo-
brasileiro,  presidido por Hidekazu Masuda Goga  na  Aliança
Cultural Brasil-Japão.
>  Caetano  Veloso,  numa letra de música,  diz  que:  “está
provado que só é possível filosofar em alemão”. Plagiando  o
cantor, só é possível fazer o haicai em japonês?
Nem a blague de Caetano é verdadeira, nem a idéia de que  só
é  possível  fazer haikai em japonês. Da mesma forma  que  é
possível fazer ikebana no Brasil, é possível fazer haikai em
português.  O  haikai,  tal  como  o  entendo,  é  mais  uma
atividade e uma atitude frente à linguagem, do que uma forma
poética.
> O que um haicai exige do haicaista? É necessária concisão,
concentração?
Exige  um  distanciamento da nossa  tradição  poética.  Pelo
menos de uma certa tradição, que identifica a poesia com  um
conjunto de práticas lingüísticas. Haikai é um texto  curto,
sem   metáforas,  sem  rima,  sem  preocupação   de   brilho
lingüístico. É basicamente isto: um texto breve,  despojado,
modesto,  em  que  uma  sensação,  uma  percepção  de  algum
fenômeno  natural  é  colocada em  palavras  de  modo  muito
objetivo.  Concisão, assim, é uma palavra de  sentido  muito
específico:   significa   recusa   tanto   ao   derramamento
sentimental,  quanto  ao  descritivismo  detalhista.  Diz-se
usualmente  que  o haikai é sintético, mas isso  não  é  bem
verdade. Em haikai não temos síntese no sentido de "dizer  o
máximo  com o mínimo". O haikai é, antes, a arte de,  com  o
mínimo, dizer apenas o suficiente para o desenho, em  traços
rápidos, de uma cena ou situação em que se surpreenda  algum
índice de alteração sazonal.
>  Qual  a diferença da linguagem do haicai para a linguagem
poética.  É  possível um haicai sem poesia? e um haicai  que
não é poema?
Coloca nestes termos a pergunta, a melhor resposta me parece
ser:  haikai  não  é  poesia. É uma  formulação  que  parece
paradoxal, mas que faz todo o sentido, quando se  pensa  nas
expectativas  que  temos frente a um texto  que  denominamos
"poesia"  ou "poema" e a um texto que denominamos  "haikai".
Se  pensamos  o haikai como "poema" ou "forma poética",  ele
tem  pouco a nos oferecer: é mais uma forma exótica, como  o
pantum  malaio que fez sucesso entre os parnasianos, ou  uma
forma fixa datada e hoje pouco empregada, como o rondó,  por
exemplo. O que ele tem a nos oferecer de mais interessante é
uma  outra  concepção  de emprego da  linguagem.  Nos  meios
haikaísticos  mais interessantes, o haikai é  uma  forma  de
viver  a  alteridade, de nos afastarmos  momentaneamente  da
nossa  própria tradição. É um jeito de estar no mundo  e  na
linguagem;  e  é também uma prática coletiva, uma  atividade
que  se  faz  em  conjunto, dentro de  um  certo  estado  de
espírito   e   com  o  objetivo  de  interação  com   outros
praticantes.
>  Quais são os principais haicaistas brasileiros? Quais são
os mestres nipônicos?
Os  mestres nipônicos mais conhecidos são Bashô, Buson, Issa
e  Shiki. Bashô,  que viveu no século XVII, é o iniciador do
que  chamamos "o caminho do haikai". Shiki, que viveu já nos
tempos  modernos, é considerado o restaurador do  haikai,  o
homem  que  recuperou  o prestígio da  atividade  num  Japão
fascinado pela literatura ocidental. No Brasil, creio que os
haikaístas mais interessantes são os que permanecem  ligados
à  prática  coletiva  do haikai e que estão  mais  perto  da
tradição  japonesa. Dentre esses, creio que os melhores  são
Teruko Oda e Edson Kenji Iura.
> Como foi estar  à frente da lista de discussão Haikai-1?
Foi  uma  experiência muito gratificante, durante  um  certo
tempo.  A  lista foi criada para ser uma oficina  on-line  e
funcionou  assim  durante uns dois anos.  Depois,  virou  um
lugar  de disputa entre tendências concorrentes. De um lado,
os  que  têm do haikai uma visão como a que expus acima.  De
outro,  os que vêem o haikai como uma manifestação do  "zen"
ou  como  uma  mera forma literária, que pela sua  brevidade
exige  uma  linguagem trocadilhesca ou  piadista.  O  haikai
"zenista"  ou  piadista me parece uma  prática  cansativa  e
rebaixada.  Creio que a lista é importante e deve  continuar
funcionando.  Para  mim, entretanto,  perdeu  boa  parte  do
interesse que tinha, pois ao invés de uma oficina  dedica  a
uma   prática  específica  e  à  construção  de  um  caminho
específico  de  haikai, passou a ser um lugar de  publicação
mais   ou  menos  indiscrimida,  como  acontece  nas  listas
dedicadas à prática da poesia de modo geral.

>  O que falta para o haicai ser mais difundido no Brasil? O
que  falta  para ser difundido além dos limites  da  colônia
nipônica?
Acho  que  o haikai é muito difundido no Brasil. Na  colônia
japonesa  ele ainda é muito praticado em japonês.  O  Grêmio
Haicai Ipê, a que me referi acima, foi o primeiro esforço de
juntar as duas tradições: a do haikai produzido no Brasil em
japonês e a do haikai aqui produzido em português.
>  Como  a  tradição do haicai pode estar a serviço  de  uma
renovação da linguagem do poema aqui no Brasil?
De  várias formas, às vezes muito diferentes. Sem dúvida,  o
haikai  e  o ideograma desempenharam um papel importante  na
formulação  e  na prática da Poesia Concreta. Pouco  depois,
Paulo   Leminski  escreveu  haikais,  traduziu   haikais   e
incorporou  elementos  do haikai à sua  própria  poética.  A
objetividade  do  haikai, sua modéstia  e  despojamento  são
elementos  que  encontramos  em lugares  muito  prestigiados
atualmente  na  poesia  brasileira, como,  por  exemplo,  em
alguma  poesia de Manoel de Barros. Mas creio que o  haikai,
por  ser  uma prática que se aprende no convívio com  outros
praticantes,  por  ser objeto de muitas oficinas  em  vários
lugares do país, tem um papel importante na criação de novas
formas de usar a linguagem com objetivos artísticos,  e  que
as  conseqüências disso na criação poética brasileira só vão
ser sentidas e melhor avaliadas daqui a alguns anos.
> Quais os principais trabalhos sobre o haicai publicados no
Brasil?
Sem  falsa  modéstia,  creio que o  mais  completo  trabalho
publicado em português é o que saiu pela Editora da  Unicamp
em  1989:  Haikai  -- Antologia e história.  Mas  há  outros
textos  importantíssimos disponíveis: os ensaios de  Octávio
Paz,  publicados em "Signos em rotação" e o livro de  Carlos
Verçosa, "Oku, viajando com Bashô".
>  O  tema da sua tese de mestrado foi a poesia concreta.  O
que  poderia nos adiantar? Quais os caminhos pelos  quais  a
sua tese navegou? Quais > conclusões chegou? Poesia concreta
é  design?  Ainda existe hoje? Foi substituída  pela  poesia
visual?
Trabalhei  apenas  com  a  teoria da  Poesia  Concreta.  Meu
interesse, naquele momento, era observar a argumentação  que
desenvolveram  os seus principais formuladores,  os  valores
que defendiam, as questões que privilegiavam no debate. Isto
é: tentei pensar a Poesia Concreta como movimento cultural e
apreender   a  sua  articulação  com  o  momento   histórico
brasileiro,  buscando entender o que tornou tão  persuasivas
as suas propostas. Creio que Poesia Concreta é uma expressão
que  designa, mais do que um tipo de produção poética ou  um
certo  número de procedimentos lingüísticos, um conjunto  de
proposições  culturais.  Nesse sentido,  a  Poesia  Concreta
existe  ainda hoje, isto é: é um vetor importante  da  nossa
cultura. Mas se quisermos utilizar a expressão para designar
uma   expressão   homogênea,  um  tipo  de  texto,   teremos
dificuldades, pois a produção de uma Augusto de Campos ou de
qualquer um dos outros dois é muito variada e mesmo o verso,
ou  a  forma  de  figuração  analógica  que  foram  abolidos
programaticamente  em  1956 ou pouco depois,  reaparecem  em
momentos vários da sua prática poética.
>   Como   estão  os  estudos  sobre  a  poesia   portuguesa
simbolista?
Minha  tese de doutorado foi a edição crítica dos versos  de
Camilo  Pessanha. Recentemente, defendi, como tese de livre-
docência  um trabalho de análise de poemas desse autor,  que
deverá  ser, em breve, publicado pela Editora da USP.  Reúno
ali  tudo o que há vários anos tenho pensado sobre a poética
simbolista,  e  com  isso  sinto estar  fechando  um  estudo
iniciado  há  mais de dez anos. No momento, meus  interesses
estão  concentrados na elaboração de uma nova  descrição  da
poesia   brasileira  produzida  entre  o  Romantismo   e   o
Modernismo:  a  de extração simbolista, principalmente,  mas
não só.
>  É  notória a sua condição de grande estudioso do  haicai.
Também  se  sabe  de todo o tempo que dedica  ao  estudo  do
mesmo. Por que o haicai ainda não foi alvo de seu estudo  na
universidade?
Tenho  feito  alguns estudos acadêmicos sobre  o  haikai  no
Brasil.  Mas  como  sei pouco japonês,  não  me  aventuro  a
estudar  o  haikai no original, sem a ajuda da minha  colega
Elza  Taeko  Doi. Tenho pensado o haikai, assim, basicamente
como  uma imagem produzida pelo Ocidente. Meus estudos sobre
o  haikai  no  Japão sempre foram apenas  uma  tentativa  de
encontrar   parâmetros  que  me  permitissem   entender   as
apropriações   que   dele   vimos   fazendo   no   Ocidente,
principalmente a partir das primeiras décadas deste século.
> Tem alguma epígrafe que o acompanhe?
Sim.  Uma  frase de Bashô: "o que diz respeito ao  pinheiro,
aprenda do pinheiro; o que diz respeito ao bambu, aprenda do
bambu".
> Qual o papel do escritor na sociedade?
Mallarmé  dizia que era dar um sentido mais puro às palavras
da  tribo. Pound, que era manter a linguagem eficiente. Acho
que é um pouco por aí.

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